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Artigo

Três mulheres do povo, artigo de Selvino Heck

“Ele quer morrer; eu não, quero viver”, diz Rosa, referindo-se ao marido; ela é uma das três mulheres retratadas no filme Garapa, filmado em 2005 e lançado em Brasília pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), com a presença do diretor do filme, José Padilha, de Chico Menezes, um de seus inspiradores e ex-presidente do Consea, conselheiros e convidados do governo e da sociedade.

Diz o texto de lançamento: “Garapa é uma mistura de água com açúcar, muitas vezes o único alimento de famílias pobres do Nordeste. Os dramas e flagelos de três dessas famílias brasileiras – uma de Fortaleza, outra de Choró, a terceira do sertão cearense – são mostrados neste que é um dos mais contundentes documentários sobre a fome no país, um soco no estômago, uma denúncia social, mas também um convite à reflexão”.

No final da exibição, ninguém aplaudiu, diferente do normal de estréias, onde o público mostra com palmas o agrado (ou desagrado) do filme. Desta vez, não. Silêncio absoluto, nenhum murmúrio, nenhuma palavra.

câmera, em dado momento, caminha lentamente, quase para sobre o que uma das mães diz serem ‘as perebas’ das suas crianças, pernas e braços, até rosto, cheio de feridas por onde passeiam as moscas; as crianças deitadas no chão duro, no meio da terra e da poeira. Dá vontade de desviar o olhar, pensei mais de uma vez. Quando será que não precisarei mais olhar uma cena assim no meu país, na minha terra, na minha pátria, se Josué de Castro, em Geografia da Fome, descrevia os mesmos problemas há cinco décadas, ou Graciliano Ramos escrevia Vidas Secas, tão bem transformado em imagens por Nelson Pereira dos Santos?

De nome elas são Rosa, Robertina e Lúcia, as três mulheres do povo que escancaram suas vidas e seu cotidiano, seus filhos, seus maridos, sua casa, sua tristeza e sua luta. Seja na cidade grande, seja na pequena ou no sertão nordestino, a fartura é a mesma: falta comida, falta trabalho, falta remédio, falta conhecimento. Mas não falta esperança: quando Rosa diz que, ao contrário do marido, quer é viver, significa que há vida, que há olhar para o futuro; quando Lúcia pega os três filhos e entra no ônibus, vai nas casas da cidade buscar adjutório, ou vai para o posto de saúde pesar os filhos e receber orientação; quando uma delas não sabe a idade que tem por não ter documento, achando que tem menos de 30 anos, e acaba chorando por não conseguir dar alimento suficiente para os filhos.

Os homens mal aparecem, ou desaparecem. Um gosta de beber e de xingar a mulher. Outro, de vez em quando, pega na enxada para capinar o chão duro e seco. Outro, quando a mulher pede, vai encher os tonéis de água em cima de um jegue num açude sujo. Outro se senta, olhar triste e perdido, sobre o muro da varanda, enquanto a mulher faz comida, cuida dos filhos, busca leite no mercado, que acabou não vindo porque a pessoa encarregada não apareceu. Sobra, como diz uma delas, preparar uma garapinha, dar para as crianças e assim enganar a fome e a dor na barriga.

No debate, José Padilha diz que em país regido pelas regras da razão, a miséria é uma vergonha; em país não regido, a riqueza é uma vergonha. Segundo ele, o Brasil não é regido pelas regras da razão. E elogia o Fome Zero, o Bolsa Família e as políticas sociais do governo Lula, porque permitem o primeiro passo para o fim da miséria e da fome no rumo da cidadania: “Historicamente, via inflação e outras formas de rentismo, transferiam-se os ganhos, e os votos, para os mais ricos e as elites. Hoje, quando há transferência de renda para os mais pobres, natural que, por reconhecimento, transfiram-se também os votos”.

Por isso, e o filme pretende contribuir para tanto, é fundamental aprovar a PEC 047/2003, emenda constitucional em votação no Congresso que prevê a inclusão da alimentação como um dos direitos fundamentais no Artigo 6º da Constituição. Uma campanha, Alimentação: Direito de Todos, está desencadeada em todo Brasil, de sensibilização dos deputados federais e senadores para sua aprovação.

Rosa, Robertina e Lúcia são as mulheres do Brasil: lutadoras, responsáveis, mães, provedoras da casa e da família, as que não se entregam nunca, as que nunca desistem, as que, sobretudo, amam e cuidam de seus filhos. Vivem na pobreza, porque não há, ainda, outro jeito, não encontraram uma maneira de dela sair. Mas acreditam que seus filhos, quem sabe, viverão tempos melhores.

Garapa é um filme difícil de assistir, ainda mais no século XXI e num país como o Brasil, um dos maiores produtores de alimentos do mundo. Mas mostra também que, se este é um povo sofrido, se as mães, mulheres (e homens) que se mostram inteiras, muitas vezes só têm garapa para dar a seus filhos; por outro lado, e ao mesmo tempo, a reflexão sobre a fome, a miséria, a exclusão social e a quase eterna má distribuição de renda, mais a luta contra todo tipo de desigualdade, por justiça e políticas sociais e públicas de governos, sinalizam esperança. Como diz Rosa, num grito de vida e urgência, eu não quero morrer, eu quero viver. Aí estão a dignidade, a resistência das mulheres do povo e a fé em si mesmas e no futuro.

Selvino Heck é Assessor Especial do Presidente da República

* Artigo enviado por Rogério Almeida, colaborador e articulista do EcoDebate.

[EcoDebate, 06/06/2009]

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One thought on “Três mulheres do povo, artigo de Selvino Heck

  • Muito bom o artigo de Selvino Heck! Nao vi o filme mas vou ve-lo. Concordo com o apelo do autor em prol da aprovacao da PEC que afirma, explicitamente, ser a alimentacao um direito fundamental. Ao lado disso, porem, penso que precisamos insistir mais na questao da educacao basica no setor publico, que no Brasil, ninguem ignora, e’ pouco menos que uma farsa. Ora, sem educacao basica de qualidade, nada se sustenta, salvo a ignorancia e suas sequelas. Os votos `de reconhecimento` a que alude o autor, por ex., apenas passam a ser arrebanhados por novas vias. Em vez do velho `coronelismo` local, passa-se a ter o `coronelismo de estado`. E assim, sem a liberdade e a dignidade que so a educacao promove, muitos brasileiros, ainda que de barriga cheia, seguem, lamentavelmente, a reboque de interesses alheios.
    Maristela Simonin

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