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trabalho degrandante: Fiscais resgatam 118 em grandes usinas na divisa entre SP e MG

55 dos resgatados trabalhavam na Usina Agrisul, em Icém (SP), que faz parte do Grupo José Pessoa – reincidente em casos de trabalho degradante. Usina Moema, de Orindiúva (SP), assumiu responsabilidade por outras 63 pessoas. Por Christiane Peres e Maurício Hashizume, da Agência de Notícias Repórter Brasil

Duas equipes do grupo móvel de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) estiveram numa das principais áreas de expansão de usinas de cana-de-açúcar – entre São José do Rio Preto (SP) e Uberlândia (MG), no Triângulo Mineiro – para averiguar denúncias e encontraram 118 trabalhadores em condições degradantes. Por trás dos flagrantes de precariedade, fiscais se depararam com esquemas ilegais de aliciamento e de servidão por dívida de trabalhadores vindos de regiões como o Vale do Jequitinhonha, no extremo norte de Minas Gerais, e de estados distantes como Bahia, Maranhão e Ceará.

Do total de regatados entre os dias 3 e 14 de junho, 55 trabalhavam na Usina Agrisul, no município de Icém (SP), que faz parte da Companhia Brasileira de Açúcar e Álcool (CBAA), conglomerado do Grupo José Pessoa. As empresas ligadas ao Grupo José Pessoa foram suspensas do Pacto Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo em dezembro do ano passado, depois que uma fiscalização encontrou 831 indígenas em condições degradantes na unidade do grupo em Brasilândia (MS).

O agravante, no caso da Agrisul, foi a constatação de servidão por dívida, combinada com o atraso no pagamento de salários. Por meio de um mandado de busca e apreensão assinado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e acatado pela Justiça, a fiscalização vasculhou uma mercearia de Fronteira (MG) e flagrou a retenção de mais de 80 documentos pessoais – RG, CPF, Título de Eleitor e Cartão-Cidadão da Previdência Social, de um total de 40 trabalhadores. “Era a garantia do pagamento da dívida”, conta a auditora fiscal do trabalho Jacqueline Carrijo, que coordenou a operação na Agrisul.

Em nota encaminhada à Repórter Brasil, a CBAA, de José Pessoa de Queiroz Bisneto, reconhece que a fiscalização encontrou na Agrisul “55 funcionários em situação irregular, que tiveram seus contratos rescindidos”. “Numa mercearia de terceiros – cuja propriedade não tem e nunca teve relação alguma com o grupo CBAA – foram encontrados documentos de trabalhadores das três usinas fiscalizadas. O procedimento, em momento algum, teve relação direta com a Agrisul, sendo resultado de negociação direta entre os trabalhadores e a própria mercearia para fins de afiançar compra de mercadoria no referido estabelecimento. Estamos recorrendo dessa acusação e acreditamos no êxito do processo”, rebate a empresa, que não se pronunciou acerca da questão dos vencimentos atrasados.

O grupo resgatado da Agrisul, de acordo com Jacqueline, não foi vítima apenas da grave retenção de documentos. Foram aliciados ilegalmente por empresas de turismo e transportados de forma clandestina do Vale do Jequitinhonha para as proximidades da usina. Chegaram para trabalhar em abril e foram arregimentados por um intermediário (“turmeiro”), funcionário de uma das subcontratadas da Agrisul. No início da empreitada, conforme relatos obtidos pela fiscalização, os cortadores de cana dormiram no chão e passaram fome.

A CBAA esclarece que recebeu apenas 14 autos de infração “com irregularidades pontuais que já foram solucionadas”. “Segundo a própria fiscalização, os alojamentos da Agrisul foram considerados os melhores da região”, coloca a empresa. A coordenadora da fiscalização na Agrisul reconhece que, no momento do flagrante, a situação dos alojamentos não era grave. “Vasculhamos vários alojamentos, inclusive em outros municípios como Nova Granada (SP). Não encontramos quadros degradantes, mas nenhuma delas cumpria totalmente a NR 31 [Norma Regulamentadora de Segurança e Saúde no Trabalho na Agricultura, pecuária, Silvicultura, Exploração Florestal e Aqüicultura]”.

Os trabalhadores receberam verba rescisória de R$ 81 mil em dinheiro, seguro-desemprego e foram levados de volta aos seus municípios de origem. Nas outras duas usinas fiscalizadas pela equipe de Jacqueline – Ivaícana Agrícola Ltda e Vale do Ivaí Açúcar e Álcool S/A – não foram encontrados trabalhadores em condição degradante, mas houve emissão de autos de infração para melhorias no transporte e nos alojamentos. As modificações começaram ainda durante a fiscalização. Ônibus foram substituídos, equipamentos de proteção individual (EPIs) foram distribuídos e houve remoções e adequações nos alojamentos.

O procurador do Trabalho que acompanhou o grupo móvel, Eliaquim Queiroz, estuda a possibilidade de assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) e do ajuizamento de ações civis públicas relativas a questões reparatórias (dano moral individual e coletivo). “O que queremos é evitar que os mesmos empregadores voltem a adotar essa prática”, conclui.

