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Rede Cerrado lança site que busca a valorização dos povos e tradições do bioma

 

Rede Cerrado lança site que busca a valorização dos povos e tradições do bioma

Histórias de luta e perseverança para manter o Cerrado vivo – Conflitos fundiários, desmatamento e invasões. Este é o retrato que se esconde atrás das paisagens da savana brasileira, o segundo maior bioma da América do Sul e do Brasil

histórias do Cerrado 

Para retratar a cultura e as histórias dos povos e das comunidades tradicionais do Cerrado, a Rede Cerrado – organização composta por mais de 50 entidades da sociedade civil associadas, que conta com o apoio do WWF-Brasil – lança um álbum online (http://redecerrado.org.br/historiasdocerrado/) com o retrato do segundo maior bioma tanto da América do Sul como do Brasil. Trata-se de uma região com belas paisagens, mas que esconde um passado – não muito distante – repleto de tradições e um presente marcado por conflitos fundiários, invasões, desapropriações ilegais e vidas perdidas.

Apesar de sua grandeza, o Cerrado sofre com a perda da riqueza natural, com suas paisagens sendo transformadas em pastos ou lavouras, e com o avanço do desmatamento – que só no último ano foi de cerca de 13%. E o desmatamento contínuo impacta na quantidade de água produzida, armazenada e distribuída pelo bioma, levando ao desabastecimento de cidades e indústrias e ao desaparecimento de espécies nativas de árvores e animais.

Para retratar o dia a dia deste bioma tão ameaçado, a Rede Cerrado está lançando um álbum de histórias de luta e resistência sob o olhar de mulheres que vivem e amam o bioma. “A plataforma é como um retrato da riqueza natural e social do bioma. Buscamos evidenciar a diversidade dos povos e das comunidades tradicionais que lutam pela sobrevivência do Cerrado e de seus modos de vida”, declara Kátia Favilla, secretária-executiva da Rede Cerrado. O Histórias do Cerrado é um desdobramento do podcast Cerrados, lançado pelas duas organizações em junho do ano passado.

Minas Gerais – A primeira fronteira agrícola

É no Norte de Minas Gerais, nas bordas do Cerrado mineiro – uma região plana, com árvores retorcidas, onde a paisagem começa a ressecar e virar caatinga – que encontramos Célia Xacriabá, que com orgulho retrata as árvores floridas e coloridas, como o seu Ipê rosa com a legenda: “ao amanhecer, o Cerrado”. Antigamente, sua etnia habitava as margens do Rio São Francisco, mas acabou tendo que ir para áreas mais secas, sendo que em 1960 foi dada como extinta. Mas a luta de seu povo, ameaçado de perder suas terras, fez o Governo Federal reconhecer e retornar o nome dos Xacriabás à lista dos povos indígenas. Hoje, eles são considerados a etnia mais populosa de Minas Gerais. Assim como outras comunidades tradicionais do Cerrado, os Xacriabás têm sua história marcada por expulsões, desapropriações ilegais e os investimentos das empresas agrícolas.

Goiás – A medicina das plantas

Muita gente desconhece, mas o Cerrado possui uma riqueza imensurável que vem das plantas e do seu povo. Ele não só alimenta os rios que correm em várias direções, mantendo seis das oito grandes bacias hidrográficas brasileiras – mas também oferece recursos fitoterápicos com sua rica biodiversidade de folhas, raízes e cascas. A medicina popular é resultado da riqueza natural e de conhecimentos seculares, que foram passados de geração em geração. É em Goiás, na comunidade do Cedro, que encontramos as farmácias comunitárias ou caseiras e a D. Lucely Pio, quinta geração de descendentes de escravos que resiste e mantém viva as tradições de seu povo. Graças à conservação de algumas partes do bioma, D. Lucely ainda trabalha com ervas do tempo de seu tataravô. Para ela, a conservação do bioma é fundamental para a continuidade do modo de vida. Apesar de sua luta em preservar o meio ambiente, estima-se que o Cerrado goiano esteja com 90% de sua vegetação nativa alterada, resultado do desmatamento e do avanço do cultivo de monoculturas agrícolas e criação de gado.

Piauí – Terra sem Lei

Conhecida como a “última fronteira agrícola do Cerrado”, o Matopiba – formado por áreas majoritariamente de Cerrado nos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia – é uma das regiões mais cobiçadas pelos plantadores de soja e tradings internacionais. Localizada no Sul do Piauí, entre os municípios de Bom Jesus e Currais, vive Claudia Regina dos Santos – uma ativista que há mais de 20 anos atua na defesa dos direitos das comunidades rurais e que tem a vida marcada pelos conflitos agrários, contabilizando na sua trajetória cinco ameaças de morte. Trata-se de uma região fortemente atingida pela disseminação do cultivo da soja, desde a década de 70. E que entre 2000 a 2014 saltou de 1 milhão para 3,4 milhões de hectares, um crescimento de 253%. Ou seja, degradação da vegetação nativa do Cerrado e a transformação da paisagem em lavouras. Paralelo ao potencial de produção da região estão também as disputas por terra, falta de documentação e os conflitos socioambientais. 

