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Artigo

Tragédias de Verão: Reflexo da Falta de Planejamento, Gestão e Manejo dos Recursos Naturais, artigo de Edson Luís Piroli

 

[EcoDebate] Estamos novamente no verão. Época em que o noticiário veiculado na imprensa brasileira, traz invariavelmente, notícias de tragédias relacionadas a deslizamentos de encostas de morros, inundações, e mortes de pessoas. Muito se tem falado sobre as causas e as soluções para este problema. Porém, pouco se tem dito sobre as causas básicas dessas tragédias nem o que fazer para evitá-las definitivamente.

Este conjunto de problemas começa com a má gestão, que desconsidera as características físicas das áreas historicamente utilizadas para assentamentos humanos e que desconsidera também as características das unidades básicas da natureza, que são as bacias e microbacias hidrográficas, onde as pessoas estão morando, vivendo e morrendo. E, estes problemas se perpetuam devido à falta de conhecimento por parte dos gestores públicos e da população de como os processos naturais ocorrem e das conseqüências que estes trazem.

As bacias hidrográficas de acordo com o Código de Águas (Lei 9.433/97) são a unidade territorial para implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. E o que é uma bacia hidrográfica? É uma área delimitada no terreno, cujos divisores de água são os topos das montanhas, ou as regiões mais elevadas de uma determinada região. As águas que precipitam sobre toda bacia, ficam nela concentradas, escorrendo superficialmente até as regiões mais baixas do relevo, onde normalmente estão as drenagens, que podem ser temporárias ou perenes. Parte destas águas pode infiltrar no solo, desde que este não esteja impermeabilizado. Uma microbacia tem os mesmos divisores, mas abrange uma região menor (várias microbacias formam as bacias maiores).

O detalhe fundamental a ser observado é que todos nós moramos em uma microbacia. Assim sendo, as águas que caem sobre o nosso quintal podem ser infiltradas no solo, caso não o tenhamos impermeabilizado totalmente, ou então são direcionadas para um pequeno córrego ou para um rio de dimensões maiores.

O que isso tem a ver com as enchentes e com os deslizamentos de encostas?

Vamos tratar antes das enchentes. Todos os córregos e rios tem a sua calha natural, que foi moldada ao longo de milhares ou milhões de anos de evolução da natureza. Esta calha foi se adaptando aos diferentes volumes de água que chegam ao leito do rio nas diferentes estações do ano. Existe na legislação brasileira (Código Florestal – Lei 4.771/65 e legislações complementares), um termo que descreve bem esta condição, que é o chamado leito maior sazonal. O que define este termo? Descreve aquela área onde o rio ocupa, em alguns determinados períodos, as várzeas próximas à sua calha principal, devido ao aumento das chuvas, o que aumenta também, o volume de água que precisa ser escoada. Na maior parte do ano, e em alguns casos, por vários anos seguidos, o rio mantém suas águas dentro de sua calha normal (leito menor). No entanto, em determinados intervalos de tempo, que não necessariamente são os tempos humanos, ou seja, não necessariamente a cada semana, mês, ano ou década, o rio extrapola a calha principal e inunda as regiões adjacentes. Esse é um processo natural.

Então porque ocorrem as tragédias? A ocupação antrópica, sem considerar as características das bacias hidrográficas tem feito com que os processos de escoamento superficial se acelerem e aumentem seu potencial de causar prejuízos econômicos e em vidas humanas.

E de que forma isso ocorre? Uma bacia hidrográfica em seu estado natural é composta pelas regiões mais altas (divisores de água), pelas regiões de encostas (que podem ser mais ou menos íngremes) e pelas várzeas dos rios e córregos. Em condições primitivas, onde a bacia é recoberta por vegetação nativa, a água que precipita sobre esta bacia, tem altas taxas de infiltração, fazendo com que o escorrimento superficial seja mínimo. Em episódios de chuvas extremas, a possibilidade de aumento do volume de água escorrendo superficialmente é maior.

Porém, mesmo nestes casos, a natureza possui mecanismos de retenção superficial e sub-superficial, desenvolvidos ao longo de toda evolução de nosso planeta, que conseguem abrandar os efeitos do excesso de água. E, ainda, quando ocorrem as cheias, não há população concentrada, habitando áreas de risco.

