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Artigo

A readequação do Estado aos interesses do capital. O crescimento da pobreza e da fome no mundo, artigo de Horacio Martins de Carvalho

A READEQUAÇÃO DO ESTADO AOS INTERESSES DO CAPITAL. O CRESCIMENTO DA POBREZA E DA FOME NO MUNDO1

Horacio Martins de Carvalho

(Curitiba, Brasil, maio de 2009)

SUMÁRIO

Preâmbulo…..1

1. Pobreza e fome no mundo…..2

2. As ambiguidades das expectativas populares…..9

3. O Estado neoliberal como salvaguarda do capitalismo…..12

4. O desafio das lutas de resistência social…..17

PREÂMBULO

Se da vida nasce a vida,

é livre o sonho e a fantasia,

e nada impedirá a felicidade.

Poucas vezes se constatou na história da Humanidade tanta indiferença, hipocrisia e cinismo dos governos nacionais, dos organismos internacionais e das classes dominantes com relação a mais de um bilhão de pessoas em situação de pobreza e subalimentação.

As causas dessa pobreza e subalimentação são conhecidas, assim como as soluções prováveis. No entanto, como a superação das atuais condições de vida das pessoas pobres e subalimentadas se transformou num negócio sob a égide da racionalidade neoliberal, as iniciativas para equacionar tal exclusão social deixaram de ser uma questão de direitos universais para se reduzirem à mesquinhez da rentabilidade comercial das ações possíveis.

A crise financeira global que se está vivenciando mostrou que há recursos públicos disponíveis para salvar os bancos e as grandes empresas nacionais e transnacionais das consequências explícitas da especulação, da fraude e da sordidez em que os seus negócios se reproduziam e reproduzem. Porém, mantida a concepção de mundo da ideologia capitalista onde o valor central é a vida como negócio, será impossível se eliminar as causas dos sofrimentos das pessoas pobres e subalimentadas sem romper com o paradigma de sociedade em que se vive.

A superação dessa desumanidade exige ação integrada dos povos que desejam encontrar e instituir uma solução global que seja portadora de uma diversidade que contemple outros paradigmas para as sociedades de todo o mundo, e que sejam capazes de canalizar as esperanças e desejos de superação das causas das desigualdades sociais, das discriminações étnicas e as de gênero e incorporem uma nova relação dos homens com a natureza.

Essa busca de superação do modelo único imposto às atuais sociedades em todo o mundo pelos interesses de reprodução ampliada do capital deverá exigir cada dia mais que a resistência social e as propostas de alternativas para novas formas de sociedade sejam explicitadas no campo complexo e difícil da luta ideológica contra as concepções neoliberais do mercado desregulamentado e do Estado a serviço do capital.

Não seria em demasia recordar o que nos alertou Bantu Steve Biko2 quando da explanação de suas idéias sobre a ‘consciência negra e a busca de uma verdadeira humanidade’: “(…) O negro quer, portanto, explorar por conta própria o ambiente em que vive e testar suas potencialidades — em outras palavras, conquistar a liberdade por quaisquer meios que considerar adequados. Na essência desse pensamento está a compreensão dos negros de que a arma mais poderosa nas mãos do opressor é a mente dos oprimidos. Se dentro do nosso coração estivermos livres, nenhuma corrente feita pelo homem poderá nos manter na escravidão; mas se nossa mente for manipulada e controlada pelo opressor a ponto de fazer com que o oprimido acredite que ele é uma responsabilidade do homem branco, então não haverá nada que o oprimido possa fazer para amedrontar seus poderosos senhores. Por isso, pensar segundo a linha da Consciência Negra faz com que o negro se veja como um ser completo em si mesmo. Torna-o menos dependente e mais livre para expressar sua dignidade humana. Ao final do processo, ele não poderá tolerar quaisquer tentativas de diminuir o significado de sua dignidade humana.”

É sugiro que tenhamos presente na leitura deste texto a convicção de Miguel Palacin Quispe3, Comunitário de Vicos e Coordenador Geral da CAOI4, quando afirma que (…) Mantemos nosso apego à terra, montanhas, bosques, lagos, à Pachamama (em Runa Simi) ou Ñuque Mapú (em Mapuche); mantemos nosso ‘mandar obedecendo’ pelo qual nossas autoridades devem escutar e obedecer muito à comunidade antes de querer nos dirigir; e desde aí, desde nossas reservas comunitárias respondemos que já é hora de terminar este longo velório do Estado Uni Nacional e de enterrá-lo, de substituí-lo por novos Estados PluriNacionais, Comunitários, de Unidade na Diversidade, com políticas públicas que procurem a harmonia entre Natureza, Sociedade e Cultura, o que chamamos o Sumaq Kawsay em Quechua, Sumaq Qamana en Aymara”.

1. POBREZA E FOME NO MUNDO

No dia 2 de abril deste ano (2009) os chefes de Estado, presidentes da república e monarcas dos paises que constituem o denominado G205, reunidos em Londres, Reino Unido, apresentaram ao mundo um plano global numa escala inédita6 para enfrentar a crise financeira mundial. Segundo os principais pontos desse plano se pretende, como uma das soluções básicas para a crise financeira, reforçar os organismos internacionais como o Fundo Monetário Internacional – FMI, o Banco Mundial – BM e a Organização Mundial do Comércio – OMC, ou seja, foram definidas mais ações favoráveis à afirmação e fortalecimento do mercado e da concorrência desigual como fundamento para a reprodução das sociedades sob a égide do capital financeiro mundializado. Afirmaram que “(…) nós somos confrontados com o maior desafio lançado à economia mundial dos tempos modernos… Uma crise mundial exige uma solução global”7. A solução global é mais neoliberalismo e mais exclusão social.

Os principais pontos desse plano global ignoraram a questão agrícola mundial, ainda que, “(…) segundo a FAO8, mais de um bilhão de pessoas vão sofrer de subalimentação em 2009, contra 963 milhões no final de 2008 (…)9. E essa atitude além de evidenciar absoluto desprezo com relação à população pobre e em situação de subalimentação em todo o mundo, quiz mostrar a todos que a crise financeira seria uma problemática restrita aos bancos, aos interesses do capital financeiro. Ademais, aparentaram desconhecer que o Relatório preparado para a reunião sobre agricultura do G810 (paises esses que integram o G20) já estava elaborado para a reunião desse Grupo que se realizaria logo a seguir entre os dias 18 a 20 de abril deste ano na Itália, e no qual se alertava para o agravamento da crise agrícola e do aumento da pobreza no mundo. De acordo com a própria FAO, seriam suficientes 30 bilhões de euros por ano para o combate à fome, reavivando a agricultura camponesa em todo o mundo.

No final de 2008 a CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina, da ONU) já havia alertado para a frustração das iniciativas governamentais e privadas para a redução das desigualdades sociais. “Já passou metade do prazo de 15 anos para o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio – ODM (um conjunto de metas socioeconômicas que os países da ONU, o Brasil inclusive, se comprometeram a atingir até 2015 – HMC). Os resultados globais demonstram que, apesar dos importantes avanços, ainda há muito a ser feito. Hoje, temos certeza de que o alcance dos ODMs só será efetivo se conseguirmos reduzir as desigualdades entre países, regiões, mulheres e homens, brancos, negros e indígenas, ricos e pobres. E também se houver novos consensos para evitar fatores como as mudanças climáticas e a crise alimentar mundial, que ameaçam reverter os progressos já feitos (…)”11

Ora, como se comentará mais adiante, tudo leva a crer que o esforço realizado nesses últimos anos foi exatamente no sentido contrário àqueles necessários para se alcançar os supostos ‘Objetivos do Milênio’, pois, a readequação dos Estados Nacionais, assim como dos organismos multilaterais, para facilitarem a omnipresença da concorrência desigual e dos mercados oligopolizados em todos os setores da economia mundial, caminhava em sentido oposto àquele da redução das desigualdades sociais e do número de pessoas em situação de pobreza e subalimentação. Segundo Diouf (Diretor da FAO), no final de 200812 havia 963 milhões de pessoas subalimentadas, sendo que esse número aumentou em 2008 em aproximadamente 37 milhões de pessoas e em 2007 já havia sido ampliado de 75 milhões de pessoas. O mais dramático é que a expectativa desse Diretor da FAO é que em 2009 a esses 963 milhões de pessoas deverão ser acrescidas mais 104 milhões, alcançando-se então um total, no final de 2009, um total de 1,067 bilhão de pessoas subalimentadas em todo o mundo.