Mato Grosso – O rolo compressor

É no leste de Mato Grosso, na aldeia Namunkurá – na terra indígena São Marcos – que vive Tsitsina Xavante e parte do povo Xavante – autodenomidado A’uwe Uptabi, o mais populoso do estado. Uma área de 188 hectares cercada por árvores altas e escuras, e pelas nascentes das bacias Amazônica e Tocantins-Araguaia, consideradas duas das três maiores bacias hidrográficas da América do Sul. Apesar das terras indígenas serem demarcadas, isso não garante qualidade de vida e equilíbrio ambiental. Muito pelo contrário. Estamos falando da região que mais produz soja e que tem o maior rebanho de gado de corte no Brasil e, consequentemente, com altas taxas de desmatamento. As áreas do entorno começaram a ter suas águas e animais, que são a base alimentar das aldeias, contaminados pela utilização de fertilizantes e herbicidas das fazendas, além dos sistemas de pulverização que atingem, diretamente, as comunidades indígenas e as populações rurais. O índice de exposição aos agrotóxicos é sete vezes maior no Mato Grosso em comparação com o resto do país, de acordo com dados do Ministério Público do Trabalho, de 2015. A falta de recursos, a ausência de investigação científica e do interesse político são refletidas na saúde da população como nos casos de má formação congênita em bebês nas cidades mais expostas aos defensivos agrícolas.

Maranhão – As florestas de palmeiras

É na região de transição do Cerrado para a floresta Amazônica que estão as palmeiras de babaçu, também chamadas de “mãe de leite”, que há gerações garantem o sustento das comunidades rurais. É lá que encontramos as quebradeiras de coco: mulheres que carregam a centenária tradição do extrativismo sustentável do nordeste brasileiro, como Rosalva Silva – moradora da comunidade rural Palmeirândia, no interior do Cerrado maranhense. Há 90 anos, camponesas que vivem no interior do Pará, Maranhão, Piauí e Tocantins sustentam suas famílias a partir do coco babaçu. Estima-se que 300 mil mulheres estejam neste ofício, sendo a maioria do Maranhão. Mas os conflitos por terras, desde a década de 60, com o leilão de áreas públicas e depois com a chegada do agronegócio mecanizado, restringiu o espaço das famílias locais para terrenos menores e longe das florestas de babaçu, mudando a produção das comunidades tradicionais e transformando as paisagens. Mas a luta desse povo e a presença em conselhos nacionais relacionados ao meio ambiente consolidou cooperativas e ajudou a estruturar políticas públicas e a garantir leis de defesa das palmeiras. É delas que se extrai o alimento (bolo, pudim, biscoito, mingau), adubo, artesanato (casca do coco), moradia (palha para cobrir as casas e fazer paredes) e remédio (ação cicatrizante). “Por isso que a gente traz essa nova proposta de ser humano, de produção, de gerar renda e alimento saudável sob a luz da agroecologia. Tudo isso para ajudar nessa oposição que a gente faz ao Matopiba. Para continuar tendo o coco e a vida de quebradeira”, resume Rosalva.

Bahia – A grilagem e a luta pelo território

Lusineide dos Santos, moradora de Cacimbinha, cidade baiana a 130 KM do núcleo urbano de Formosa do Rio Preto, reconhecida como uma das maiores receitas agrícolas do Brasil, relata como a vida nos vales foi transformada com a chegada das grandes fazendas e os conflitos vividos antes da Justiça decidir a posse da terra da comunidade. Água escassa, erosões nas chapadas e o medo de desenvolver doenças causadas pelos agrotóxicos das lavouras vizinhas são problemas diários da comunidade. Há 40 anos empresas de commodities se instalaram na região e hoje contam com uma área forrada de lavouras, conquistadas com investimentos em maquinários e tecnologia para produção mecanizada. Porém, o crescimento do setor e das fazendas de soja tem sido uma experiência traumática para a comunidade. Irregularidades como compra de títulos forjados, invasões, violação de direitos humanos, expulsão de moradores estão entre os principais conflitos na região, deixando os moradores encurralados por lavouras de monocultura. Além destes problemas, a comunidade não conta com energia elétrica e dependem de placas solares que sempre apresentam problemas. Sem falar das estradas esburacadas – rodeadas de plantações de soja. Ou seja, uma região rica do setor agrícola e uma população extremamente pobre, vivendo no isolamento e à luz de velas. 