E como desenvolver nossas atividades produtivas e habitar estes espaços? As bacias hidrográficas, mesmo ocupadas pelas atividades humanas, podem manter-se próximas de suas características naturais, desde que estas sejam conhecidas e respeitadas. E as características básicas a serem observadas são: não ocupar zonas de alta declividade com moradia, infra-estrutura e agropecuária intensiva; não retirar a vegetação nativa destas regiões; não retirar totalmente a vegetação nativa das regiões menos íngremes, mesmo nas que forem utilizadas para produção de alimentos; não impermeabilizar excessivamente o solo; não retirar a mata ciliar; e, não ocupar as áreas de várzea, sujeitas a inundações temporárias.

Estas observações parecem simples. Mas se observarmos as microbacias das regiões Sul, Sudeste, Nordeste, e, hoje, também as do Centro-Oeste e algumas da região Norte, vemos que se fez exatamente o contrário, sobretudo nas áreas urbanas. Ocupamos e impermeabilizamos as regiões de topo de morro, sem levar em conta que ali ocorria infiltração da água das chuvas. Esta impermeabilização faz com que aquela água que precipita naquelas regiões, se avolume na superfície e escorra concentrada para as regiões de encostas. Nestas, também impermeabilizadas, a água se junta àquela que ali precipita e escoa, aumentada, chegando ao rio, que sem mata ciliar, nada pode fazer para diminuir a velocidade e o volume desta, e assim extravasa e ocupa o seu leito maior sazonal. Em alguns casos, ocupa até áreas além deste, pois a natureza não conseguiu se moldar à velocidade das transformações implantadas pelo homem na área de cada bacia.

Também ocupamos as encostas. Nas grandes cidades, até aquelas de alta declividade, e consequentemente de alto risco. E, ao mesmo tempo, ocupamos as várzeas dos rios. Na maior parte das vezes, sem sequer saber que ali é o leito maior sazonal, ou seja, leito do rio.

Desta forma, o processo de concentração superficial das águas das chuvas ocorre inclusive em períodos com chuvas de baixa intensidade, uma vez que nas grandes cidades brasileiras, as taxas de impermeabilização do solo são muito altas, o que praticamente impede qualquer percentual de infiltração. Assim, toda ou quase toda água escorre superficialmente e se acumula nas regiões mais baixas do relevo. Acumulada, causa as inundações e transtornos tão corriqueiros.

E por que ocorrem os deslizamentos, desmoronamentos e escorregamentos nas encostas dos morros? Em primeiro lugar, é importante lembrar que este processo ocorre naturalmente em regiões íngremes e é fruto da acomodação das camadas superficiais e sub-superficiais da terra. Quando o homem ocupa, desmata e impermeabiliza estas regiões, quebra o pequeno equilíbrio ali existente e potencializa estas ocorrências, uma vez que tende a concentrar a água em alguns pontos, que encharcados, tendem a ceder, causando estes processos. Como se viu no Rio de Janeiro em 2011, estes episódios podem carregar blocos de solo ou rochas muito grandes, capazes de destruir parte de montanhas e de soterrar vales inteiros.

A partir destas breves observações, espero ter contribuído para ampliar a compreensão de por que ocorrem tantas tragédias nos verões brasileiros. Com o aumento da população, a concentração desta nas grandes cidades, o desconhecimento das características dos recursos naturais por parte desta, e mesmo dos gestores públicos, o descompromisso destes com a busca de soluções para estes problemas e para a falta de espaço adequado para implantação de moradias, áreas de risco (encostas íngremes e leito de rios) são ocupadas desconsiderando o perigo que estas apresentam aos seus moradores.

Surge então a questão do que fazer para evitar estes acontecimentos nefastos, que mancham todos os inícios de anos de nossa população. E juntamente com esta questão, surge a constatação de que as soluções não são simples. Não basta apenas os governos federal e estaduais prometerem liberar determinadas quantias de dinheiro para atender às vítimas (é claro que o socorro e a assistência devem ser dados), e muitas vezes, para reconstruir as casas no mesmo lugar ou em outras áreas de risco.

