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Especialista defende mudanças de hábitos alimentares

RIO – O especialista em alimentos Raj Patel já trabalhou no Banco Mundial (Bird) e na Organização Mundial do Comércio (OMC) – e hoje critica ambos. Esse inglês de 35 anos, que dá aulas nas universidades de Berkeley, EUA, e KwaZulu-Natal, África do Sul, lançou, no fim do ano passado, o livro “Stuffed and starved” (“Entupidos e esfaimados”, sem previsão de lançamento no Brasil), no qual analisa o paradoxo de um mundo em que mais de 800 milhões de pessoas passam fome e um bilhão sofre com doenças ligadas à obesidade. Em entrevista ao GLOBO por e-mail, Patel disse não ver os biocombustíveis como solução para o aquecimento global e defende que as pessoas repensem seus hábitos alimentares em benefício do planeta. Por Cláudia dos Santos, do O Globo, publicada pelo Globo Online em 24/05/2008 às 20h18m.

Especialistas da ONU argumentam que a especulação com commodities, somada à maior demanda de China e Índia, é uma das razões principais para a atual disparada dos preços dos alimentos. O senhor concorda?

RAJ PATEL: Acho que há cinco grandes causas para o fato de os preços estarem tão elevados neste momento:

1 – O preço do petróleo, porque boa parte de nossos alimentos são produzidos usando-se combustíveis fósseis, não apenas no transporte como em fertilizantes;

2 – Colheitas ruins, por causa de pragas e problemas nas lavouras (alguns responsabilizam o aquecimento global por isso);

3 – Maior demanda por carne nos países em desenvolvimento, o que está puxando os preços dos cereais;

4 – Biocombustíveis;

5 – Especulação financeira e ganância de investidores, que buscam lucros excessivos, além de conluio (já há três investigações no Reino Unido, na Espanha e na África do Sul sobre fixação de preços por parte de grandes empresas).

O governo brasileiro argumenta que o Brasil produz etanol da cana-de-açúcar, que não é essencial para a alimentação das pessoas, e que o país ainda tem terras cultiváveis disponíveis. E também argumenta que o etanol à base de cana é uma fonte de energia relativamente limpa, o que contribuiria para reduzir o aquecimento global, e mais barato que o biocombustível feito a partir de milho ou colza, produzido por EUA e União Européia. Então, em meio a toda a polêmica sobre os biocombustíveis, não deveríamos separar o etanol bom do ruim? Ou, no fundo, não há diferença?

PATEL: Realmente há uma diferença entre o etanol de milho e o de cana-de-açúcar. Mas todos os tipos de biocombustíveis comercialmente produzidos hoje geram uma “dívida de carbono”. Segundo artigo publicado na revista “Science” em fevereiro, o uso de florestas tropicais, savanas e outros tipos de vegetação para produzir biocombustíveis em Brasil, Sudeste da Ásia e EUA cria uma “dívida de carbono de biocombustível” ao liberar de 17 a 420 vezes mais CO2 que a redução de gases do efeito estufa proporcionada pela substituição de combustíveis fósseis. Se nos preocupamos com CO2 e aquecimento global, então os biocombustíveis são uma má idéia. Se nos preocupamos com independência energética, conservar energia é uma boa idéia. Se nos preocupamos com segurança no trabalho, então deveríamos lembrar as palavras de Lula, quando, em 1998, ele comparou produtores de biocombustível a criminosos devido às condições de trabalho forçado nas lavouras (mas é claro que ele deu um giro de 180° desde então). De acordo com a Organização Internacional do Trabalho, há cerca de 40 mil trabalhadores forçados, escravos modernos, nas fazendas brasileiras, principalmente na cana-de-açúcar. Se nos importamos com a Justiça, seguramente vamos querer ficar longe disso. E se estamos preocupados com sustentabilidade, vamos ficar de olho na maciça quantidade de água que o Brasil exporta (sem repor) na produção de cana-de- açúcar.

Cada vez mais, as nações em desenvolvimento tentam atingir os padrões de alimentação dos países ricos – basicamente, comer carne todos os dias. Isso seguramente significará um desastre ecológico, devido à quantidade de água e cereais consumidos pelos animais. Há alguma maneira de prevenir esse desastre?