Diouf afirmou, ainda, que a insegurança alimentar afeta principalmente 32 países no mundo e que eles precisam de uma ajuda urgente, alertando que a produção alimentícia mundial tem que ser multiplicada por dois. Esse Diretor, na ingenuidade consentida da tecnocracia dos organismos multilaterais a serviço do grande capital, também exortou os países ricos a cumprirem suas promessas em matéria de ajuda aos países pobres. “Não se pode comparar o trilhão de dólares concedido pelos governos para resgatar o setor financeiro com as somas que são necessárias para permitir às pessoas satisfazerem sua necessidade mais fundamental, o ato de se alimentar”13. Todavia a pobreza está presente em todos os paises do mundo, principalmente, mas não somente, naqueles do hemisfério sul e na maioria dos paises da Ásia. E é na pobreza que a fome se revela.

“(…) A instituição (CEPAL – HMC) entende a pobreza como um fenômeno multidimensional, que associa subconsumo, desnutrição, condições precárias de vida, baixa escolaridade, inserção instável no mercado de trabalho e pouca participação política e social. A pobreza é o resultado de um processo social e econômico de exclusão social, cultural e política. (…) Nos últimos anos houve uma evolução das concepções de pobreza para além da carência de renda, na direção de conceitos mais abrangentes tais como: desigualdade, exclusão social e vulnerabilidade. A desigualdade proveniente da estrutura econômica continua sendo a primeira razão da pobreza. Desigualdade de renda, desigualdade de acesso, desigualdade de meios, desigualdade na detenção de ativos.”14

“(…) A exclusão aparece menos como um estado de carência do que como uma trajetória ao longo da qual, a insuficiência de renda e a falta de recursos diversos soma-se às desvantagens acumuladas pelas pessoas no seu cotidiano miserável. São processos de rupturas, situações de desvalorização social, advindas da perda de status social e da redução drástica das oportunidades. Substituir o enfoque de pobreza pelo de exclusão é levar em consideração a vivência de insegurança, o excluído não controla seu futuro. Esta tem conotação negativa, significa má integração, seja pelo lado do sistema produtivo, seja pelo lado do padrão de consumo. A tônica da exclusão é dada pelo empobrecimento das relações sociais e das redes de solidariedade (…)”15

“(…) Na perspectiva cepalina (da CEPAL – HMC) pobreza e exclusão são fenômenos que atingem de forma diferenciada os sexos. Para as mulheres esta realidade de carências é mais aguda, uma vez que elas realizam uma gama enorme de atividades não remuneradas, seja no âmbito mercantil, seja no seio da família, pela dedicação às atividades do lar que as fazem ser majoritariamente dependentes da provisão masculina para o sustento de suas famílias. Como dentro das famílias há um intenso processo de redistribuição de renda e como há uma variação das necessidades de consumo com a idade das pessoas e as ‘economias de escala’ nas despesas familiares que penalizam as mulheres, responsáveis pelo bem-estar familiar. (…).”16

“(…) O rosto feminino da pobreza (no Brasil – HMC) tem seus traços pintados com a dissolução dos laços familiares que provocou um aumento relativo das famílias cujas pessoas de referência são mulheres. Estas respondem por 27% das famílias pobres e 25% das indigentes. A dramaticidade destes dados fica acentuada quando se olha para as crianças, a proporção destas que vivem com o responsável sem cônjuge passou de 11,2% em 1991 para 16% em 2000 (3,6 milhões de menores), e 50% destas (1,8 milhões) vivem sós com responsáveis mulheres, sem cônjuges (…)”.17

“(…) É importante assinalar que o FMI e sobretudo o Banco Mundial tem uma enorme responsabilidade na crise alimentaria já que são os que recomendaram aos governos do Sul suprimir os organismos de crédito público para os camponeses e colocaram os pequenos produtores agrícolas entre as garras dos financiadores privados (em geral grandes comerciantes), ou de bancos privados que aplicaram taxas de juros usurárias. Isso provocou o endividamento massivo dos camponeses, seja na Índia, na Nicarágua, no México, no Egito ou em numerosos paises da África subsaariana. Segundo as pesquisas oficiais, o sobreendividamento que afetou (a) os camponeses índios é a principal causa de suicídio de 150.000 camponeses na Índia durante os últimos 10 anos. É um país onde precisamente o Banco Mundial teve êxito em convencer às autoridades para que suprimissem as agências públicas de crédito aos agricultores. E isto não é tudo: durante os últimos quarenta nos, o Banco Mundial e o FMI estimularam os paises tropicais a diminuir sua produção de trigo, de arroz ou de milho para substituí-los por cultivos para a exportação (cacau, café, chá, bananas, amendoim, flores…). Finalmente, para completar seus trabalhos a favor das grandes empresas do agronegócio e dos grandes paises exportadores de cereais (começando pelos Estados Unidos, Canadá e Europa Ocidental), conseguiram que os governos abrissem as fronteiras inteiramente para a importação de alimentos, que se beneficiaram das subvenções massivas do Norte, o que provocou a quebra de muitos produtores do Sul e uma forte redução da produção de alimentos para o consumo local (…)”.18

Tanto o Banco Mundial – BM como o FMI mantém o cinismo no seu discurso no âmbito da racionalidade neoliberal. Assim é que no dia 22 de abril deste ano (2009) foi apresentado pelas duas organizações citadas o “Relatório de Monitoramento Global 2009”, onde se afirma que mais de 1,3 bilhão de pessoas vivem na extrema pobreza nos países em desenvolvimento, com menos de US$ 1,25 por dia. John Lipsky, subdiretor do FMI, afirmou que o mundo desenvolvido está enfrentando uma situação de emergência e, segundo ele, a contração econômica mundial reverterá as conquistas na luta contra a desnutrição e tornará especialmente urgente a necessidade de investir no setor agrícola.19 Mesmo assim, na reunião do G20, a abordagem relacionada com a questão agrícola resumiu-se a disponibilizar recursos para a proteção social dos paises mais pobres, ainda que mantendo a exploração que se realiza historicamente dos seus recursos naturais, o ajuste do perfil da produção destinada ao consumo interno para a agroexportação, a adoção de cima para baixo de um modelo tecnológico dependente dos insumos industriais e o controle dos mercados de alimentos pelas grandes empresas transnacionais do agronegócio.

“(…) no último informe sobre Desenvolvimento Humano 2007/2008 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD sobre as mudanças climáticas há um número preocupante que ronda a cabeça das pessoas: em menos de 20 anos, 2,4 bilhões de seres humanos viverão em subúrbios indigentes, lugares onde os ocidentais ricos não colocariam para viver nem seus gatos. Limitando-nos aos subúrbios indigentes dos principais conglomerados urbanos da África, América Latina e Ásia, estima-se que neles mais de um bilhão de seres humanos ‘vivem’ em condições de pobreza duradoura, violência física, social e moral coletiva, exclusões de todo tipo e negação das normas mínimas de existência dignas da qualidade humana.”

“Na realidade, estes assentamentos refletem o crescimento disfuncional das cidades e são os elementos fracos e mais vulneráveis de nossa atual civilização urbana. Enquanto Londres pode gastar 1,2 bilhão de euros anuais para se proteger contra os riscos das inundações, tempestades e outras catástrofes naturais, recentemente os subúrbios de Rangun e Bogolav na Birmânia foram assolados por um ciclone que deixou mais de 50 mil mortos. Seus habitantes eram, simplesmente, pobres.”

“Voltando a atenção para os últimos 30 anos, a partir do momento em que os países do Norte impuseram as Políticas de Ajuste Estrutural ao resto do mundo, não há dúvida alguma de que nem as classes governantes do Norte nem as do Sul (submetidas às primeiras) têm alguma intenção de adotar medidas necessárias para promover o desaparecimento dos subúrbios indigentes e transformá-los em lugares civilizados para seres humanos. O cenário mais provável para os próximos 30 anos é o crescimento ‘inevitável’ dos milhares de milhões que integram a enorme população dos subúrbios indigentes do mundo’ (…)”20

Não somente aumenta em ritmo vigoroso a parcela das populações em situação de pobreza e de fome, como aumenta também a concentração e centralização das empresas transnacionais que exercem o controle sobre os mercados de alimentos em todo o mundo. “(…) as crises atuais tem um contexto de concentração crescente do poder corporativo, apropriação dos recursos naturais e desregulamentação ou leis a favor das empresas e especuladores financeiros, que aumentaram sem cessar nas últimas décadas. Em 2003, o valor global de fusões e aquisições foi de 1,3 bilhões de dólares. Em 2007, alcançou 4,48 bilhões de dólares. Na indústria de alimentos, o valor das fusões e compras entre empresas duplicou de 2005 a 2007, alcançando a 200 bilhões de dólares. O desastre financeiro terminou com algumas empresas, favorecendo oligopólios mais ainda fechados.”21

A ofensiva das empresas transnacionais que são controladoras das tecnologias dos OGMs ( Organismos Geneticamente Modificados) e aquelas que participam do oligopólio dos mercados de alimentos tem pressionado não apenas os governos nacionais, mas, sobretudo os organismos multilaterais como o FMI, Banco Mundial, FAO e outros de caráter regional, a incrementarem seus esforços para a facilitação das mudanças nas leis, normas e procedimentos que possam impedir o ‘livre mercado’ de seus produtos e serviços, neste caso em especial as tecnologias que mantém sob domínio privados por patentes, mas que são ou deveriam ser de utilização pública como as sementes.

