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Desenvolvimento na Amazônia se tornou sinônimo de derrubar, queimar, arrasar, matar. Entrevista com dom Erwin Kräutler

“Parem com isso! Chega! Não há meio termo! Já estamos no limite! Não se pode mais dar concessões!”. A indignação é manifestada por dom Erwin Kräutler, bispo do Xingu e presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Segundo dom Erwin até recentemente “desmatar significava beneficiar, valorizar a área. Coisa espantosa!”, exclama ele. “Assim aconteceu – continua o seu raciocino – que fazendeiros simplesmente mandaram derrubar a mata em larga escala, só para mostrar que estão beneficiando a terra com a finalidade de conseguir vultosos créditos de bancos que favorecem o desenvolvimento”.

Sobre a ação da ministra Marina Silva, do Meio Ambiente, dom Erwin Kräutler comenta: “O pobre Ministério do Meio Ambiente me é simpático. Infelizmente este ministério é a ‘Geni da história’, longe de ter os poderes e os recursos financeiros para desempenhar adequadamente suas atribuições. A Ministra Marina sempre me pareceu uma ‘enteada’ do Governo, magérrima, símbolo vivo da desnutrição da pasta que ocupa”.

As declarações do bispo foram dadas em entrevista ao Jornal Santuário de Aparecida, 13-02-2008.

Eis a entrevista.

Muito já se disse sobre o aumento do desmatamento na Amazônia, sobre a falta de fiscalização, o avanço dos madeireiros, etc. Ao mesmo tempo, o próprio governo federal dizia que nunca o desmatamento havia diminuído tanto na região. Agora, novos dados do Inpe surpreendem até o presidente da República. Como o senhor avalia essa situação? Quão grave é realmente o desmatamento na região amazônica?

Não adianta fazer apenas comparações com os anos passados. Comemorava-se, por exemplo, a redução da taxa de desmatamento em 25% entre agosto de 2005 e julho de 2006. Resultou em uma sensação equivocada. Parecia vitória, mas na realidade não tínhamos nenhum motivo de festejar. Esse tipo de notícia aparentemente alvissareira me lembra a macabra constatação nos meios de comunicação que em determinada época morreram menos índios que em outra, dando assim a idéia que tudo está sob controle. Ora, se morre apenas um índio assassinado ou vítima do descaso da FUNASA é sempre um demais. Se há apenas um foco de incêndio na selva amazônica, é um demais!

Agora somos informados de que segundo um levantamento do Inpe, de agosto a dezembro de 2007, foram derrubados 3.233 quilômetros quadrados de floresta, dos quais 1.922 quilômetros quadrados em novembro e dezembro, quando normalmente não há desmate por causa das chuvas. É o governo que afirma que pode ser, no entanto, muito maior“.

Segundo Carta Maior, o Ministro Nelson Jobim, da Defesa, após sobrevoar em Rondônia regiões de fronteira com a Bolívia ao lado dos comandantes do 6º Batalhão de Infantaria de Selva, classificou de “escandaloso” o desmatamento que viu com os próprios olhos: “Eu achava que era exagero da mídia, mas não imaginava ver o que vi. Há um completo desconhecimento no resto do país sobre o que está acontecendo em Rondônia”, disse o Ministro. De volta à Brasília, Jobim anunciou que vai elaborar um relatório sobre o que viu na Amazônia.

Importa verificar uma vez a extensão da floresta tropical que já tombou nos últimos anos e décadas e cedeu lugar a vastas pastagens ou ao monocultivo da soja. E dessas áreas seria ainda mais interessante publicar a percentagem já deteriorada. Mais cedo o mais tarde áreas que serviram ou servem hoje para a pecuária são abandonadas pois são totalmente esgotadas e logo mais a ameaça paira sobre outras terras da Amazônia.

A marcha dos incendiários continua e se dirige à Terra do Meio. O final melancólico é aqui e acolá uma placa com oferta de venda de uma área que já não vale nada, produzindo apenas uma vegetação rasteira de ”espinhos e abrolhos“ (cf. Gn 3,18).