PATEL: A meu ver, essa é a questão mais difícil de ser discutida, especialmente numa época em que a carne significa luxo, progresso e riqueza. Mas hoje, nos EUA, há famílias de classe média que estão reduzindo seu consumo de carne, não porque querem, mas por que a carne está muito cara. Ninguém realmente espera que o preço da carne vá cair. Acredito que é melhor lidar mos com essa questão por meio de debates, em vez de deixar que o mercado nos diga como comer. No fim das contas, no entanto, a mudança em direção aos níveis de consumo de carne nos EUA é insustentável. E seria muito ruim para o resto do mundo comer como os americanos – aqui, a expectativa de vida para mulheres pobres está diminuindo, e as crianças nascidas hoje devem viver cinco anos menos que seus pais (a não ser que tenham acesso a novas tecnologias médicas) por causa dos problemas cardíacos e da diabetes que elas enfrentarão. Temos de pensar com muito cuidado sobre a dieta que consideramos “desenvolvida”…

Responsabilidade social é a nova moda entre as grandes corporações: estas prometem aos consumidores usar materiais recicláveis ou comprar de fornecedores que não usem, por exemplo, trabalho infantil. Mas, como observou Robert Reich em seu livro “Supercapitalism”, as empresas só fazem isso se puderem obter lucro, porque seu objetivo principal é distribuir dividendos aos acionistas, não ser boas. Qual a sua opinião sobre responsabilidade social das empresas? Um gigante como a Wal-Mart pode ser ecológico?

PATEL: Minha avaliação predileta e mais honesta sobre res ponsabilidade social vem de Jan Kees Vis, diretor de Agricultura Sustentável da Unilever. Ele ressaltou que todo ato responsável é aquele que atende tanto aos interesses da em presa como aos dos fazendei ros com que ela trabalha. O que uma empresa nunca pode fazer, porque responde não aos fazendeiros mas aos acionistas, é agir de maneira a atender aos interesses dos fazendeiros, mas não aos da própria companhia. Então, as medidas da Wal-Mart para reduzir sua emissão de carbono, ainda que sejam exemplo de uma prática verde, são motivadas mais pelo fato de que eles têm uma das maiores frotas de distribuição do mundo, e o preço do petróleo está em torno de US$ 130 o barril. Eles nunca farão algo altruísta, a não ser como golpe publicitário. Seríamos tolos se pensássemos o contrário.

Em seu livro, assim como em seu blog, o senhor sempre menciona organizações como o MST e a Via Campesina. Para o cidadão médio, porém, elas são um pouco assustadoras, com suas foices e ideais abertamente socialistas. E o movimento antiglobalização perdeu força depois dos ataques do 11 de Setembro. Com a mídia dominada por grandes corporações, esses grupos vão conseguir transmitir sua mensagem às massas?

PATEL: É uma questão interessante. Até um certo ponto, claro, eles são as massas. Estima-se que a Via Campesina tenha 150 milhões de participantes. Mas hoje vivemos em um mundo mais rural que urbano. Isso parece pesar contra a divulgação, do campo para a cidade, da mensagem das pessoas mais pobres do mundo. Por outro lado, e no momento da atual crise é o que me dá esperança, a Via Campesina oferece uma visão de soberania alimentar relevante para o campo e a cidade. Há décadas eles promovem técnicas de agricultura e abordagens recentemente defendidas por um painel de especialistas da Avaliação Internacional de Conhecimento, Ciência e Tecnologia para Desenvolvimento Agrícola (IAASTD, na sigla em inglês). Eles também têm promovido o tipo de políticas sociais e econômicas que oferecem uma esperança para o futuro, e alimento, em uma época em que nenhum outro órgão discute as grandes questões. É um grande risco ignoramos essas vozes.

O senhor trabalhou no Bird, na OMC e na ONU. Atualmente, critica a abordagem desses organismos para lidar com a pobreza mundial. Como foi a passagem de um insider do sistema para um ativista?

PATEL: Para ser sincero, sem pre fui um outsider. Trabalhei no Bird durante a universidade e fiz um estágio na OMC para descobrir como era. Fiquei mais tempo na ONU porque, ao contrário de Bird e OMC, ao menos aquela tem alguns meios básicos para garantir a democracia. O Bird e a OMC são impostos a países onde os cidadãos não têm qualquer chance de serem ouvidos. Isso é profundamente antidemocrático. Se os especialistas desses organismos realmente acreditam que suas políticas são realmente as melhores, então eles não deveriam ter o medo que têm de encarar as pessoas e debater com elas.