A Coréia do Sul (assim como o México, entre outros) é um dos mais marcantes exemplos de Estado-Cliente a serviços dos interesses estratégicos norte-americanos. A efetivação de Tratados de Livre Comércio – TLCs bilaterais com os Estados Unidos coloca não apenas os Estados Liberais desses paises, mas a sua população, como reféns dos interesses dos governos e das grandes corporações transnacionais com sede nos EEUU.

“(…) Coréia do Sul é uma das nações que foi severamente afetada nos últimos tempos pela estratégia estadunidense de utilizar políticas de sanidade animal e vegetal para garantir o controle empresarial corporativo dos EEUU em todos os paises que o permitiram. Em março de 2007 se firmou um acordo bilateral secreto sobre organismos geneticamente modificados (OGMs ou transgênicos), lateralmente à rodada final de negociações do TLC EUA-Coréia do Sul. Esse acordo debilita substancialmente a capacidade da Coréia do Sul para regular o ingresso de transgênicos de origem norteamericana. Não é surpresa, então, que a Organização da Indústria de Biotecnologia com sede em Washington recebera com beneplácito o acordo, e que esse grupo provavelmente tenha sido consultado previamente.”

“Quando a tinta da assinatura do acordo sobre transgênicos apenas estava secando já havia iniciado a aparecer componentes de cultivos transgênicos de origem norteamericana nas provisões de alimentos da Coréia do Sul. Até esse momento as leis sobre transgênicos, e especificamente as normas de rotulagem, haviam impedido basicamente o ingresso de transgênicos no país, exceto alguns utilizados em rações para animais, óleo de soja e molho de soja. Mas, ao final de abril de 2008, apenas cinco meses depois que a Coréia do Sul havia começado a aplicar o Protocolo de Biossegurança da ONU, quatro fabricantes locais de amido iniciaram a importar milho transgênico, argumentando que não tinham outra opção devido que o preço do milho não modificado geneticamente havia disparado astronomicamente no mercado mundial. Em meio a protestos dos consumidores, esses fabricantes manifestaram que sua expectativa era comprar 1,2 milhões de toneladas de milho transgênico dos EEUU durante o ano.”

“Coréia do Sul não é o primeiro país que renuncia ao seu direito soberano de fixar sua própria política sobre alimentos transgênicos sob as pressões dos EEUU. Tanto Índia como a China já haviam eliminado suas restrições às importações de transgênicos, sob ‘discussões’ bilaterais com EEUU. Tailândia revogou em 2004 sua legislação estrita sobre rotulagem de transgênicos quando os EEUU lhes advertiu que essa normativa afetaria suas negociações por um TLC. Depois, as empresas norteamericanas pressionaram o escritório do Representante Comercial dos EEUU (USTR), a fim de utilizar o TLC proposto com a Tailândia como elemento de persuasão para que os tailandeses autorizassem ensaios de campo com transgênicos. Na Malásia se deu um processo semelhante, onde os grupos de pressão empresarial dos EEUU tinham tratado de forçar o governo malaio a que abandonasse a idéia de impor a rotulagem obrigatória nos produtos transgênicos como pré-requisito para a assinatura do TLC proposto entre EEUU e Malásia”.22

A ofensiva norteamericana pela liberação das pesquisas e a comercialização de OGMs ocorre em quase todo o mundo. Inclusive, um dos argumentos das corporações transnacionais que detém as patentes de várias plantas alimentares transgênicas é de que os alimentos transgênicos contribuirão para reduzir e, mesmo, acabar com a fome no mundo. Essa visão corporativa e oligopolista é compartilhada pela FAO e os outros organismos internacionais multilaterais como o Banco Mundial.

Na África, os produtos transgênicos já estão presentes em diversos paises, sendo que na África do Sul já dominam há mais de dez (10) anos os cultivos como a soja e o algodão. “(…) A África do Sul foi o primeiro país do continente a adotar os OGMs e hoje é o oitavo no mundo em área plantada. Os transgênicos ocupavam 1,4 milhões de hectares no país, em 2006, segundo levantamento do Serviço Internacional para Aquisições de Aplicações em Agrobiotecnologia (ISAAA)… Um dos principais motivos para a expansão dos transgênicos na África do Sul é a facilidade que as multinacionais têm para fazer seus experimentos e comercializar os OGMs… Empolgados com o desempenho, pequenos e grandes fazendeiros só pensam em expandir as áreas de cultivo dos grãos modificados em laboratórios. Em um cenário favorável, as multinacionais do setor fazem do país de 47 milhões de habitantes um laboratório e uma vitrine para os transgênicos… No caso do milho, 44% dos grãos colhidos eram geneticamente modificados. A previsão é de chegar a 80% em 2010. O milho é a base da alimentação dos sul-africanos, principalmente a dos negros, 88% da população do país…. São os grandes produtores brancos que classificam os produtos e ditam os preços. Todo o algodão plantado por 4 mil pequenos fazendeiros negros de Kwazulu-Natal vai para a Makhatini Cotton Gin, empresa que tem a única descaroçadeira e reserva de água particular da região. Além de ditar preços e classificações, a Makhatini Cotton Gin vende sementes e defensivos agrícolas aos seus fornecedores.”23

Clive James, fundador e presidente do Serviço Internacional para a Aquisição de Aplicações Agrobiotecnologia (ISAAA), afirmou em 2008 que “se todos nós trabalharmos juntos, vamos ganhar e sobreviver” e acrescentou que, no ano passado (2007), “23 países no mundo estavam aplicando a biotecnologia aos processos da agricultura para o cultivo de soja, algodão, milho e outros, mas esse número pode aproximar-se de 40 em 2015”.24

As populações mais pobres dos paises do Hemisfério Sul, assim com aquelas dos paises asiáticos, como Índia, Paquistão, Tailândia, Birmânia entre outros tantos, se encontram submetidas à racionalidade dos interesses das grandes corporações transnacionais e dos governos historicamente colonizadores que por diversos tipos de pressões, desde as políticas até as militares, convertem os Estados Nacionais Liberais em Estados-Clientes, estes francamente favoráveis à dependência externa mesmo que isso condene a maior parte das populações desses paises à pobreza e à subalimentação.

Esses Estados-Clientes além de facilitarem a realização da presença ostensiva e dos interesses das grandes corporações transnacionais nos seus paises, realizam políticas compensatórias (ajudas sociais) que cooptam grande parte das direções das organizações populares da sociedade civil e submetem as populações mais pobres a um processo continuado e servil de subalternidade à racionalidade dominante. Um exemplo dessa prática é a aceitação passiva dos governos desses Estados-Clientes da ajuda alimentar norteamericana, como maneira de aplacar a fome das populações subalimentadas, ao mesmo tempo em as empresas transnacionais norteamericanos exploram os camponeses e os trabalhadores desses países e se apropriam dos recursos naturais neles existentes.

“(…) Não é de hoje que os Estados Unidos querem transformar o continente africano num quintal para disseminar suas sementes transgênicas e o excedente de sua produção de alimentos desse tipo. A maior parte da ajuda humanitária que a África recebe em forma de alimentos geneticamente modificados vem dos EUA, único país do hemisfério norte a impor ajuda ‘em espécie’, com uma política de comprar somente nos Estados Unidos os alimentos a serem doados, privilegiando a agricultura e as multinacionais estadunidenses.”25

Nesse contexto histórico as desigualdades sociais são crescentes, ao contrário do que afirma a ideologia neoliberal dominante. Acentua-se a exclusão social, cultural e política de milhões de pessoas e se fragiliza as iniciativas populares de fortalecimento da sociedade civil em decorrência da subalternidade consentida (Estados-Clientes) a que se submetem os governos da maior parte dos paises do Hemisfério Sul e da Ásia.

