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Segurança alimentar: Uma mesma crise, uma só humanidade, artigo de José Graziano da Silva

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[Valor Econômico] Não se pode falar em segurança alimentar sem se contemplar a dimensão especulativa na formação dos preços

Não é sempre que a geografia expressa de forma tão fiel os impasses da história. Mas a reunião dos ministros de Agricultura dos países desenvolvidos, também chamada de G-8 Agrícola, realizada numa península isolada da ilha italiana da Sardenha, surge como a metáfora pronta dos impasses do nosso tempo. O principal deles remete a um sistema de governança mundial incapaz de equacionar os desafios colocados pela primeira grande crise do Século XXI.

O saldo das discussões não poderia ser mais ilustrativo desse desencontro entre tempos, forças e agendas que convivem, mas já não interagem. Sem a voz dos países pobres e nações em desenvolvimento, que tiveram participação apenas residual nos debates, o G-8 Agrícola valeu-se de um mandato do passado para tentar decidir a sorte do futuro.

Seu triste veredicto foi que a Meta do Milênio para a redução da fome e miséria no planeta tornou-se inviável com a atual crise mundial. O compromisso de reduzir o número de famintos à metade até 2015 – ressalte-se, um compromisso intermediário, não o fim do Primeiro Objetivo de Desenvolvimento do Milênio – arde na imensa fogueira que também derrete investimentos, comércio, empregos, salários e outros indicadores sociais atropelados pela crise.

Valeu-se o G-8 desse sumidouro para emprestar “legitimidade” à tese de que não há mais como sustentar compromissos assumidos há quase nove anos, quando 189 nações subscreveram oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio.

O argumento soa paradoxal. A luta contra a fome não pode depender do retorno a uma “normalidade econômica” num planeta já habitado por quase um bilhão de famintos.

A persistência da fome indica, ela própria, a calcificação de desequilíbrios estruturais profundos, ora expressos no idioma das finanças como agora, ora nas crises inflacionárias dos anos 90, ou no default da dívida, na década de 70, mas sempre reiterados nas estatísticas da miséria.

As Metas do Milênio, é bom não esquecer, foram uma resposta à “década perdida” dos anos 90, quando “consensos” otimistas acerca do pleno funcionamento dos “mercados racionais” andaram de mãos dadas com a irracionalidade social.

O Fome Zero resultou dessa compreensão profunda de que a convergência entre riqueza e acesso não pode ser delegada a supostos automatismos econômicos. Esse aprendizado também balizou a implantação da Iniciativa América Latina e Caribe Sem Fome, impulsionada pela FAO em toda região.

As reformas que a crise financeira mostrou serem inadiáveis para regular o mundo do dinheiro têm equivalentes na esfera da segurança alimentar. Qualquer diferença de tratamento entre as duas urgências poderia sugerir que há duas humanidades e duas crises em jogo, e não duas dinâmicas fortemente interligadas por relações históricas de causa e efeito.

Um mês antes do G-8 Agrícola, um robustecido G-20 reuniu-se em Londres para reformar o sistema financeiro global ampliando e endurecendo a regulação de bancos e fundos hedge. O FMI foi elevado à condição de seu braço executivo, com promessas de aportes que triplicam para U$ 750 bilhões seu poder de fogo.

No total, já foram destinados quase US$ 9 trilhões para enfrentar a crise financeira e econômica. Enquanto isso, o mutirão da fome aguarda aportes adicionais mais modestos: US$ 30 bilhões por ano são necessários para evitar que o núcleo duro das Metas do Milênio fracasse.

A ninguém interessa que 2009 repita “o crash de 29”, por isso é preciso tomar medidas nos âmbitos financeiro e econômico para evitá-la. Se há lição a extrair do cavalo-de-pau que em sete meses trocou as manchetes da “exuberância” pelas do colapso, é a de que a lógica dos mercados não pode prescindir da mediação dos consensos políticos, do contrário ela enlouquece.

O consenso e ação também são imprescindíveis quando se discute a segurança alimentar, no entanto o G-8 Agrícola não avançou como o G-20. O encontro dos ministros de Agricultura dos países desenvolvidos reconheceu na questão alimentar uma ameaça à segurança global, mas se omitiu nas providências para equacioná-la.

Outros temas urgentes também mereceram apenas um registro tangencial no encontro. Entre eles, a necessidade de uma coordenação mundial para manter estoques de emergência de grãos, a exemplo do que Keynes defendera premonitoriamente para matérias-primas em geral nas sessões preparatórias de Bretton Woods, em 1944. Hoje uma agenda de atualidade latejante.

A verdade é que não se pode falar em segurança alimentar hoje sem se contemplar a dimensão financeiro-especulativa na formação dos preços das commodities e, em particular, dos alimentos. Vencer a fome implica, por exemplo, disciplinar a arquitetura dos mercados futuros de grãos.

Mercados futuros negociam várias vezes a safra mundial de grãos gerando, não raro, impactos deletérios no abastecimento real das populações. A referência que as bolsas de mercadorias propiciam ao cálculo agrícola deve ser preservada, mas precisa recuperar a função original de salvaguardar margens em um negócio exposto aos humores da natureza. Sem medidas correlatas às desenhadas pelo G-20, isso não acontecerá.

Imaginar que a lógica financeira será capaz de contemplar o escopo de urgências do nosso tempo é repetir no enfrentamento da crise os mesmos erros que originaram a sua eclosão. Esse reconhecimento possibilita a renovação da luta contra a fome: a crise vem libertar a luta pela segurança alimentar dos equívocos e das conveniências que frequentemente a relegaram ao segundo plano.

A verdade é que a fome não pode e não precisa mais existir no Século XXI. Já há um amplo consenso sobre a necessidade de agir, que precisa ser traduzido em ações concretas, de contundência equivalente ao que se ensaia no âmbito financeiro. Para isso são necessárias leis e instituições.

Por isso, a FAO promoverá no Dia Mundial da Alimentação, 16/10, na Assembleia Legislativa de São Paulo, a criação de uma Frente Parlamentar Regional contra a Fome para apoiar países que discutem leis de segurança alimentar semelhantes às que já existem na Argentina, Brasil, Equador, Guatemala e Venezuela.

O ponto de partida é claro: vivemos uma mesma crise, somos uma só humanidade.

José Graziano da Silva é representante da FAO para América Latina e Caribe

* Artigo originalmente publicado no Valor Econômico.

[EcoDebate, 18/06/2009]

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