Continuo a defender a tese de que é crime derrubar a floresta tropical em grande escala. A natureza reage e a estepe substituirá num futuro não remoto as selvas milenares. Segundo recentes cálculos de cientistas, em 2030 a metade da selva tropical da Amazônia terá sucumbido à agressão inescrupulosa do homem, se as derrubadas e queimadas continuam no ritmo de hoje. É uma previsão séria, mesmo que seja apocalíptica. A medida a ser tomada é a mais drástica possível. ”Parem com isso!“ ”Chega!” Não há meio termo! Já estamos no limite! Não se pode mais dar concessões!

Até que ponto as atividades econômicas como produção de soja e pecuária interferem no desmatamento?

A figura do módulo rural de 100 ha na Amazônia em que o agricultor apenas podia desmatar algo em torno de 20 ha foi uma ilusão desde o início. Chegaram os grandes fazendeiros e estes não se importaram com nada. Toda a mata de suas enormes propriedades foi e continua sendo sacrificada em toda a sua extensão. Até pouco tempo atrás uma região com a floresta em pé foi oficialmente considerada terra devoluta. Desmatar significava ”beneficiar”, ”valorizar” a área. Coisa espantosa!

Assim aconteceu que fazendeiros simplesmente mandaram derrubar a mata em larga escala, só para mostrar que estão “beneficiando“ a terra com a finalidade de conseguir vultosos créditos de bancos que favorecem o “desenvolvimento“. Que inversão de valores! ”Desenvolvimento” se tornou sinônimo de derrubar, queimar, arrasar, matar. Na Amazônia, para a pecuária intensiva só servem os campos naturais nas extensas várzeas, mas não as regiões cobertas por florestas.

Na prática, os órgãos competentes fazem “vista grossa” na fiscalização?

Não iria chegar a tanto, afirmando que fazem „vista grossa“. Temos que distinguir entre o Governo e os órgãos executores de programas. Não hesito em denunciar o pouco caso e a omissão do “Governo“ que está mais preocupado em mostrar para o mundo suas „iniciativas“ contra os desmatamentos e as queimadas. Esmera-se em defender a “magem“ do Brasil lá fora!

Ao mesmo tempo o pobre Ministério do Meio Ambiente me é simpático. Defende com unhas e dentes o lar que Deus criou para tantos povos na Amazônia. Infelizmente este ministério é a “Geni da história“, longe de ter os poderes e os recursos financeiros para desempenhar adequadamente suas atribuições. A Ministra Marina sempre me pareceu uma “enteada“ do Governo, magérrima, símbolo vivo da desnutrição da pasta que ocupa. Está aí porque é do Acre e carrega consigo uma bagagem rica de engajamento em questões ambientais, de defesa da Amazônia. Mas na realidade, qual o alcance de um Ministério com tão minguados recursos. Todo mundo xinga o IBAMA! Mas o que pode fazer por exemplo o IBAMA de Altamira no Pará sem o aparelhamento de que precisa para fiscalizar toda uma área do tamanho de um país europeu ou de um Estado brasileiro.

Além do mais, os “executivos“ sérios do Governo e realmente comprometidos com a causa ecológica correm até risco de vida. É o caso de Roberto Scarpari, gerente do IBAMA em Altamira, homem que briga pela Amazônia. Passava merecidas férias no Rio. A Polícia retirou-o às pressas de circulação, pois descobriu-se a trama de uma simulação de assalto à mão armada contra ele. Há tempo está na mira dos madeireiros do Pará que o detestam. Matá-lo no Rio no contexto de um assalto dificilmente levantaria suspeitas sobre quem realmente encomendou o homicídio. Mas coitado! Qual é a infraestrutura, quais as ferramentas que possui para fiscalizar a área? O número de fiscais à sua disposição é para lá de insuficiente. Agora lhe deram um “helicóptero“! Parece brincadeira!

Quais medidas o senhor sugere para conter o avanço do desmatamento? E por que elas são importantes?

Se o atual Governo realmente tiver vontade política de conter o avanço do desmatamento, uma maneira de salvar o que resta da Amazônia é demarcar e respeitar à risca as áreas indígenas. Grande parte delas, especialmente na faixa de fronteira, não foi demarcada, embora a Constituição de 1988 tivesse determinado um prazo de 5 anos para tais procedimentos a partir da data de sua promulgação.