A construção da contraconsciência no sentido de se elaborar alternativas críticas à lógica neoliberal hegemônica é dificultada pelo avanço das forças favoráveis ao livre mercado e à concorrência desigual, como apregoam simultaneamente o FMI, OMC, FAO e Banco Mundial e os Estados-Clientes dependentes do capital estrangeiro.

2. AS AMBIGUIDADES DAS EXPECTATIVAS POPULARES.

As populações mais pobres dos paises economicamente pobres dependem de três fontes básicas de apoio: das políticas públicas sociais de seus governos, das organizações não governamentais da sociedade civil internacional ou das nacionais desses paises e das ajudas humanitárias dos organismos das Nações Unidas e as da Cruz Vermelha Internacional. Sem dúvida alguma que a solidariedade familiar e aquela entre famílias, no nível das comunidades locais, contribuem para aliviar os sofrimentos provocados pela subalimentação das populações em situação de exclusão social e pelas mazelas daí resultantes. Mas, esse apoio é, em geral, escasso e limitado pela pobreza deles mesmos e pela fragilidade das políticas públicas de caráter social.

É, no entanto, dos seus governos que as parcelas das populações mais pobres esperam a ajuda. E, sem dúvida, seria essa uma das atribuições dos governos. E se esses governos fossem de caráter popular deveriam aliar as políticas públicas de ajuda social à criação de oportunidades de emprego e de renda a partir de uma efetiva redistribuição de renda e de riqueza no país através de iniciativas como, por exemplo, a reforma agrária, as limitações à apropriação privada dos recursos naturais do país e o controle do capital estrangeiro na economia. Essas seriam ações governamentais que poderiam proporcionar uma contribuição possível para amenizar a pobreza e a subalimentação no âmbito da correlação de forças das sociedades capitalistas dependentes e sob a hegemonia do capital financeiro internacional.

Entretanto, os governos dos Estados-Clientes tendem a utilizar a ajuda humanitária ou as políticas públicas do tipo compensatórias26 para, antes de tudo, a reprodução das condições de subalternidades dessas populações, seja porque tais ajudas são sempre ocasionais e negociadas politicamente, seja porque não enfrentam as questões básicas estruturais da economia do país devido à dependência desses Estados aos interesses imperiais das nações consideradas como as mais desenvolvidas economicamente.

Por outro lado, as iniciativas das organizações sociais populares que atuam junto aos mais pobres tendem, ainda que não unicamente dessa maneira, para as ações de caridade, as quais, mesmo que necessárias para aliviarem no imediato os sofrimentos das pessoas e famílias em situação de pobreza e subalimentação, são insuficientes para romperem a dinâmica de produção capitalista que promove a exclusão social, submetendo milhões de pessoas aos grilhões da opressão política e econômica.

Nesse contexto geral, as expectativas dos mais pobres, mesmo daqueles organizados, é de dirigem seus apelos aos governos, tenham ou não essas pessoas compreendido o papel que esses governos desenvolvem para a manutenção do seu país dependente de outros e as facilidades que proporcionam para a continuidade da reprodução da exploração de seu povo e dos recursos naturais existentes.

Por vezes, muitas pessoas e organizações sociais populares que são críticas dos seus governos e que os consideram submissos ao poder das grandes empresas transnacionais, sentem-se impotentes para romperem seus laços de “subalternidade crítica” com os programas governamentais Isso se deve, em geral, a diversas circunstâncias. Todavia, há um aspecto em comum: a precariedade das formulações estratégicas para a construção de uma nova sociedade (mesmo utópica) que lhes facilite encontrar alternativas políticas e econômicas objetivas para poderem caminhar com suas próprias pernas, com os seus próprios recursos. Sem dúvida alguma que as iniciativas de autonomia das organizações e movimentos sociais populares são objeto de pressões e repressões, diretas e indiretas, pelos governos dos Estados-Clientes, sempre e quando as ações independentes e críticas dessas organizações e movimentos sociais populares encontrem caminhos autônomos em relação àquelas práticas governamentais que favoreçam a reprodução social e a política da subalternidade.

Essas pessoas e organizações sociais vivenciam uma ambigüidade de difícil superação: são críticos dos programas governamentais de apoio social e, ao mesmo tempo, dependentes deles. Por vezes racionalizam afirmando que essa aceitação “do que vem de cima” é uma maneira de negociação tática para acumular forças, sem, contudo, encontrarem caminhos para a construção de estratégias capazes de darem rumo a essas iniciativas táticas.

Contribui sobremaneira para essa ambigüidade, sentida pela maioria das pessoas e organizações sociais que depende de recursos externos para a sua manutenção (de governos e de ONGs filantrópicas), a eficiência e eficácia da ideologia dominante que se mantém numa posição privilegiada em relação às possíveis formas de “contraconsciência” (alternativas críticas à lógica ou racionalidade dominante).

Mészáros (2004: 233)27 ressalta que a ideologia dominante “(…) assumindo uma atitude positiva para com as relações de produção, assim como para com os mecanismos auto-reprodutivos fundamentais da sociedade, podem contar, em suas confrontações ideológicas, com o apoio das principais instituições econômicas, culturais e políticas do sistema todo (…)”

A essa posição privilegiada da ideologia dominante, formadora da opinião popular (senso comum) e de amplas parcelas da intelectualidade convencida pelos argumentos de um ‘neoliberalismo de esquerda’ e pela apologia da racionalidade dominante, pode-se acrescentar as imensas dificuldades que as forças políticas e sociais de esquerda estão enfrentando para construírem uma alternativa crítica global (concepção de mundo) que proporcione, mesmo em processo de construção, rumos estratégicos para as ações dos movimentos e organizações sociais e sindicais populares (quem sabe partidos políticos de esquerda). Essa ausência de uma explícita alternativa crítica favorece a anomia das massas populares e a hegemonia da ideologia dominante.

Por outro lado, algumas constatações28 podem nos ajudar a compreender essa ambiguidade nas relações da população pobre (e suas organizações de representação e de apoio) com os governos dos Estados-Clientes:

  1. as massas populares apresentam grandes dificuldades para explicarem as causas objetivas e subjetivas da sua pobreza, da sua exclusão social e, portanto, da exploração a que estão submetidas pelas classes dominantes;

  2. as iniciativas das massas populares de reivindicação e de protesto em defesa de seus direitos e a favor da melhoria das condições objetivas de reprodução de seus meios de vida e de trabalho não têm afetado nem a hegemonia burguesa (direção intelectual e moral) nem os diversos mecanismos capitalistas de apropriação do sobretrabalho (dominação);

  3. a reprodução da hegemonia burguesa, entremeando consenso e coerção, tem conseguido manter as massas populares numa situação de ‘consciência feliz’29, alienadas dos processos de exploração em que se encontram submetidas e portadoras de um senso comum que as tornam subalternas à dominação capitalista e à sua concepção de mundo;

  4. a existência ou não de uma fração do capital que é hegemônica no contexto histórico das lutas internas nas classes dominantes é indiferente para as massas populares que percebem a dominação pelo viés do senso comum onde o dominante é personalizado e simplificado como o capitalista, na maior parte das vezes, apenas como o patrão;

  5. os governos nacionais contemporâneos têm apoiado a expansão do capital monopolista nacional e internacional, e relegado as políticas de emprego e renda direcionadas para as populações mais pobres aos mecanismos dos mercados globalizados;

  6. as possibilidades de motivação e mobilização das massas populares para assumirem iniciativas de contestação do modo de produção capitalista deverão levar em consideração não apenas as situações subjetivas (consciência política) das classes populares, mas, também, as mudanças intrínsecas objetivas operadas pelo capital nos processos de trabalho devido ao progresso técnico, mudanças essas que proporcionam novas formas de relação objetiva e subjetiva do capital com o trabalho.

Pode-se acrescentar que a pobreza (mas não somente ela), talvez melhor a exclusão social, impõe reivindicações determinadas pela imediaticidade, o que facilita as políticas públicas e privadas de apresentarem respostas às essas demandas populares a partir do padrão dominante. No Brasil, um elevado número de trabalhadores rurais jovens (dezenas de milhares), politicamente conscientes e em luta pela terra, aceita com mansidão a possibilidade efetiva de se tornarem cortadores de cana de açúcar nas grandes empresas agrícolas do agronegócio produtoras de matéria-prima para a produção de açúcar e de etanol. No entanto, eles sabem que essa é uma das atividades mais árduas e com maior número de vítimas por estafa e acidentes de trabalho hoje existentes no campo, e que é nessas empresas do agronegócio onde já se constatou nos últimos anos o maior número de casos de trabalho similar ao escravo no Brasil.

