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Artigo

Mucambar de novo, por Ruben Siqueira

Comunidades tradicionais influenciam movimentos sociais no rio São Francisco a fazerem ecologia política e a avançarem mais que governos.

[EcoDebate] Conta a história, no “livro de tombo” da paróquia de Bom Jesus da Lapa, que ao chegar a notícia da Lei Áurea, que aboliu a escravidão no Brasil, a Lapa foi tomada por centenas e centenas de negros em festa pelas ruas por mais de semana. A informação foi decisiva para comprovar a existência de comunidades remanescentes de quilombos na região e para o reconhecimento, nos marcos legais da época do governo Fernando Henrique, da primeira delas, a de Rio das Rãs. A tese acatada do historiador, padre José Evangelista de Souza, era de que aqueles negros puderam se esbaldar na comemoração porque já eram livres, vivendo “mucambados” (em quilombos) na região.

A lembrança veio à mente na mesma Lapa participando das manifestações que encerraram, em 18/04/07, a meia-semana de ocupação da sede da Codevasf – Cia. de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba por cerca de 600 representantes dos movimentos populares e organizações sociais da região. Na certa, muitos eram descendentes daqueles festejadores. O “mucambo” instalado na Codevasf, já vitorioso e ameaçado de despejo judicial, encerrou-se com uma marcha pelas ruas, para interditá-las ao som dos tambores, gritos de guerra e cantos de luta. E a cidade parou de novo para assistir, aprovando ou não a manifestação. No passado, boa parte dela fugiu, largando tudo entregue à festa da liberdade.

Cento e dezenove anos se passaram, a condição dos negros e mestiços (quase todos os que estavam na ocupação eram, além de alguns Kariris de Moquém do São Francisco) não mudou muito em termos de condições de vida. (Há quem ache que, materialmente falando, alguns viviam até melhor no cativeiro…) As formas de resistência e luta, é certo, não são as mesmas. Muita coisa mudou e outro tanto permanece inalterado desde então. “Esses negros” foi expressão usada por uma funcionária loira – se falsa, não se soube – para se negar ao trabalho em tão colorida companhia… Pois bem, “esses negros”, tão antigos, são a grande novidade no São Francisco e em outras regiões hidrográficas do país, atualmente.

A novidade está em que esses movimentos, que congregam outros setores da sociedade civil, em mais amplas articulações em torno desses povos e comunidades tradicionais, juntam à defesa de seus direitos básicos, para a sobrevivência física e cultural, garantidos na Constituição, a defesa do meio-ambiente em que vivem, cujo eixo vital são as águas. Cobram um modelo de vida (de economia, de agricultura, de ecologia, etc.) sustentável de fato, não só de discurso, no que beneficiam a todos, até quem, por ignorância, cinismo ou hipocrisia, os combatem.

Dupla negação confrontam. A dos direitos da cidadania, tratados que são eles, historicamente, pelo Estado e pela sociedade como “cidadãos de segunda categoria”, atendidos tardiamente, quando são, e pró-forma, num arremedo de cumprimento da lei da República. E a negação das bases territoriais e sócio-ambientais de sua existência. Esses povos e comunidades tradicionais, que em tempos recentes se levantam como nunca antes, tão mais fortes quanto mais (ainda) ignorados, só se auto-reproduzem com a posse e controle de seus territórios, necessariamente mais amplos que alguns hectares de área para plantio ou pastoreio. Integrados simbioticamente ao meio-ambiente passaram a ser fator de proteção também do próprio meio-ambiente. Como deviam ser todos nós!

É o caso do Projeto Extrativista São Francisco, em Serra do Ramalho e Carinhanha, na Bahia, bastante representado nas mobilizações da Lapa. Seiscentas famílias ribeirinhas – ao mesmo tempo lavradores, pescadores, criadores e extrativistas – oriundas de relocamento provocado pela barragem de Sobradinho no final dos anos 1970, passaram a ocupar 21 mil hectares ao longo de 120 km da margem esquerda do rio São Francisco, em frente ao município de Bom Jesus da Lapa. É a área do Médio Vale do São Francisco mais bem preservada, referência e sugestão para outras áreas, como forma de revitalização de verdade, fosse para valer o programa de revitalização do governo.

Foi a primeira vez ocupada e interditada uma sede da “Codé” – como os camponeses, nos anos 80, apelidaram a companhia na época das “frentes de emergência” contra a seca. A razão? É ela a grande patrocinadora da degradação da bacia do São Francisco, através dos projetos de irrigação, a maioria falidos e com um saldo social e ambiental mais que negativo, “devastador”, conforme reconheceu até um estudo do Banco Mundial[1] que os financiou. E tem ela funcionado como operadora da moeda de troca que é o programa oficial de revitalização, que inclui obras cosméticas, como viveiros e replantio de matas ciliares (biombos para a devastação dos cerrados e caatingas operada pelo agronegócio indiscriminado), e até adução de água para irrigação, como no Salitre, em Juazeiro-BA. Em andamento desde novembro de 2003, ainda não mostrou resultados palpáveis. Foram gastos R$ 192 milhões no período de 2004 a 2006, promovidas muitas reuniões e encontros, criadas muitos comissões e GTs e comitês e núcleos. E ficou só nisso.

Às costumeiras pautas de reivindicação sobre reforma agrária, política agrícola, políticas sociais – nunca respondidas na prática, como se deve – esses movimentos vêm acrescentando a demarcação e titulação de seus territórios, multiplicação de Reservas Extrativistas, Agro-Extrativistas e de Uso Econômico Sustentável e programas de educação contextualizada e ambiental. Agora estão se colocando à frente da luta concreta contra a transposição do São Francisco e pela revitalização do rio, da caatinga e do cerrado. Demonstraram acuidade na percepção das causas dos males seus e do país, nas paradas diante das agências do Banco do Brasil e do Bradesco e da sede da Prefeitura da cidade. As falas contundentes denunciaram o aprofundamento do modelo econômico que favorece o capital especulativo e o agronegócio de exportação financiado com dinheiro público, apoiado pela omissão ou cumplicidade dos poderes públicos, cujos próceres em todos os níveis e em diferentes medidas, também participam do festim; ou será butim? Esse também a razão última inconfessa da transposição e da falsa revitalização do São Francisco.

Foi um recado bastante claro para o Governo: não se aceitam mais autoritarismos e dubiedades em projetos mascarados, que são o que não parecem, inclusive os mais recentes de uma tardia, ineficaz e oportunista resposta ao aquecimento global. O ecologismo de fachada do atual governo serve a causas que não são as do povo e da natureza do Brasil. É, como o conjunto da obra lulista, mais do mesmo de submissão e cumplicidade com os interesses de um mal-disfarçado neocolonialismo, externo e interno, que custam rios de dinheiro público, nos ralos da corrupção, e deixam uma torrente de misérias sociais e ambientais. Os povos e comunidades tradicionais o Presidente Lula os incluiu entre os “entraves ao crescimento”, enquanto usineiros são “heróis”… Como se recusam à “lata de lixo” da História, esses povos e comunidades, legítimos donos do que restou de seus territórios, aqui e em toda a América Latina, estão em outra, muito mais à frente. Os “mucambos”, de volta, vieram para ficar; para sorte nossa.

Ruben Siqueira – sociólogo, da CPT Bahia/Sergipe, articulador geral do projeto Articulação Popular na Bacia do Rio São Francisco CPT/CPP, colaborador e articulista do EcoDebate

[1] http://www.bancomundial.org.br/index.php/content/view_document/1542.html

in www.EcoDebate.com.br – 24/04/2007