Distrito Federal – Um polo de articulação

É no Distrito Federal, região predominante dentro do Cerrado, que Ipês e outras árvores nativas resistem florindo. Estamos falando da capital do Brasil onde pesquisadores, indígenas, quilombolas, agricultores e raizeiras se reúnem há mais de duas décadas para promover a tradição, fazer reflexões sobre políticas públicas e debater em defesa da conservação do Cerrado. Este é o foco do Encontro dos Povos. É importante lembrar que o bioma concentra oito das 12 regiões hidrográficas brasileiras que abastecem seis das oito grandes bacias hidrográficas do Brasil. Porém, o avanço da monocultura tem afetado os recursos hídricos em várias regiões, onde dezenas de comunidades presenciaram suas nascentes secarem depois da chegada de plantações de eucalipto, por exemplo. Para conter a devastação ambiental, em 2019, comunidades tradicionais apresentaram uma petição na Câmara dos Deputados para transformar o Cerrado e a Caatinga em patrimônio nacional.

Mato Grosso do Sul – A expansão da monocultura

É na simplicidade e no olhar cuidadoso que Rosane Sampaio, moradora do assentamento de reforma agrária Andalucia, reconhece “que tirar todas as plantas para fazer pasto não é o melhor”. Conhecida como Preta, ela é uma referência no conhecimento de práticas sustentáveis para comunidades rurais de Mato Grosso do Sul e líder do Centro de Produção, Pesquisa e Capacitação do Cerrado. A população que antes enxergava o mato como algo feio e que o retirava para abertura de pastos, hoje atua com agricultura familiar e conta com técnicas de extrativismo, agroindústria de beneficiamento de frutos nativos (baru, bocaiúva, laranjinha-de-pacu, jaracatiá) e castanhas, por meio de um trabalho de conscientização sobre a importância da preservação. O resultado pode ser apreciado nas geleias, polpas, mel de cumbaru, artesanatos, entre outros. Um bom exemplo que prova que não é preciso desmatar para produzir e gerar renda para a população local.

Tocantins – Experiência e coexistência

Conviver coletivamente há mais de 200 anos: é assim a história da comunidade quilombola Mumbuca. Localizada no Cerrado de Tocantins, fora do eixo das grandes metrópoles, no meio do Jalapão, que a população habita a região de maneira harmônica com o meio ambientes e suas riquezas naturais, como o oásis de águas cristalinas, em pleno clima semiárido. A distância dos centros urbanos fez com que muitas gerações ficassem sem certidão de nascimento, mas para os mumbucas o registro estava na fala. “Temos outra lógica do tempo, temos a lógica dos acontecimentos e não de calendários ocidentais”, declara Ana Mumbuca. Para ela, a matriz que orienta seu pensamento vem de lógicas africanas e indígenas, mais conectada a fatos e passagens. Os anos são identificados como “o tempo da grande chuva de granizo” ou “a época em que a lagoa Bilau secou”. E com a sabedoria ancestral, a comunidade desenvolveu sistemas agrícolas e aprendeu a manejar o solo arenoso, as chamadas Roças de Esgoto ou de Rego, de maneira integrada e equilibrada com o bioma, seja na colheita de frutos ou na criação de animais.

São Paulo – A menor porção que há

A região que habita a menor área da savana brasileira já viveu tempos bem diferentes. A capital paulista um dia foi Cerrado. Ela era um ponto de encontro de matas e campos, com várzeas dos rios Tietê e Tamanduateí, ainda na época que as terras eram dos Tupiniquins. Registros apontam que no início do século XX a região tinha 18,2% do território coberto pelo bioma e 100 anos depois menos de 1%. O Cerrado paulista era considerado como um ‘mato qualquer’ e demorou para entrar na agenda de conservação ambiental. Hoje temos apenas mini áreas fragmentadas, ilhas de vegetação frágeis – que não conseguem garantir a perpetuação das espécies endêmicas. E que, sozinhas, não permitem a continuação do ciclo de abastecimento de água. Resistentes ao tempo alguns símbolos como a Cidade da Universidade de São Paulo (USP) – com uma parte alta do terreno com espécies raras do Cerrado – e a área de reserva no bairro do Jaraguá – fechado para a população. Sem falar dos imponentes pés de Ipê, Murici e Araçá.

Paraná – A Savana mais ao Sul

Uma região bastante devastada. O Cerrado no Paraná ocupava cerca de 1% do território do estado, mas hoje estima-se que restem apenas 0,24% da área, sendo que quase a metade está dentro de unidades de conservação. A degradação do bioma é resultado do desmatamento para a agricultura, pecuária e a silvicultura, além da ausência de políticas públicas de proteção ambiental. As principais áreas remanescentes são o Parque Estadual do Cerrado, no norte do Estado, que ainda abriga lobos guarás, tamanduás bandeiras e árvores características do bioma, e a Área de Proteção Ambiental (APA) Escarpa Devoniana com uma paisagem marcante, que une os pinheiros dos campos gerais e os arbustos retorcidos do Cerrado. Outro conflito na região envolve ruralistas e ambientalistas sobre o mapeamento e a utilização da APA, além de uma mineradora que alega que a área não deve ser vista como unidade de conservação.

 

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 23/03/2021

 

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