E por que isso? Porque os salários que recebem, ainda que baixos e produtos da exploração do sobretrabalho, é melhor do que o não-trabalho, o qual tem como destino certo a fome. Essa imediaticidade é compreensível, ainda que plena de sofrimentos.

Então, ao mesmo tempo em que os governos dos Estados-Clientes facilitam a instalação das empresas transnacionais do agronegócio em seus paises, também aceitam passiva e consentidamente a exploração dos trabalhadores sob o argumento hipócrita de que “é melhor isso do que nada”.

No Brasil, o exitoso programa Bolsa-Família, já sendo copiado por governos de diversos paises, e recebendo elogios da burguesia nacional e internacional, conseguiu alcançar cifras surpreendentes, reforçando a ambiguidade das esperanças populares e propiciando a alienação popular reforço à ‘consciência feliz’. Em 2009, conforme dados oficiais (Instituto Brasileiro de Estatísticas – IBGE e Ministério de Desenvolvimento Social – MDS)30, 29% da população brasileira (52,9 milhões de pessoas) recebe direta ou indiretamente um auxílio mensal em dinheiro (entre R$ 20,00 e R$ 182,00; ou entre 10 e 92 dólares) do Governo Federal através desse Programa. Há seis (6) Estados no país em que mais de 52% da população (entre 52,8% e 59,1%) depende dessa renda para viver.

A meta do Governo Federal do Brasil é, no entanto, elevar esse percentual para 33% dos brasileiros até 2010, quando um em cada três habitantes receberá o auxílio mensal do Programa Bolsa-Família.

São diversos os fatores que contribuem para as ambigüidades das expectativas populares. Dois deles talvez sejam os mais relevantes: a readequação (e diversos casos a capitulação) política e ideológica dos Estados Nacionais a favor da lógica do neoliberalismo e a precariedade das alternativas críticas ao modelo de sociedade dominante suficientemente consistente para sugerirem estratégias de ação popular capazes de superarem o mundo de opressões em que vivem.

3. O ESTADO NEOLIBERAL COMO SALVAGUARDA DO CAPITALISMO

Há mais de 20 anos que a maioria dos paises de mundo vem realizando ajustes macroeconômicos e consolidando reformas estruturais no Estado por pressão dos interesses das classes dominantes dos paises mais desenvolvidos, como os que constituem o G7 (G8 menos a Rússia), através dos organismos multilaterais como o FMI, Banco Mundial e OMC.

Os choques do petróleo de 1973 e 1979, a desagregação da União Soviética e a queda simbólica do Muro de Berlim, na década de 1980, deram o sinal verde para a intensificação da ofensiva neoliberal contemporânea que já acumulava forças há algumas décadas, ao menos desde a década de 1960 no exercício da crítica contundente ao “excesso de democracia” e ao Estado-Providência ou Estado de Bem-Estar Social, crítica essa tanto de natureza teórica (Escola de Chicago, Société Mont-Pèlerin, Clube de Roma, Comissão Trilateral) como de natureza prática como os programas de governos de Margaret Tratcher (Reino Unido) e Ronald Reagan (EUA). Essa ofensiva alcançou a sua condensação no denominado Consenso de Washington, “(…) um conjunto de medidas que se compõe de dez regras básicas31 formulado em novembro de 1989 por economistas de instituições financeiras baseadas em Washington, como o FMI, o Banco Mundial e o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, fundamentadas num texto do economista John Williamson, do International Institute for Economy, e que se tornou a política oficial do Fundo Monetário Internacional em 1990, quando passou a ser ‘receitado’ para promover o ‘ajustamento macroeconômico’ dos países em desenvolvimento que passavam por dificuldades.32

Por vezes, quem sabe por informações insuficientes, se supõe que as ofensivas neoliberais se restringiram àquelas promovidas pelo FMI na estratégia de ajustes estruturais macroeconômico, deixando de relembrar que os governos Tratcher (eleita primeira ministra em 1979) e Reagan (eleito presidente em 1980) foram os precursores práticos das iniciativas de luta política e ideológica contra o Estado e as políticas públicas, defensores incontestes dos mercados não regulados e da livre concorrência.

É minha sugestão que a readequação do Estado para atender os interesses históricos da expansão do capital, da reprodução ampliada do capital e da prática contemporânea da acumulação via espoliação33 dá-se num processo continuado de construção e aplicação das medidas necessária para tanto, a partir do próprio Estado e em consonância com os interesses de classe da burguesia. É o Estado que se faz ativo na sua própria readequação. Nesse sentido, e apoiando-me nos estudos e proposições de Dardot e Laval34, quatro pontos podem ser ressaltados para ajudar a compreensão da readequação do Estado a partir da racionalidade neoliberal:

  • Há uma relação de interação recíproca entre as políticas liberais e as de transformações no capitalismo, sob a nociva utopia do mercado autoregulador;

  • As concepções das mudanças que permitiram e apoiaram os ajustes macroeconômicos impostos pelo FMI vem de longe, ao menos desde a década de 1930: é acompanhada de uma luta ideológica, numa crítica sistemática do Estado-providência35 (welfarismo);

  • A lógica neoliberal deseja alcançar a transformação dos comportamentos dos indivíduos e a eliminação do sistema de restrições tanto econômicos como sociais, sendo o que se deseja é que o indivíduo se governe sob a pressão da competição, segundo os princípios do cálculo maximizador e na lógica da valorização do capital;

  • Propõe implantar uma racionalidade geral se impondo aos governos, e se legitimando como único quadro da inteligibilidade das condutas humanas.

E quais são os traços dessa racionalidade?

  • O mercado: uma realidade construída que requer tanto a intervenção ativa do Estado como a implantação de um sistema de direito específico;

  • A essencial do mercado não reside na troca, mas na concorrência, considerada e aceita como uma relação de desigualdade entre as empresas;

  • O Estado é ele mesmo submetido à norma da concorrência. O Estado deve aceitar as regras do direito, cujo ideal tende a ser a “sociedade de direito privado“;

  • A exigência da universalidade da norma de concorrência alcança os indivíduos nas relações entre eles próprios.

E o que desejam os “evangelistas do mercado”, sempre facilitando a criação de novas e melhores condições institucionais internacionais para a realização do lucro? A afirmação da racionalidade comercial em todas as esferas da existência humana. Num processo que pode ser assim resumido36:

  • Da construção do mercado à concorrência como norma dessa construção;

  • Da concorrência como norma das atividades dos agentes econômicos à concorrência como norma da construção do Estado e de sua ação;

  • Da concorrência como norma do Estado-empresa à concorrência como norma de conduta do sujeito-empresa.

A racionalidade neoliberal, ao mesmo tempo em que se ajusta às lógicas liberais, realiza diversas distinções no plano ideológico e opera uma desativação do seu caráter normativo, tal como:

  • Diluição do direito público a favor do direito privado;

  • Conformidade da ação pública aos critérios da rentabilidade e da produtividade;

  • Desvalorização simbólica da lei como ato próprio do legislativo, reforçando o executivo;

  • Tendência dos poderes de polícia a transpor todo controle judiciário;

  • Promoção do ‘cidadão-consumidor’ encarregado de arbitrar entre as ‘ofertas políticas’ concorrentes.

Essa racionalidade testemunha o esgotamento não apenas do Estado Liberal Ocidental, mas gradativamente da própria democracia liberal como norma política.

É oportuno salientar que a estratégia neoliberal já em plena implantação na maior parte dos paises do hemisfério sul e da Ásia, já presentes nos paises desenvolvidos economicamente, estimula e pressiona os governos e parlamentos para a mudança na institucionalidade (leis, normas, etc.) no sentido de realizar a diluição do direito público no direito privado, tendo como ideal a “sociedade de direito privado”. Essa premissa política que já é ação concertada e em implantação em todo o mundo compromete a conquista popular secular da igualdade de tratamento e da universalidade dos benefícios, e as coloca em questão no sentido da introdução gradual da concepção consumista do serviço público. Isso quer dizer que as conquistas dos direitos humanos, políticos, sociais, culturais, étnicos, de gênero, entre outros, deverão ser substituídos pela lógica de que não deve haver direitos sem contrapartida. Nessa perspectiva o cidadão cede lugar ao homem empreendedor, colocando em questão a cidadania como tal e a substituindo por uma lógica estritamente empresarial. Pode-se afirmar, então, que a lógica do neoliberalismo é antidemocrática.