Já existe um inquérito que apura as condições de trabalho na Usina Agrisul sob responsabilidade do procurador Henrique Lima Correia, do MPT de São José do Rio Preto (SP). Uma proposta de TAC para melhorias no meio ambiente de trabalho já foi apresentada à empresa. “A diligência do grupo móvel confirmou irregularidades”, destaca o procurador Henrique, que aguarda o relatório da fiscalização do MTE para a tomada de providências.

Usina Moema
O município de Fronteira (MG) foi o ponto de partida das duas ações do grupo móvel na região. Situada na divisa com São Paulo, a localidade está em posição “estratégica”, segundo Luís Fernando Duque de Souza, que coordenou a outra ação. “É uma cidade-dormitório para trabalhadores das usinas. Como está em Minas Gerais e faz fronteira com São Paulo, os donos dos empreendimentos escapam das fiscalizações locais porque os trabalhadores alojados em um estado trabalham em outro”, explica. Ações regulares das Superintendências Regionais de Trabalho e Emprego (SRTEs) não podem avançar sobre outras jurisdições, adiciona Luís Fernando. No caso das ações de repressão do grupo móvel do governo federal, não há esse tipo de restrição.

A equipe comandada por Luís Fernando flagrou 63 trabalhadores sob responsabilidade da Usina Moema, em Orindiúva (SP), uma das seis unidades do Grupo Moema Açúcar e Álcool, presidido por Maurilio Biagi Filho. Trazidos da Bahia, do Maranhão e do Ceará, eles estavam em alojamentos precários. De acordo com o procurador do Trabalho Fábio Lopes Fernandes, a maior parte deles havia sido contratada por empresas terceirizadas. Foram dispensados, sem receber todos os direitos trabalhistas. Por ocasião da fiscalização, a Usina Moema acabou desembolsando R$ 200 mil de verbas rescisórias.

Nesta terça-feira (24), o procurador Fábio deve voltar ao local onde houve os problemas para conferir se as melhorias com relação a estrutura dos alojamentos foram de fato implementadas. “Mais de 200 funcionários terceirizados também passaram a ser contratados diretamente pela usina”, confirma o representante do MPT. Cerca de cinco empresas pequenas de intermediação de mão-de-obra atuavam no esquema envolvendo a Usina Moema. Uma delas, a Empreiteira Severino, está registrada oficialmente como agência de matrimônio.

Para o auditor fiscal Luís Fernando, a fiscalização descortinou uma “indústria do aliciamento”. Ele aponta a existência de agências de turismo que atuam exclusivamente trazendo mão-de-obra do Nordeste “com mil promessas”. “Quando chegam, esses trabalhadores são deixados em qualquer lugar ou já endividados em pensões. A cidade toda está estruturada em cima dessa questão e as usinas são as principais responsáveis por isso”

Também em nota encaminhada à Repórter Brasil, a Usina Moema informa que “neste momento dedica-se a avaliar o conjunto de itens apresentados pela fiscalização do Ministério do Trabalho” e que “deverá recorrer na forma da Lei”. Declara ainda que não foi constatada situação degradante nas dependências da empresa e informa que a direção “instaurou sindicância interna em torno de procedimentos para contratação de mão-de-obra terceirizada”.

Mudança e anacronismo
As usinas da região têm uma demanda grande de mão-de-obra: só a unidade de Orindiúva emprega cerca de 2,8 mil pessoas. Apesar dos flagrantes, Luiz Fernando acredita que a situação vem mudando. “Antes, as usinas entendiam o trabalhador como migrante e não admitiam ter nenhuma responsabilidade. Desta vez, as usinas se comprometeram a construir mais alojamentos para receber os trabalhadores na próxima safra”, discorre. No ano passado, outra ação realizada nessa região, não contou com a mesma boa vontade dos empregadores. Foram 370 trabalhadores resgatados, mas a empresa não assumiu responsabilidade alguma. O pagamento das verbas rescisórias e a retirada dos funcionários só foram executadas em cumprimento à execução judicial.

Além de auditores fiscais do MTE e dos procuradores do MPT em Uberlândia, agentes da Polícia Federal (PF) compuseram as duas equipes do grupo móvel. Ao todo, 45 pessoas participaram das duas ações no Triângulo Mineiro e no noroeste de São Paulo. Durante a operação, foi realizada uma blitz na Rodovia Transbrasiliana (BR-153) que inspecionou 48 ônibus que transportam cortadores de cana que trabalhavam na região. “Mais de 70% estavam em situação precária. Motoristas dirigiam sem habilitação”, afirma a auditora fiscal Jacqueline.

Segundo ela, motoristas de treminhões de cana-de-açúcar enfrentam cargas horárias de 12 a 14 horas de trabalho por dia, de domingo a domingo. “Alguns deles estavam totalmente exaustos, sem folga há dois meses”, relata. Das 11 empresas terceirizadas ilícitas flagradas pelo grupo móvel comandado por Jacqueline, sete prestavam serviço de transporte. “Recebemos muitas denúncias relativas à precariedade no transporte, hoje um dos maiores problemas do meio rural”. Chamou a atenção da auditora fiscal o fato de que mesmo em regiões capitalizadas como a região entre São José do Rio Preto (SP) e Uberlândia (MG), “práticas anacrônicas” como a utilização do chamado “gato” (contratante de mão-de-obra) e o aliciamento continuem em voga.