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Artigo

Uma porta para o nada, artigo de Mário José de Lima

Buscar reorganizar a produção de alimentos primeiramente em atendimentos às carências nacionais parece, definitivamente, fora do propósito dos governos que se revezam.

[Correio da Cidadania] A crise energética terminou por empurrar os preços da economia de forma a promover uma reorientação nas estruturas produtivas na agricultura mundo afora. Uma chacoalhada nas condições de produção de alimentos básicos, mudando as expectativas dos negócios futuros e sinalizando a possibilidade de mais uma grave crise a se abater sobre a população mundial. O que devemos ter em mente é que a situação de hoje põe a possibilidade da falta de alimentos atingir, ou melhor dizendo, ampliar a faixa da população já carente de alimentos. Para uma parcela significativa da população mundial há muito tempo as condições de subnutrição são uma marca de suas realidades.

Segundo estimam as Nações Unidas, das seis bilhões de pessoas vivendo hoje no planeta, algo próximo a um bilhão sofrem de fome crônica. Mas, este número é uma estimativa grosseira, na medida em que deixa de fora aquelas pessoas sofrendo de deficiências de vitaminas e nutrientes e outras formas de subnutrição. O número total de pessoas que sofrem de desnutrição ou de carência crítica de nutrientes está provavelmente próximo aos três bilhões – cerca da metade da humanidade. A severidade desta situação torna-se clara pela estimativa das Nações Unidas de um ano atrás de que aproximadamente 18.000 crianças morrem, diariamente, em conseqüência direta ou indireta da subnutrição.

A carência de produção raramente pode ser tomada como a razão pela qual as pessoas estão famintas. Isso pode ser visto mais claramente nos Estados Unidos, onde a despeito de que a produção seja maior do que a população necessita a fome permanece como um sério problema. De acordo com o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, em 2006, 35 milhões de pessoas viviam em famílias sob condições de insegurança alimentar, incluindo treze milhões de crianças. Devido à carência de alimentos, adultos, vivendo em doze milhões de famílias, não podiam comer refeições balanceadas e sete milhões de famílias tinham porções menores ou não contavam com uma ou mais das refeições diárias. Em aproximadamente cinco milhões de famílias, as crianças não dispõem de alimento suficiente em algum momento durante o ano.

Em artigo recente, Fred Magdoff (Monthly Review, maio, 2008), que diz ser rotina a fome antes desta crise, chama a atenção para o fato de que nos países pobres não é incomum que grandes provisões e mal distribuídos alimentos existam em meio à disseminada e persistente fome. Magdoff recorre a dois exemplos presentes na imprensa mundial dando conta de sua afirmação: primeiro, um artigo, de pouco tempo atrás no New York Times contando uma história com o título “Pobres na Índia morrem de fome quando trigo em excesso apodrece” (02/12/2002); o outro, uma manchete no Wall Street Journal expressando, em 2004, que “Necessidade em meio à abundância, um paradoxo indiano: grande colheita e fome crescente” (25/06/2004).

Não estamos distante da situação indicada e até enfrentamos situações mais graves de subnutrição na realidade brasileira. As oscilações nas condições de fornecimento de alimentos no mundo repercutiram no mercado interno brasileiro de forma intensa, empurrando os preços e criando situações de desabastecimento de produtos básicos.

Uma situação inusitada para um país com gigantescas reservas de recursos naturais e população excedente de formação recente. A forte expansão das cidades brasileiras é resultado da intensa e rápida mecanização pela qual passou a agricultura brasileira nos últimos trinta anos. À medida que se promovia a reorganização produtiva que se desdobrou desde o final dos anos 60, impondo um novo padrão tecnológico para a agricultura, opera-se mudanças importantes na estrutura da propriedade fundiária do país. O fortalecimento da agricultura de base capitalista, apoiada pela mecanização, pelo uso intenso de adubos químicos e outros recursos de mesma base no combate às pragas, mais o uso de sementes geneticamente transformadas, implica a expansão das unidades produtivas e no esmagamento da pequena produção de base familiar. Isso ao lado do avanço sobre o controle da cadeia produtiva das matérias oriundas de produção agrícola e sobre as estruturas de comercialização.