Outra medida é a criação de reservas extrativistas e parques nacionais ou reservas florestais. Mas o que importa não é apenas um decreto que cria tais figuras que garantem a preservação. Nas reservas extrativistas torna-se necessário elaborar programas de acompanhamento das comunidades. Declarar uma área como “extrativista“ e depois deixar o povo que ali vive entregue à própria sorte, é no mínimo um disparate e causa desespero, a ponto de as famílias abrirem as reservas novamente para madeireiros sem plano de manejo e para outros saqueadores de plantão.

O mesmo se diga em relação às áreas indígenas. Deixar as comunidades indígenas sem assistência alguma, a ponto de índios morrerem à míngua ou vítimas de desidratação é crime contra a humanidade.
Reservas florestais só serão respeitadas se a fiscalização é confiável e funciona, Mais uma vez levanto a voz exigindo que o Governo aparelhe o IBAMA e dê condições ao Ministério do Meio-Ambiente para deixar de ser um organismo apenas “para inglês ver“, na realidade, porém, ineficiente e impotente.

Também está na hora de deslanchar um processo de educação ambiental nas escolas, universidades e nos meios de comunicação, com programas interdisciplinares que alertam ao povo sobre a responsabilidade que a atual geração tem em relação as futuras gerações. Nossa geração, infelizmente, se comporta como se fosse a última.

Qual o impacto desse desmatamento às populações de baixa-renda e aos indígenas?

Os povos indígenas morrem, se morre o lar em que vivem. Os ribeirinhos morrem quando não há mais mata e ainda, por cima, os rios estão poluídos. A agropecuária é sustentada pelos agro-tóxicos, que poluem os mananciais e contaminam os alimentos. O espectro da morte nos rodeia a todos!

Qual o impacto do desmatamento para o Brasil e para o mundo?

A Amazônia possui 1/5 da água doce do planeta. É o maior banco genético da Terra. Até hoje não se tem ainda conhecimento pleno da quantidade de espécies vegetais e animais que nela existem. Não quero apelar para a tese de uma “Amazônia pulmão do mundo“. Não é por aí. Os cientistas concordam que a Amazônia presta serviços ambientais ao Brasil e ao planeta“ e é um fator muito importante „na regulação da temperatura do planeta“. Mas não podemos esquecer também a função oxigenadora do mar. No entanto, a destruição da Amazônia contribuirá enormemente para as mudanças climáticas. As queimadas na Amazônia são a maior contribuição brasileira para aquecimento global. De acordo com a ONG Iniciativa Verde, as queimadas respondem por aproximadamente 70% das emissões brasileiras de gases do efeito estufa. “É inadmissível que o país tenha essa postura indolente em relação a um crime ambiental dessa monta”, reivindica o diretor de Iniciativa Verde, Osvaldo Martins.

Não se trata de “engessar“ a Amazônia, colocando-a dentro de uma redoma. Trata-se antes de deixar de confundir „desenvolvimento“ com derrubadas e agressões à natureza e uma exploração insaciável, um verdadeiro saque às riquezas naturais em detrimento irreversível das futuras gerações.

É papo furado a história da internacionalização da Amazônia. A soberania brasileira sobre a maior parte da Amazônia, ninguém duvida dela. Quem realmente poderia deixar de reconhecê-la? Mas se o Brasil não assumir decididamente o compromisso de defender esta Amazônia e não pôr um freio nesta devastação inescrupulosa, as futuras gerações acusarão o Brasil de vilão da história, de ter sido responsável por uma desgraça que ultrapassou as suas fronteiras e pôs em risco a sorbrevivência do gênero humano neste planeta.

O Documento de Aparecida destaca a preservação da Floresta Amazônica. Quais instrumentos a Igreja da América Latina, principalmente a brasileira, dispõe para frear o desmatamento?

O número 85 do Documento de Aparecida relata que o Papa Bento XVI chamou a atenção sobre a devastação ambiental da Amazônia e pediu aos jovens “um maior compromisso nos mais diversos espaços de seus povos“. Em seu discurso no Estádio do Pacaembu em São Paulo o Papa partiu de nosso Hino Nacional em que cantamos „os nossos bosques tem mais vida“. De fato, um dos compromissos de Aparecida é „criar nas Américas consciência sobre a importância da Amazônia para toda a humanidade“ (DA 475).