É preciso que haja uma mobilização nacional, no sentido de estudar, discutir e encontrar soluções que resolvam este problema de uma vez por todas. É necessário que sejam desenvolvidos estudos que caracterizem todas as áreas que podem ser de risco, principalmente nas grandes cidades brasileiras, e que sejam investidos recursos em sistemas regionais de alerta e prevenção da ocorrência de eventos extremos de chuvas, incluindo a formação de um número maior de técnicos e pesquisadores sobre o tema.

É também fundamental que os resultados dos estudos realizados sejam levados em consideração nas tomadas de decisões por parte dos agentes da administração pública, e em caso contrário, que estes administradores sejam responsabilizados criminalmente, se ocorrerem tragédias previstas e não observadas. Além disso, é necessário que a população das áreas apontadas como de risco seja realocada para regiões onde não exista perigo.

Isto tem um alto custo financeiro, sem dúvida, mas será também uma grande poupança de vidas. O governo federal pode investir parte dos recursos previstos para o programa de aceleração do crescimento na construção de cidades que possam receber estes desabrigados. Os governos estaduais e a iniciativa privada também podem participar. Estas novas cidades devem ser construídas de maneira sustentável em regiões onde não haja risco, mesmo que um pouco distante das áreas de risco atuais.

Aqui é importante considerar que o Brasil foi ocupado de Leste para Oeste e que as regiões à Leste, onde está concentrada a maior parte da população, são as mais susceptíveis às catástrofes ambientais. Assim, este é o momento dos governantes começarem a considerar o investimento na ampliação sustentada das áreas urbanas do interior do país localizadas em regiões de baixo risco, incentivando a população das áreas de risco a mudarem para locais mais seguros.

É claro que esta tarefa não é simples, uma vez que existe toda uma cadeia de relações entre as pessoas e destas pessoas com o seu lugar. Mas também é evidente que um país com as dimensões do Brasil, com a imensa maioria do seu território localizada em regiões seguras, não pode assistir passivamente ao massacre de parte de sua população e à destruição de inúmeras famílias todos os anos, por falta de planejamento e gestão.

Assim, propõe-se aqui um ângulo de análise diferente do comumente observado, sugerindo-se que a unidade de análise a ser adotada para estudos, planejamento e gestão dos recursos naturais e das atividades humanas a estes relacionadas seja de fato a bacia hidrográfica, conforme prevê a Lei 9.433/97. Propõe-se também que estudos sejam aumentados e concentrados nas áreas de risco onde haja grande concentração populacional e que seus resultados sejam de fato considerados nas tomadas de decisões. Além disso, sugere-se que a possibilidade de realocação da população das áreas de risco seja analisada seriamente, tanto por parte dos governantes, como por parte da população que habita estes locais. Caso contrário, sempre teremos os meses de verão para nos assombrar, mesmo com o carnaval no final, para tentar nos fazer esquecer…

Esta singela proposta surge da observação anual corriqueira dos rostos desesperados de irmãos que perderam tudo, e que e, seguida terão que recomeçar novamente a vida, carregando a certeza de que no próximo ano as chuvas voltarão e se nada for feito, lá estarão para perder tudo novamente, talvez a própria vida.

Prof. Dr. Edson Luís Piroli, UNESP.
Coordenador do Grupo de Pesquisas CEDIAP-GEO (Centro de Estudo e Divulgação de Informações sobre Áreas Protegidas, Bacias Hidrográficas e Geoprocessamento)

EcoDebate, 25/01/2012

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2 thoughts on “Tragédias de Verão: Reflexo da Falta de Planejamento, Gestão e Manejo dos Recursos Naturais, artigo de Edson Luís Piroli

  • A proposta é boa, mas…

  • Maria Cristina Perusi

    Parabenizo o professor pela oportuna, urgente e necessária contribuição acerca do assunto. Aliás, chamo atenção para o fato de que mesmo nas cidades do interior, onde supostamente estaríamos protegidos do ditos “desastres naturais”, assistimos situções alarmantes como as recentes enchentes em Santa Cruz do Rio Pardo, Assis e Piracicaba, interior do Estado de São Paulo. O pior, a expressiva contribuição do poder público para potencializar ainda mais o estrago, como a canalização de córregos, exemplo de Ourinhos/SP. É a barbárie ambiental…parabéns professor.

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