Associada à formação e ao aprofundamento das relações capitalistas na agricultura, ampliam-se os contingentes de migrantes orientados para as áreas urbanas, fortalecendo o número das unidades familiares dependentes do mercado para se abastecerem de alimentos.

Em função das condições de emprego nas cidades, é nestas parcelas da população que se encontra o maior déficit alimentar. Trata-se de famílias que não conseguem acompanhar o comportamento altista dos preços dos alimentos.

Por outro lado, parcela importante dos recursos apropriados pelo grande empresa agrícola é orientada para a produção de alguma mercadoria que integre a pauta dos negócios internacionais. Uma faixa importante da produção que se desenvolveu com os desdobramentos da fronteira agrícola brasileira, desde o final dos anos 60, é formada pela produção de uma das mais valorizadas commodities da atualidade, a soja. A rota de plantio dessa leguminosa é a rota da destruição da floresta amazônica. Apoiada nos avanços da tecnologia agronômica, no desenvolvimento de novas variedades, a produção de soja alcança com elevados níveis de produtividade as regiões tropicais.

A Amazônia experimenta agora a intensificação da pressão que se desdobra desde os anos 60 sobre a sua reserva florestal e de terras, ao tempo que a sua população é empurrada para áreas urbanas a ponto de assistir ao esvaziamento das regiões agrícolas. Em cerca de duas décadas, a estrutura de distribuição populacional é posta ao contrário, quando mais de 70% da população alcançam as áreas urbanas. Ampliam-se as necessidades de abastecimento pelo mercado sem que existam condições geradoras de emprego e renda para centenas de milhares de famílias deslocadas. Um caminho para mais famílias submetidas à miséria e subnutrição.

Esses dias, o presidente da República anunciou uma estratégia de luta contra a crise alimentar. Para ampliar a angústia de quem vive o flagelo da fome, em sua fala o presidente anuncia que prepara o país para se servir dos preços altos dos alimentos. O fato de centrar as medidas governamentais nos níveis de rentabilidade possíveis graças aos preços elevados deixa de lado os interesses da população – ou da maior parcela da população. O grupo presente na reunião presidencial é esclarecedor: além dos ministros, empresários do agronegócio.

O país perde, com a atitude do governo, a oportunidade de enfrentar três graves problemas da atualidade mundial, e particularmente nacional: a crise alimentar, a questão do desemprego e a questão ambiental. Tivesse sua excelência encaminhado suas preocupações para esses três temas, teria encontrado na pequena e média produção um caminho seguro para a construção de um quadro de estabilidade e de desenvolvimento sociais. Mas, buscar reorganizar a produção nacional de alimentos primeiramente em atendimentos às carências das populações nacionais parece, definitivamente, fora do propósito dos governos que se revezam desde os últimos vinte anos. Principalmente quando ficou muito evidente a estratégia nacional de construir uma nova inserção nas relações internacionais, abandonando o objetivo de ampliação do mercado nacional.

A busca em “aproveitar” as condições de rentabilidade para melhorar a posição nacional nas relações internacionais corresponde a ampliar a base da produção para atender ao mercado internacional. A conseqüência de tal estratégia é que, em última instância, estaremos colando os preços internos aos preços internacionais, como já acontece com as commodities presentes nas nossas exportações. Ou seja, dados os níveis correntes do poder de compra das populações nacionais, ou pelo menos a maior parcela populacional, estaremos contribuindo para dificultar, ainda mais, o acesso ao mercado de alimentos.

Esta crença exacerbada no poder do capital esquece as raízes da crise – e dos seus matizes – vivenciada pela humanidade nos dias atuais. Os governos do mundo laboram no esquecimento das grandes crises, inclusive a que lançou o mundo nos desastres maiores do século XX, enquanto que os governos brasileiros, notadamente os mais recentes, laboram no esquecimento da história recente das transformações capitalistas no país e dos seus resultados sobre as populações nacionais.

Mario José de Lima é professor de Economia da PUC.

Artigo originalmente publicado pelo Correio da Cidadania