Não cabe à Igreja elaborar programas de contenção do desmatamento e de fiscalização. A missão da Igreja é e continua sendo a conscientização e sensibilização do povo brasileiro e de seus governantes em relação à Amazônia. E neste sentido a Campanha da Fraternidade de 2007 foi um sucesso do Juí ao Oiapoque. O sistema capilar das comunidades espalhaldas por este País afora foi, durante toda a quaresma, palco de meditações e tomadas de posição em favor da Amazônia.

Faço questão de citar aqui o meu grande e venerando amigo e irmão, o bispo emérito de Piracicaba, Dom Eduardo Koaik, que num artigo relativo à Campanha da Fraternidade de 2007 sintetizou magistralmente papel conscientizador da Igreja no Brasil: ‘Amazônia e Fraternidade’ é um tema-desafio, apresentado como “um convite para que se conheça, se aprecie e se respeite toda a vida que a Amazônia guarda: seus povos, sua biodiversidade, sua beleza” (Texto-Base, nº 3). O que é mesmo a Amazônia? Uma dádiva de Deus de todo tamanho nas mãos do Brasil. A Campanha em seu favor é a favor de toda a humanidade. É um grande apelo, por parte da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), contra a devastação de suas florestas, contra a ameaça à sua exuberante biodiversidade, contra a ocupação de suas terras em flagrante desrespeito ao ecossistema. Ser contra a prática de todas essas formas de violência é a única maneira de proteger esse riquíssimo patrimônio natural“ (Dom Eduardo Koaik, 27.02.2007).

Fui um dos delegados da CNBB ao ‚“Sínodo da América“ em 1997 convocado pelo Papa João Paulo II. Considerei aquele evento um “kairós“ para falar da já macabra realidade amazônica e minha proposição foi literalmente inserida na Exortação Apostólica pós-sinodal “Ecclesia in America“ do Papa João Paulo II sob o número 25: « E Deus viu que isto era bom » (Gn 1, 25). Estas palavras que lemos no primeiro capítulo do livro do Gênesis, oferecem o sentido da obra realizada por Ele.

O Criador entrega ao homem, coroação de todo o processo criador, o cultivo da terra (cf. Gn 2, 15). Daí nascem para cada indivíduo específicas obrigações no que diz respeito à ecologia. O seu cumprimento supõe a abertura para uma perspectiva espiritual e ética que supere as atitudes e « os estilos de vida egoístas que acarretam o esgotamento das reservas naturais .Também neste setor, de tanta atualidade hoje em dia, a intervenção dos fiéis crentes é muitíssimo importante. É necessária a colaboração de todos os homens de boa vontade com as instâncias legislativas e governamentais, para conseguir uma proteção eficaz do ambiente, considerado como dom de Deus.

Quantos abusos e prejuízos ecológicos não há inclusive em muitas regiões americanas! Pense-se na emissão descontrolada de gases nocivos ou no dramático fenômeno dos incêndios florestais, provocados por vezes intencionalmente por pessoas movidas por interesses egoístas. Estas devastações podem conduzir a uma real desertificação em muitas zonas da América, com as inevitáveis conseqüências de fome e miséria. O problema chega atingir especial entidade na floresta amazônica, imenso território que interessa a várias nações: do Brasil à Guiânia, ao Suriname, à Venezuela, à Colômbia, ao Equador, ao Peru e à Bolívia. Trata-se de um dos espaços naturais mais apreciados no mundo pela sua diversidade biológica, que o torna vital para o equilíbrio ambiental de todo o planeta ».

Não faltam advertências e chamadas à atenção da Igreja. Infelizmente não surtem o efeito almejado. A ânsia por lucros imediatos, a ganância desenfreada parecem falar mais alto do que a preocupação com as consequências de empreendimentos nefastos que poderão prejudicar já a médio prazo toda a humanidade.

(www.ecodebate.com.br) entrevista publicada pelo IHU On-line, 18/02/2009 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]