Quando comentamos anteriormente a ambiguidade das expectativas popular se estava raciocinando com os elementos de percepção da readequação do Estado aos interesses contemporâneos do capital, ou seja, coerente com o desafio do “novo capitalismo”: construção política de uma ordem financeira global regida pelo princípio da concorrência generalizada num novo regime de acumulação sob a dominância do capital financeiro. Ao mesmo tempo, as políticas públicas passam (passaram) a agir em conformidade com os critérios de tecnicização da administração em detrimento das considerações políticas e sociais. Os critérios que orientam a tomada de decisões dos governos é o da rentabilidade e da produtividade. Essa base da ‘boa-governabilidade’ introduz critérios de administração em detrimento dos princípios simbólicos comuns dos fundamentos da cidadania e dos diretos universais baseados no político e não na racionalidade econômica e gerencial. 37

No Estado concorrencial onde não há direitos sem contrapartida, a lógica comercial se impõe. Então, se nos últimos dez (10) anos 150.000 camponeses indianos se suicidaram; se tem havido um processo intenso de desagregação e perda da terra por parte de milhões de famílias camponesas em todo o mundo; e se cresce a massa de trabalhadores engrossando o ‘exercito industrial de reserva’, isso tudo (e muito mais) se deveu às limitações pessoais e ou familiares desses camponeses e trabalhadores na incorporação da ‘lógica da modernidade’ e de desenvolvimento de suas aptidões pessoais para o trabalho, estas expressas em termos de rentabilidade e de competição. Nessa perspectiva as pessoas deixam de ser consideradas como tais, mas não as suas circunstâncias. Prevalece o capitalismo sem freios onde impera o ser-empreendedor como centro dos negócios.

A exclusão social, o aquecimento global, a degradação e a poluição ambiental, a fome endêmica, os organismos geneticamente modificados, entre tantos outros aspectos da vida, são temas considerados apenas como negócios. Nesse sentido, é emblemático que as empresas transnacionais do agronegócio, em especial aquelas produtores de insumos, entre os quais os OGMs , afirmem que somente as sementes transgênicas poderão superar a escassez relativa de alimentos no mundo. E que os recursos para os Fundos Internacionais de Alimentos sejam dirigidos para a aquisição dos excedentes norteamericanos de cereais produzidos com semente transgênicas. A fome torna-se um grande negócio.

Assim também o são os bens comuns dos povos e da humanidade, como as reservas da biosfera, a água doce e a do mar, as reservas indígenas, as terras devolutas ou dos governos, o litoral, as florestas e outros biomas, etc. Todos eles são considerados como ativos potenciais (reserva de valor disponível) que estão sendo disputados pelos grandes conglomerados econômicos transnacionais. A expansão capitalista em todo o mundo busca se apropriar, pelas vias legais ou não, desses ativos potenciais objetivando a realização de negócios com os menores custos relativos na obtenção de insumos e na utilização da força de trabalho.

Harvey38 enfatiza que “(…) uma das principais funções das intervenções do Estado e das instituições internacionais é orquestrar desvalorizações para permitir que a acumulação por espoliação ocorra sem desencadear um colapso geral (…) A acumulação por espoliação pode ser aqui interpretada como o custo necessário de uma ruptura bem sucedida rumo ao desenvolvimento capitalista com forte apoio dos poderes do Estado”. E considera que “(…) toda formação social, ou território, que é inserida ou se insere na lógica do desenvolvimento capitalista tem de passar por amplas mudanças legais, institucionais e estruturais do tipo descrito por Marx sob a rubrica da acumulação primitiva. O colapso da União Soviética destacou exatamente esse problema. O resultado foi um violento episódio de acumulação primitiva a título de ‘terapia de choque’ aconselhado pelas potências capitalistas e pelas instituições internacionais. O sofrimento social foi imenso, mas a distribuição de ativos gerada pela privatização e pelas reformas de mercado não só foi bastante desequilibrada como não propiciou muito o tipo de atividade de investimentos que costuma surgir com a reprodução expandida. Bem mais recentemente, a virada para o capitalismo orquestrada pelo Estado Chinês envolveu sucessivas ondas de acumulação primitiva (…).”

Os paises do Hemisfério Sul e a maior parte daqueles da Ásia estão em pleno curso de vivenciar a acumulação via espoliação pelas grandes empresas transnacionais dos paises do Hemisfério Norte (Norteamérica, Europa Ocidental, Japão e China).

Para a maioria dos paises latinoamericanos, da África e de alguns da Ásia pode-se afirmar que “(…) O acesso aos insumos mais baratos é tão importante quanto o acesso a mercados em ampliação na manutenção de oportunidades lucrativas. A implicação é que os territórios não capitalistas deveriam ser forçados não só a abrir-se ao comércio (o que poderia ser útil), mas também a permitir que o capital invista em empreendimentos lucrativos usando força de trabalho e matérias-primas mais baratas, terra de baixo custo e assim por diante. O ímpeto geral de toda a lógica capitalista do poder não é que os territórios se mantenham afastados do desenvolvimento capitalista, mas que sejam continuamente abertos (…)”.39

A hegemonia mundial da lógica neoliberal se propõe a homogeneizar os tipos de Estados Nacionais num só padrão: Estado empresarial mínimo responsável pela concretização de uma sociedade de direito privado. Nesta perspectiva tende a afirmar um modelo único, um Estado Uninacional, independentemente da etnodiversidade e multiculturalidade que o seu território contemple. Esta perspectiva dominante se contrapõe radicalmente, por exemplo, às concepções e propostas de Estados Plurinacionais Comunitários40 desenvolvidas pelos povos indígenas originários andinos e já em aplicação na Constituição da Bolívia e na do Equador.

O Estado-Cliente utilizando o poder de Estado, que de fato é resultante do poder de classe das classes dominantes, como um grande agente de acumulação via espoliação, concebe as políticas públicas de maneira a concretizarem os interesses privados das grandes empresas nacionais e transnacionais.

A superação das ambigüidades das esperanças populares exige mais do que a compreensão das adequações do Estado aos interesses do capital no âmbito da racionalidade neoliberal. Requer também o desvendamento caso a caso (contextualização) das formas como o Estado Nacional Liberal desempenha o seu papel ora de acomodação pela via da cooptação ora de repressão explícita ou disfarçada das iniciativas de lutas de resistência social desencadeadas pelos movimentos e organizações sociais e sindicais populares.

4. AS LUTAS DE RESISTÊNCIA SOCIAL

Nem sempre reagimos aos choques com regressão.

Em alguns casos, diante das crises, nós crescemos — rapidamente.

(Naomi Klein. A doutrina do Choque)

“(…) A acumulação por espoliação de nossa época também tem levado a batalhas políticas e sociais e a vastos golpes de resistência. Muitas dessas lutas forma hoje o núcleo de um movimento antiglobalização, ou de globalização alternativa, que, embora díspare e aparentemente em seus primórdios, é disseminado. O fermento de idéias alternativas no interior desses movimentos está à altura da fecundidade de idéias geradas em outros períodos históricos em que ocorreram disrupções paralelas de modos de vida e de relações sociais (ocorrem-me 1640-1680 na Inglaterra e 1830-1848 na França). A ênfase no âmbito desses movimentos no tema da ‘restituição dos bens comuns’ indica contudo profundas continuidades com batalhas de muito tempo atrás.” 41

A variedade das lutas sociais contra a acumulação via espoliação dá a todos nós, por um lado, uma sensação de que vivemos simultaneamente inúmeras batalhas que nos envolvem por todos os lados e, por vezes, sem saber direito para onde olhar. Por outro lado, dá-nos a certeza de que não estamos sós e que os povos, nas suas mais distintas etnodiversidades e contextos, reagem a seu modo à opressão e à violação de seus direitos, territórios e modos de vida. O que é por demais importante é sabermos que os opressores não nos calam e não controlam a nossa mente.

No entanto, deveríamos estar atentos a um aspecto: a organização das lutas de resistência social está fragilizada pelas dificuldades de se construir uma proposta contra-hegemônica, uma alternativa crítica à racionalidade dominante que seja suficiente para a elaboração de uma contraconsciência capaz de empolgar nossos povos no sentido de se comprometerem com mudanças sociais profundas, de natureza estrutural.

