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Cana migra para o Centro-Oeste e vira terreno ‘fértil’ para problemas socioambientais

 

A expansão do plantio de cana-de-açúcar para o Centro-Oeste do Brasil vem trazendo vantagens econômicas de curto prazo que escondem problemas sociais e ambientais que tendem a se agravar por conta das mudanças climáticas, dizem pesquisadores ligados ao Projeto AlcScens, um grupo interdisciplinar de pesquisas coordenado por Jurandir Zullo Jr., coordenador da Coordenadoria de Centros e Núcleos Interdisciplinares de Pesquisa (Cocen) da Unicamp e pesquisador do Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura (Cepagri) da Universidade.

“A região tradicional do plantio de cana, em São Paulo, continua sendo uma área de baixo risco climático para o agricultor, considerando as plantas atuais. Mas, na região mais central do país, aparece a necessidade de irrigação. Isso é uma preocupação, até pela disputa dos recursos hídricos”, disse Zullo ao Jornal da Unicamp, resumindo os resultados dos cenários simulados pelo AlcScens para o período até 2050.

Uma alternativa à irrigação, que seria o desenvolvimento de variedades de cana mais resistentes à seca, ainda é incipiente e pode levar décadas para se materializar, disse ainda o pesquisador. “Uma preocupação é que a maior parte das variedades de cana plantadas no Brasil ainda é da década de 80. Isso mostra bem a necessidade de desenvolver novas plantas. Isso é preocupante. A tendência é o desenvolvimento de variedades mais específicas por região, e também de variedades específicas para álcool, ou açúcar, ou energia. É para onde os programas estão caminhando, mas sempre tem um tempo longo”, acrescentou.

Se a disputa pela água, que tende a se tornar um recurso cada vez mais escasso nos Estados do Centro-Oeste para onde a cana está migrando, como Goiás, ainda está no futuro, a competição entre a cana-de-açúcar e culturas voltadas à produção de alimentos já acontece, com riscos potenciais para a segurança alimentar da população.

“O que vi em minha pesquisa de doutorado, quando visitei a região, foi que a cana está se expandindo para além do Estado de São Paulo, em razão das áreas limitadas para a expansão da produção, e está caminhando principalmente para Goiás e Mato Grosso do Sul”, disse Vivian Capacle, doutoranda do Instituto de Economia (IE) da Unicamp, pesquisadora também ligada ao AlcScens. “Goiás, hoje, é o principal produtor de cana do Centro-Oeste. E lá, a cana chega ocupando áreas que antes eram para a produção de alimentos. Por exemplo, arroz e feijão já não têm mais uma produção significativa naquela região, porque a cana está ocupando essas áreas”.

 

Desmatamento

O plantio de cana-de-açúcar no Centro-Oeste também empurra a produção de gado mais para o norte do país, aumentando a pressão de desmatamento sobre a Amazônia. “O arroz e o feijão não estão indo para outros lugares. A pecuária está se deslocando para outras áreas, mas arroz e feijão, que são culturas tradicionais de alimentos, não”, disse a pesquisadora. “Estão realmente sendo eliminados da esfera de produção nessas regiões”.

Tanto Vivian quanto Tirza Aidar, pesquisadora do Núcleo de Estudos de População (Nepo) da Unicamp, que também atua no AlcScens, advertem que não é possível afirmar que essa substituição vai gerar fome nas regiões afetadas, já que a dinâmica social e econômica é complexa: se, por um lado, o preço dos alimentos tende a aumentar, o ganho de renda trazido pelo plantio da cana pode compensar isso.

“A substituição tende a gerar um aumento no preço dos alimentos. Então, a população local terá de buscar esses alimentos em outras regiões, com certeza com um preço mais alto, e aí acaba impactando, sim, a segurança alimentar”, disse Vivian.

No momento, porém, as administrações públicas da região parecem fascinadas demais pela riqueza rápida trazida pela cana para se preocupar com eventuais problemas no longo prazo.

“No Centro-Oeste, os Estados não têm zoneamento específico sobre isso em relação a reorganizar o espaço produtivo. Quando estive lá, visitei as secretarias e perguntei sobre os zoneamentos, se poderiam orientar a ocupação pela cana, a preservação do meio ambiente. E eles não têm. Não têm conhecimento disso, e parece que também não têm interesse nisso”, relatou a economista.  “Conversei com o prefeito de um município e ele disse que queria mais é que a cana se expandisse, ocupasse áreas. Cresceu absurdamente a arrecadação, e ele pôde construir creches, hospitais. A visão é de curto prazo, para os governos ali o que conta é o crescimento econômico”.

