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O campo não é prioridade, artigo de José Batista Gonçalves Afonso e Airton dos Reis Pereira

Embora o III PNDH reconheça que o modelo do agronegócio é potencialmente responsável por desrespeito aos direitos humanos dos pequenos e médios agricultores, comunidades locais e povos tradicionais, ele não contém nenhuma proposta que altere de fato as causas das violações

O Brasil é considerado um dos países que mais avançou na codificação de normas relativas aos direitos humanos. Além da legislação constitucional e infraconstitucional, o país é signatário dos principais pactos e convenções internacionais que versam sobre o assunto. No entanto, a sociedade brasileira não tem muito que comemorar. Saímos de uma situação de violações sistemáticas e generalizadas dos direitos humanos, dirigidas diretamente pelo Estado durante o regime militar, e entramos numa situação mais recente onde, em consequência da ofensiva de várias frentes do capital no campo, se promove uma crescente exclusão social, igualmente impetuosa e desumana. Temos que considerar, infelizmente, que os avanços aconteceram mais no campo formal do que no campo prático. O descompasso entre a norma e sua aplicação é enorme.

Assim, passaram-se os anos e mudaram-se formas de governo, mas a concentração da terra nas mãos de poucos continuou quase intocável. Nem as históricas lutas dos trabalhadores em defesa da reforma agrária conseguiram acabar com o latifúndio. Segundo o Censo Agropecuário 2006, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem no Brasil 5.175.489 estabelecimentos agrícolas, ocupando uma área de 329.941.393 hectares. Os minifúndios e as propriedades com menos de 100 hectares representam 85% deles e apenas 21% da área total. Já as grandes propriedades, acima de mil hectares, são 1% do total de imóveis e ocupam 45% da área.

Ao mesmo tempo, a reforma agrária continua fora da pauta de prioridades dos sucessivos governantes. Segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) em 2006 foram assentadas 45 mil famílias, em 2007, 31 mil e 2008, apenas 20 mil. Os números expressam o grau de importância desse assunto para o governo de Luiz Inácio Lula da Silva: quase nenhuma.

Essa situação tem sido a principal causa dos conflitos no campo e das variadas formas de violação de direitos dos camponeses no Brasil. De acordo com os dados divulgados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), na última década, ocorreram no Brasil 5.335 conflitos no campo envolvendo 6.387.210 pessoas e 352 trabalhadores rurais foram assassinados.

E como se não bastasse, permanece a prática do trabalho escravo no campo. A situação continua grave e sem grandes alterações em função das tímidas ações governamentais. Nos últimos dez anos, a CPT registrou o envolvimento de 63.757 trabalhadores em situações de escravidão no Brasil. E desse total, o Ministério do Trabalho conseguiu libertar somente 38.003 pessoas. Isso significa que as políticas públicas adotadas têm se mostrado ineficazes à medida que não combatem as causas geradoras dessa prática criminosa, restringindo-se ao campo repressivo.

Envolvidas nesse processo estão também as populações indígenas. Conforme o último relatório divulgado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em 2008, 41 povos indígenas sofreram alguma forma de violência (invasão de suas terras, exploração ilegal de recursos naturais, danos diversos ao patrimônio e violência física). Ocorreram 16 conflitos relativos a direitos territoriais, 60 indígenas foram assassinados, 29 sofreram tentativa de assassinato, 12 sofreram ameaças de morte e 34 foram vítimas de suicídio.

O que se vê é que, mesmo diante das garantias constitucionais asseguradas a partir de muita mobilização e lutas dos povos indígenas e da sociedade de modo geral, o poder público tem se negado, sistematicamente, a garantir a proteção de seus direitos, principalmente, no que concerne à defesa de seus territórios e suas vidas. Constata-se que a maioria dos casos advém da invasão de suas terras. Enquanto isso, a demarcação e homologação dos territórios indígenas andam a passos lentos.

Outra situação grave é com relação às comunidades de remanescentes de quilombos. Até 2008, existiam no Brasil, 3.524 comunidades quilombolas registradas pelo governo federal. Porém, dados mostram que, até 2007, apenas 58 áreas, pertencentes a 112 comunidades, foram tituladas, beneficiando 5.221 famílias. A situação não tem sido diferente para outras categorias do campesinato, como posseiros, ribeirinhos e assentados, entre outros.