“(…) O poder da ideologia predominante é indubitavelmente imenso, mas isso não ocorre simplesmente em razão da força material esmagadora e do correspondente arsenal político-cultural à disposição das classes dominantes. Tal poder ideológico só pode prevalecer graças à vantagem da mistificação, por meio da qual as pessoas que sofrem as consequências da ordem estabelecida podem ser induzidas a endossar, ‘consensualmente’, valores e políticas práticas que são de fato absolutamente contrários a seus interesses vitais (…) o poder de mistificação sobre o adversário é um privilégio da ideologia dominante, e só dela.” 42

A alienação de amplas parcelas da população é reforçada continuadamente pelas iniciativas de ação afirmativa dos valores da concepção de mundo hegemônica realizada pelos meios de comunicação de massa, pelas escolas, pela disciplina das fábricas, pelos sindicatos de trabalhadores atrelados aos governos, pelos partidos de centro e de direita e alguns outros, pelas igrejas, pelas associações seletivas como a Maçonaria, a Opus Dei, o Rotary Club ou o Lions Club, pelas campanhas eleitorais manipuladoras da opinião e pelas federações corporativas patronais que contribuem, todos numa sincronia orquestrada pela lógica neoliberal, para a afirmação da ‘consciência feliz’ das massas populares.

A esse amplo leque de instituições e de iniciativas reforçadoras do conservadorismo do senso comum das massas populares se deve acrescentar as concepções e práticas conjunturais das políticas de ajustes de comportamentos que se avolumam e diversificam seja no nível do subjetivo pelo proselitismo religioso do milagre no atacado seja no nível objetivo pelas políticas públicas populistas de distribuição de dinheiro como o programa governamental no Brasil denominado Bolsa-Família. 43

A ruptura da alienação se faz na práxis das lutas de resistência social contra a expansão capitalista e a acumulação via espoliação. Em geral ela se dá pela percepção das causas da exploração ou da violação de direitos que as pessoas estão vivenciando. Entretanto, o que mais contribui para a desalienação é, além da percepção das causas da exploração, a ruptura com o discurso e os interesses dominantes. Se as pessoas se sentem fascinadas por alguns sucessos imediatos devido às suas relações econômicas e ou políticas com as empresas capitalistas, como no caso da utilização de sementes transgênicas e os insumos agrícolas de origem industrial, o crédito rural etc. ou pelas políticas públicas compensatórias de distribuição de favores, mas exigindo em troca lealdades políticas, dificilmente tais pessoas assumirão a sua história como sujeitos sociais favoráveis a mudanças sociais estruturais. A integração direta ou indireta dessas pessoas com qualquer uma das distintas formas do capital as torna subalternas aos seus interesses. Aceitando as regras de reprodução social dominantes, sem qualquer tipo de ruptura social, mesmo quando induzidas pelo seu modo de ser étnico ou historicamente determinado, sem experimentar a ansiedade de se vivenciar transições que tornam a todos inseguros, sem atravessar o rio com suas próprias forças, mesmo correndo o risco de ser arrastado pela correnteza, não se romperá o casulo da alienação.

O desalienar poderá ocorrer num longo processo de desenvolvimento da consciência crítica, cada um segundo as suas possibilidades e a partir de diversos referenciais, da necessidade de lutar contra toda a forma de opressão em que uma pessoa, família, grupo, gênero, classe social ou povo possa se sentir acometida. E, mais, é se envolver nessas lutas. A consciência crítica é sempre pessoal. Pode ser compartilhada das mais distintas maneiras, tanto no seu desenvolver pessoal como na práxis social individual e ou coletiva. É nesse sentido que se pode almejar “desalienações”, desafios constantes e sempre presentes para todos em todos os momentos.

Um dos grandes desafios que se enfrenta contemporaneamente é motivar e mobilizar as massas populares para a luta ideológica contra a lógica neoliberal, lógica essa que se faz uma síntese de uma complexa e variada gama de opressões. Isso não é impossível, apesar da mistificação de valores e políticas práticas promovida pela ideologia dominante. A construção teórica e prática da contraconsciência é, talvez, a tarefa mais premente seja das organizações e dos movimentos sociais populares seja da intelectualidade comprometida com a busca de alternativas críticas ao modo de ser e de viver dominantes. É a base para se acumular forças a partir das lutas de resistência social.

“Embora repousem numa longa história de militância, os movimentos contemporâneos da América Latina não são réplicas diretas de seus predecessores. De todas as diferenças, a mais impressionante é uma consciência perspicaz da necessidade de proteção contra os choques do passado — golpes, terapeutas do choque estrangeiros, torturadores treinados nos Estados Unidos, assim como choques da dívida e colapsos monetários, característicos das décadas de 1980 e 1990. Os movimentos de massa na América latina, que fortaleceram a onda de vitórias eleitorais dos candidatos de esquerda, estão aprendendo a construir amortecedores de choques em seus modelos de organização. Eles estão, por exemplo, menos centralizados do que nos anos 1960, tornando mais difícil desmobilizar movimentos inteiros com a eliminação de alguns líderes (…)” 44

São muito diversas as formas de aprendizado político pessoal e coletivo que as práticas de resistência social proporcionam. Como é imensa a diversidade de formas de luta social, dos motivos que as movem, dos sujeitos sociais envolvidos, dos tempos de duração dos conflitos, das organizações daí resultantes, enfim, como em diversas partes do mundo grande parcela do povo está resistindo à violação de seus direitos, à opressão e às diversas formas de discriminação, se ampliam os intercâmbios regionais, nacionais e internacionais para se buscar não apenas solidariedades, mas, sobretudo, para somarem esforços e conjugarem ações.

Situações novas emergem, e por vezes de maneira surpreendente. Por exemplo, o discurso dominante insiste na eliminação social do campesinato como forma ultrapassada de produção agrícola. Esse discurso se transforma, na maior parte das vezes, em políticas públicas em todo o mundo sob a direção do FMI, Banco Mundial e OMC seja para subordinar os camponeses ao agronegócio seja para facilitar a apropriação das suas terras pelas empresas capitalistas. E os meios de comunicação de massa reproduzem o discurso dominante sobre o campesinato, induzindo muitos camponeses a uma perda de auto-estima e da vontade de resistir na terra.

No entanto, a recampesinização na América Latina, na Europa e em diversas regiões da Ásia está em pleno ascenso. Ploeg45 sustenta que “(…) por detrás dessa invisibilidade construída (no mundo de hoje – HMC), que é amplamente fortalecida pela conotação negativa que a palavra ‘camponês’ tem na linguagem cotidiana, há uma realidade empírica na qual existem muito mais camponeses do que antes. Em todo o mundo hoje existem 1,2 bilhão de camponeses (…). Entre eles estão milhões de agricultores europeus que são muito mais camponeses do que muito de nós imaginamos ou queremos admitir.”

“A recampesinização é um processo de transição que se desenvolve em vários níveis, ao longo de várias dimensões e envolvendo muitas pessoas. Como todos os processos de transição, a recampesinização vai contra os regimes e interesses técnico-institucionais existentes, assim gerando uma vasta gama de contradições… a recampesinização é um processo massivo e generalizado que é impulsionado e fomentado pelos interesses e perspectivas dos agricultores envolvidos. Isso faz dela uma luta social (…)”.46

A organização da Via Campesina Internacional, articulando dezenas de paises de todos os continentes, ao reafirmar o campesinato, a reforma agrária, a soberania alimentar e a mulher como sujeito de sua história, contribui de maneira fundamental não apenas para a recampesinização como para o enfrentamento da concepção de sociedade a partir do interesses de classe capitalistas.

Numa outra perspectiva, enquanto os ajustes estruturais macroeconômico, rebuçados pela ideologia neoliberal, desde a década de 1990 iam impondo as novas formas de readequação dos Estados para moldá-los à racionalidade neoliberal, os povos originários de diversos paises andinos que hoje constituem a “Coordinadora Andina de Organizaciones Indígenas – CAOI”, já estavam desde há muito tempo construindo as bases fundamentais de suas concepções de Estado: o Estado Plurinacional e Multicultural.

A crítica ao Estado Uni Nacional sulamericano é sintetizada numa única afirmação: “(…) esses velhos Estados Uni Nacionais fracassaram… Mas, a história não terminou, nem o paraíso neoliberal é estável nem eterno. Não se pode viver longe do mercado, mas tão pouco sobreviver dentro dele. Não se pode sobreviver sem o Estado, mas tão pouco dentro de seu atual funcionamento. Necessitamos responder a essas encruzilhadas históricas, e nesta busca estão os aportes de um novo ator social, político, cultural, econômico, espiritual que recorre ao Abya Yala e o mundo: somos os Povos e Comunidades Indígenas Originárias.”47

É um apelo de unidade na luta pela superação do Estado a serviço do capital.