Além de constatar o aumento da pressão sobre os recursos hídricos, a segurança alimentar e o meio ambiente, pesquisadores do AlcScens também veem, na migração da cana para o Centro-Oeste, o potencial de novas tensões sociais: à medida que as terras são vendidas ou arrendadas para os grandes produtores canavieiros, a tecnologia e o conhecimento necessários para o aproveitamento do solo em outros tipos de cultura tendem a se perder.

“Depois que você arrenda, se você vai retomar dali a dez anos, a tecnologia está completamente alterada e você não tem mais condição, a sua família e as pessoas ao seu redor, de acompanhar aquele desenvolvimento”, explicou Tirza. “Então, isso impede, como um fator de impacto sócio-político-educacional, que se retome a atividade, mesmo que você queira”. O processo, disse ela, gera um efeito cascata que leva à desvalorização da propriedade rural. “A situação vai obrigando que o arrendamento se perpetue, e isso faz com que diminua o valor da terra”.

Claudia Pfeiffer, pesquisadora do Laboratório de Estudos Urbanos (Labeurb), coordenadora do Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade (Nudecri) e também ligada ao projeto interdisciplinar sobre os efeitos das mudanças climáticas sobre a cana, lembrou que a cultura canavieira traz consigo uma série de demandas próprias, que acaba monopolizando a economia local.

“Essas demandas vão se agregando numa monocultura, e o território onde ela se instala fica totalmente voltado para a cana. Seja para o plantio, seja toda a infraestrutura de serviços necessária para alimentar a usina. E aí o que acontece: no momento em que se fecha uma usina, aquele território onde ela estava instalada fica absolutamente vulnerável”.

Os pesquisadores do AlcScens ouvidos pelo Jornal da Unicamp acreditam que a expansão da cana-de-açúcar do interior paulista para o Centro-Oeste é um movimento que deve continuar e que não será revertido, por causa da limitação dos espaços de expansão em terras paulistas e das necessidades da mecanização da lavoura: as máquinas não suportam grandes declives de terreno, requerem um solo plano, o que é abundante na região central do país.

A mecanização, em si, traz benefícios sociais, com a eliminação de formas predatórias de trabalho, e também para a saúde: artigo recente, de coautoria de Bruno Perosa, professor da Universidade Federal de Uberlândia e também pesquisador do AlcScens, aponta uma redução de quase 9% no total de internações por problemas respiratórios, em cidades paulistas produtoras de cana, entre 2006 e 2011. Nesse período, a proporção da área de canavial com colheita mecanizada passou de 30% para 65%. Mas também há problemas, como o desemprego resultante, que pode estar sendo mascarado pelo momento atual da economia brasileira, e o surgimento inesperado de uma nova forma de subemprego.

“A gente ficou muito chocada com isso, um trabalho reservado exclusivamente para as mulheres”, disse a socióloga Roberta Peres, do Nepo, descrevendo condições encontradas em alguns municípios paulistas. “Um trabalho absolutamente degradante, que é ir à frente das máquinas, retirando pedras, e tirando bichos para não atrapalhar o rendimento das máquinas. É um emprego que apareceu com a mecanização da colheita, numa situação absolutamente precária para elas, que ganham quase nada”.

O Projeto AlcScens já publicou dois relatórios, disse Jurandir Zullo Jr, deve apresentar mais um em novembro e, no ano que vem, publicar uma síntese com a integração dos resultados das pesquisas realizadas. “Estamos coletando vários dados e integrando”, disse ele. Entre seus objetivos está informar a tomada de decisões por agentes públicos e, também, levar o conhecimento sobre os efeitos das mudanças climáticas à população brasileira, com um viés de divulgação científica, que envolve também o Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (LabJor) da Unicamp.

Zullo disse que há uma tendência de os brasileiros acharem que o aquecimento global é um problema “dos outros” – algo real, mas que deve afetar apenas ursos polares, ou geleiras distantes. O trabalho do AlcScens, mesmo focado na questão da cana-de-açúcar, chama atenção para os impactos do fenômeno no Brasil. “Há a questão da disputa por água, e também dos deslocamentos de população”, exemplificou.

O AlcScens envolve 26 pesquisadores, a maioria da Unicamp. Além de centros, núcleos, institutos e faculdades da universidade, participam também estudiosos da Embrapa, do Inpe e da Universidade Federal de Minas Gerais.  Até agora, as pesquisas realizadas no âmbito do projeto já produziram quatro teses e dissertações, além de dez artigos em periódicos indexados, dois em periódicos não-indexados, 52 trabalhos em eventos  nacionais e internacionais e seis capítulos de livros.

Texto: CARLOS ORSI
Fotos: Divulgação / Antoninho Perri
Edição de Imagens: Diana Melo

Matéria no Jornal da Unicamp, Nº 577, publicada pelo EcoDebate, 02/10/2013


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