Se por um lado a violência no campo assusta, a impunidade choca muito mais. Quem sempre se utilizou da “lei do gatilho” e da pistolagem para garantir seus interesses tem se beneficiado da impunidade para acobertar os crimes contra os trabalhadores rurais ou ao meio ambiente. No Pará, que concentra praticamente 2/3 dos assassinatos no campo, no Brasil, não há um mandante cumprindo pena em razão de ter encomendado a morte de trabalhadores e suas lideranças. Um exemplo é o massacre de Eldorado de Carajás. Passados 14 anos, os dois únicos comandantes condenados continuam livres, beneficiados pelos intermináveis recursos nos tribunais superiores. No Brasil a impunidade parece ser a regra para os casos de crimes no campo e funciona como uma espécie de “licença para matar”.

Desconstrução de conquistas

Como o Estado brasileiro tem se negado a garantir o direito à terra àqueles que o reclamam, a estratégia dos trabalhadores tem sido a ocupação de imóveis que não cumprem a função social, exigindo a demarcação de áreas indígenas, de quilombolas, de ribeirinhos, áreas de proteção ambiental, reservas extrativistas etc. como forma legítima de defesa de pressão para forçar o governo a cumprir com o que determina a Constituição Federal.

Esse processo tem provocado uma reação violenta de velhos e de novos atores que concentram terras e têm fortes influências sobre os poderes Legislativo, Executivo, Judiciário e o Ministério Público.

No atual governo, os setores que comandam a expansão das frentes do capital no meio rural e sustentam o atual modelo de desenvolvimento para o campo estão cada vez mais fortalecidos. Além de manter em curso a política de desconstrução de direitos já conquistados, de perseguição e criminalização dos movimentos sociais e das populações camponesas, estão conseguindo impor na pauta do Congresso projetos que tem como objetivo aumentar o controle e a concentração da terra e apropriar das riquezas do solo e subsolo. Entre as principais medidas já aprovadas ou em processo de aprovação está a MP 458, convertida na Lei 11.952/09 que permite a legalização das terras griladas na Amazônia.

Como o governo aderiu a esse modelo econômico e se aliou politicamente a esses setores, o dinheiro público para o investimento em grandes obras tem procurado responder aos interesses do agronegócio, em detrimento do direito dos camponeses. Para cada real investido na agricultura familiar, são dez destinados ao agronegócio. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) está em sintonia perfeita com as frentes de expansão do capital no campo, na medida em que centra os recursos na abertura de rodovias, na implantação de hidrovias, ferrovias, portos e na construção de barragens que possam estimular maiores investimentos do capital nacional e internacional em áreas rurais, principalmente, em direção à Amazônia.

Para garantir os acordos políticos com esses setores, o governo trata ainda de engavetar projetos e políticas de interesse dos camponeses e dos indígenas. Excluiu a reforma agrária das prioridades de governo, não assumindo inclusive o Plano Nacional de Reforma Agrária; não assumiu compromisso com a campanha do limite da propriedade da terra; adiou a proposta de mudanças nos índices de produtividade para as grandes propriedades; não potencializou a desapropriação por descumprimento da função social; não priorizou a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 438 que autoriza o confisco das propriedades onde fora flagrado crime de trabalho escravo; não avançou na demarcação e homologação de terras indígenas e de territórios quilombolas; e não viabilizou a agricultura familiar e camponesa como alternativa de produção de alimentos para o país.

Embora que o conteúdo do III Programa Nacional de Direitos Humanos, afrontado pelos militares, ruralistas e empresas de comunicação, traga reflexões importantes ao reconhecer que o modelo do agronegócio é um sistema potencialmente responsável por violações de direitos humanos dos pequenos e médios agricultores, comunidades locais e povos tradicionais, este não contém nenhuma proposta de mudança legislativa ou constitucional que possa alterar as causas geradoras das violações dos direitos humanos no Brasil e potencializar os direitos dos trabalhadores rurais.

José Batista Gonçalves Afonso é advogado e agente da Comissão Pastoral da Terra, em Marabá, Sudeste do Pará; Airton dos Reis Pereira é professor da Universidade Estadual do Pará e colaborador da CPT em Marabá. Airton dos Reis Pereira professor da Universidade Estadual do Pará e colaborador da CPT em Marabá.

Artigo socializado pelo Le Monde Diplomatique Brasil e publicado pelo EcoDebate, 27/04/2010

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