Os povos originários da África Austral, entre outros, ao reafirmarem a importância da multiculturalidade de certa maneira dialogam, numa comunicação quase atemporal, com os povos originários da Cordilheira dos Andes quando estes buscam os Estados PluriNacionais e Multiculturais. E quem sabe estarão conclamando os camponeses europeus, asiáticos e norteamericanos a repensarem seus territórios e suas multiculturalidades.

Várias pontes estão estabelecidas entre as lutas sociais de resistência entre os povos, e já se caminha sobre elas. Outras estão em construção. O mais importante disso tudo é a disposição política dos povos de dizer não à lógica capitalista que condena e perpetua amplas parcelas dos povos à pobreza e à subalimentação.

AMANDLA!!!

Horacio Martins de Carvalho

(Curitiba, Brasil, maio de 2009)

1 Este texto foi elaborado em contribuição ao Diálogo dos Povos, iniciativa de estímulo ao diálogo sul-sul entre organizações e movimentos sociais e sindicais de diversos paises da América Latina e da África Austral.

2 Biho, Bantu Steve (1990). Escrevo o que quero (uma seleção dos principais textos do líder negro). São Paulo, Ática; Série Temas, volume 21 Sociedade e Política. p. 114-15.

3 Quispe, Miguel Palacin (2008). Prólogo, in Estados Plurinacionales Comunitários. Op. cit. p. 3.

4 CAOI: Coordinadora Andina de Organizaciones Indígenas

5 África do Sul, Alemanha, Arábia Saudita, Argentina, Austrália, Brasil, Canadá, China, Coréia do Sul, Estados Unidos, França, Índia, Indonésia, Itália, Japão, México, Reino Unido, Rússia, Turquia e União Européia.

6 Le Monde. Un plan global à une échelle inédite… Le Sommet du G20. 4 avril de 2009, Diplomatie, p. 8.

7 Le Monde, op. cit. p. 8 (tradução literal do autor deste texto – HMC)

8 FAO: Food Agricultural Organization. Organismo das Nações Unidas – ONU.

9 Le Monde. La crise alimentaire, un risque politique negligé. Planéte, 10 avril 2009, p. 4.

10 G8: Alemanha, Canadá, França, Estados Unidos, Itália, Japão, Reino Unido e Rússia.

11Emprego, Desenvolvimento Humano e Trabalho Descente: a experiência brasileira. Brasília, CEPAL/NUD/OIT, setembro de 2008, arquivo pdf. 91 p.; p. 8.

12 Jornal do Commercio, PE.. ONU: crise provoca fome em mais de 100 milhões. Recife, 7 de maio de 2009.

13 Ibidem.

14 Melo, Hildete Pereira de (2005). Gênero e pobreza no Brasil. Relatório Final do Projeto Governabilidad Democrática de Género en América Latina y el Caribe. Brasília, CEPAL – SPM, cópia arquivo pdf. 47 p.; p. 7.

15 Melo, op. cit. p. 8

16 Melo, op. cit. p. 14

17 Melo, op. cit. p. 43

18 Tousssaint, Eric e Millet, Damien (2008). ¿Por qué un hambre galopante en pleno siglo XXI? ¿Cómo se puede erradicar? Bruxelas, CADTM, cópia arquivo, 4 p. ( http://www.cadtm.org).

19 Conforme Folha de São Paulo, edição on line. Crise pode levar até 90 milhões à extrema pobreza, aponta estudo. EFE, 24/04/2009. (http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u555726.shtml)

20 Petrella, Ricardo. Não se deve combater os pobres, mas a pobreza. Comitê Internacional para o Contrato Mundial da Água. Louvain, Bélgica.

21 Ribeiro, Silvia (2009). Los que se quieren comer el mundo: corporaciones 2008. México, ETCGROUP, 05 de janeiro. (www.etcgroup.org/es).

22 GRAIN (2009). Normas sanitarias y fitosanitarias: ¿una estrategia para amañar el mercado de alimentos? Red por una América Latina libre de transgênicos. Boletin 326.

23Alves, Renato (2007). Transgênicos dominam África do Sul há 10anos, in: ÍROHÍN, jornal on line. Fonte: Correio Brasiliense, abril. (http://www2.correioweb.com.br/cbonline/economia/pri_eco_174.htm)

24Riera, Liliam (2008). Cientistas cubanos desenvolvem milho transgênico. Havana, in Gramna Internacional, dezembro. (http://www.granma.cu/portugues/2008/diciembre/juev11/50Maiz.htm)

25 Felinto, Marilene (2008). EUA impõe transgênicos a africanos. (http://blog.controversia.com.br/2008/09/11/eua-impoem-transgenicos-a-africanos).

26 Políticas públicas compensatórias: iniciativas propostas pelo Banco Mundial aos governos que realizaram os ‘ajustes macroeconômicos e a desregulamentação do Estado’ a partir da década de 1990 para compensar a exclusão social provocada por tais medidas neoliberais.

27 Mészáros, István (2004). O poder da ideologia. São Paulo, Boitempo Editorial.

28 Conforme Carvalho, Horacio Martins de (2008). A hegemonia burguesa e a “consciência feliz” das massas populares. Curitiba, junho, 17 p. mimeo. p. 1

29 A expressão ‘consciência feliz’ foi por mim apropriada e retirada da concepção original desenvolvida por Marcuse [Marcuse, Herbert (1973). A ideologia da sociedade industrial. O homem unidimensional. Rio de Janeiro, Zahar, 5ª ed. p. 85], e é aqui utilizada e limitada ao universo do político e do ideológico, e não no nível da cultura como originalmente aplicada. Ela se restringe à idéia de que “(…) a perda da consciência em razão das liberdades satisfatórias concedidas por uma sociedade sem liberdade favorece uma consciência feliz que facilita a aceitação dos malefícios dessa sociedade. É o indício de autonomia e compreensão em declínio. A sublimação exige um alto grau de autonomia e compreensão; é a mediação entre o consciente e o inconsciente, entre os processos primários e secundários, entre o intelecto e o instinto, a renúncia e a rebelião (…)”.

30 Metropoint. Jornal distribuído no metrô de São Paulo – SP, no dia  4  maio de 2009.

31Disciplina fiscal, Redução dos gastos públicos, Reforma tributária, Juros de mercado, Câmbio de mercado, Abertura comercial, Investimento estrangeiro direto com eliminação de restrições, Privatização das estatais, Desregulamentação (afrouxamento das leis econômicas e trabalhistas) e Direito à propriedade intelectual.

32 http://pt.wikipedia.org/wiki/Consenso_de_Washington.

33Cf. Harley, David (2004). O novo imperialismo. São Paulo, Edições Loyola, cap. 4. A acumulação via espoliação (p. 115-148).

34 Dardot, Pierre e Laval, Christian (2009). La nouvelle raison du monde. Essai sur la societé neoliberal. Paris, La Découverte. p. 277 ss.

35 Estado-Providência ou Estado de bem-estar social (Welfare State), é um tipo de organização política e econômica que coloca o Estado (Nação) como agente da promoção (protetor e defensor) social e organizador da economia. Nesta orientação, o Estado é o agente regulamentador de toda vida e saúde social, política e econômica do país em parceria com sindicatos e empresas privadas, em níveis diferentes, de acordo com a nação em questão. Cabe ao Estado do bem-estar social garantir serviços públicos e proteção à população.

36 Dardot, Pierre e Laval, Christian (2009), op. cit. p. 457 ss.

37 Ibidem

38 Harvey, David (2004). op. cit. p. 126 -128

39 Harvey, David (2004). op. cit. p. 117.

40 CAOI (2008). Estados Plurinacionales Comunitários. Para que outro mundo seja possível.

41 Harvey, David (2004). op. cit. p. p. 134

42 Mézáros, Istvan (2004). Op. cit. p. 472.

43 Ver Carvalho, Horacio Martins de (2008). Op. cit.

44 Klein, Naomi (2008). A doutrina do choque. A ascensão do capitalismo do desastre. Rio de Janeiro, Nova Fronteira; p. 538-39.

45 Ploeg, J. D. van der (2008). Camponeses e Impérios Alimentares. Lutas por autonomia e sustentabilidade na era da globalização. Porto Alegre, Editora UFRGS, p. 6

46 Ploeg, J. D. van der (2008)., op. cit p. 201.

47 Quispe, Miguel Palacin (2008). Prólogo, in Estados Plurinacionales Comunitários. Op. cit

[EcoDebate, 19/05/2009]

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