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Por que o índice de preço dos alimentos bateu recorde em setembro de 2021?

 

Por que o índice de preço dos alimentos bateu recorde em setembro de 2021? artigo de José Eustáquio Diniz Alves

A sociedade global está envolta num círculo vicioso, pois quanto mais alimentos são produzidos maiores são os custos ecológicos e maior é a dificuldade para colocar comida na mesa da população mundial

 

De pé ó vítimas da fome; De pé famélicos da terra”

A Internacional

O Índice de Preços dos Alimentos da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) está em alta e o século XXI tem mostrado um crescimento da carestia, ao contrário do século passado. O Índice de Preço dos Alimentos da FAO (FFPI) atingiu valor recorde (em termos reais) em setembro de 2021.

O artigo “Rising Prices on the Menu”, de HELBLING e ROACHE (03/2011), mostrou que o preço dos alimentos caiu pela metade ao longo do século XX, embora a população tenha crescido 4 vezes e o PIB mundial tenha aumentado cerca de 18 vezes entre 1900 e 2000. Ou seja, além do maior volume de população, o poder médio de consumo per capita mundial cresceu cerca de 4,5 vezes no século XX, enquanto os preços da comida se reduziam. A abundância de energia e os baixos preços dos hidrocarbonetos explicam grande parte da queda do preço dos alimentos.

Mas o quadro mudou. Houve dois picos do Índice de preços no século XX, o primeiro logo depois da 1ª Guerra Mundial e da chamada pandemia da “Gripe Espanhola” (por volta de 1919 e 1920) e o segundo no período 1974-1975, devido ao primeiro choque do petróleo ocorrido na época da guerra do Yom Kippur. A regra é energia barata comida barata e energia cara comida cara.

O gráfico abaixo mostra o Índice de Preço dos Alimentos da FAO (FFPI), em termos nominal e real, de 1961 a 2021. Nota-se que, na virada do século, o Índice estava pouco abaixo de 70 pontos, em termos reais (para a média de 2014 a 2016 = 100 pontos). Nos anos seguintes, a despeito de algumas oscilações, a tendência é de alta. Em meados de 2008, antes da crise financeira do Lehman Brothers, o Índice chegou a 128,9 pontos. Caiu um pouco com a crise econômica de 2009, mas voltou a subir em 2010 quando atingiu o valor de 129,4 pontos em dezembro, o maior valor do século até então e só menor do que o Índice de 1974.

Com o fim do superciclo das commodities houve redução do preço dos insumos agrícolas e, principalmente, houve queda do preço do petróleo. O FFPI caiu para cerca de 90 pontos entre 2015 e o primeiro semestre de 2020. Mas o preço global dos alimentos começou a subir ano passado e, desde 1974, atingiu o maior valor da série em setembro de 2021, com 130,0 pontos.

fao food price index

 

Os 130 pontos do Índice de Preços de Alimentos da FAO, em setembro de 2021, significou alta de 1,5 ponto (1,2%) em relação a agosto e 32,1 pontos (32,8%) em relação ao mesmo mês do ano passado. O aumento mais recente do FFPI foi em grande parte impulsionado pelos preços mais altos da maioria dos cereais e óleos vegetais. Os preços dos lácteos e do açúcar também ficaram mais firmes, enquanto o subíndice de preços das carnes permaneceu estável.

Um dos fatores estruturais que explicam esta alta da carestia é o preço do barril do petróleo que dobrou nos últimos 12 meses, passando de menos de US$ 40 no final de outubro de 2020 para cerca de US$ 80 em outubro de 2021, conforme mostra o gráfico abaixo.

preço do barril de petróleo

Sem dúvida, o FFPI e o preço dos combustíveis fósseis apresentam alta correlação, conforme mostra o gráfico abaixo. O baixo preço do petróleo na última década do século passado coincide com o baixo preço dos alimentos. Porém, desde 2002, os preços de petróleo começaram a subir atingindo um pico em 2008, caindo em 2009 devido à crise financeira internacional e voltando a subir em 2010. Entre 2015 e o primeiro semestre de 2020 as duas séries apresentaram valores mais baixos. Mas a subida do preço dos combustíveis fósseis no segundo semestre do ano passado coincide com o aumento do Índice de Preços dos Alimentos em 2021.

índice de preço real dos alimentos e preço do petróleo

 

O gráfico abaixo mostra que a variação do preço do petróleo explica dois terços (66,7%) da variação do preço dos alimentos. Evidentemente, existem outros fatores que pressionam o preço da comida e o agravamento do aquecimento global, a degradação ambiental, assim como os eventos climáticos extremos, são fatores que aumentam o custo da produção de alimentos. Portanto, o aumento da demanda por alimentos (em função do crescimento populacional) e a pauperização dos ecossistemas são fatores de pressão sobre o preço dos bens de subsistência.

Relação entre o preço dos alimentos e preço do petróleo: meses de 01/1990 a 09/2021

relação entre o preço dos alimentos e preço do petróleo

Fonte: elaborado por JEDA com base no Índice de Preço real dos Alimentos da FAO e Preço do barril

do petróleo (WTI) http://www.fao.org/worldfoodsituation/foodpricesindex/en/

http://www.indexmundi.com/commodities/?commodity=crude-oil-west-texas-intermediate&months=360

 

O aumento do preço global dos alimentos, evidentemente, afeta os preços nacionais, embora o Brasil seja um grande produtor de bens de subsistência. Os preços nacionais são pressionados em função de 5 fatores, que, inclusive, foram agravados pela pandemia da covid-19: aumento dos custos de produção e transporte; desorganização da cadeia produtiva global (gerando gargalos na produção e distribuição); aumento do preço do petróleo; danos causados pela crise ambiental; e desvalorização cambial.

De fato, no Brasil, a fome atingiu 19,1 milhões de pessoas em 2020, parte de um contingente de 116,8 milhões de brasileiros que convivam com algum grau de insegurança alimentar — número que corresponde a 55,2% dos domicílios, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede PENSSAN.

No dia 19/03/2021, o presidente Jair Bolsonaro reconheceu a gravidade da situação e disse: “O caos vem ai, a fome vai tirar o pessoal de casa”. Mas como as políticas públicas não resolveram a questão da fome, as manifestações do dia 02 de outubro foram marcadas por protestos contra a inflação, o aumento dos combustíveis – especialmente o aumento do preço do botijão de gás – e o aumento do preço dos alimentos. Uma foto da capa do jornal Extra viralizou nas redes sociais, mostrando pessoas em desespero disputando ossos e pelanca no caminhão da “xepa da carne” no Rio de Janeiro. O pé e o pescoço de galinha viraram itens essenciais na mesa da população mais pobre do país. A perspectiva para o final de 2021 é de mais carestia e fome.

Assim como existe uma correlação entre o preço do petróleo e o preço dos alimentos, há também uma correlação entre o aumento do preço dos alimentos e a ocorrência de protestos em todo o mundo, segundo estudos do NECSI (New England Complex Systems Institute). A última onda de aumento do preço dos alimentos desencadeou a Primavera Árabe. Para agravar a situação atual, o Brasil vive uma crise hídrica, uma crise energética e em várias regiões ocorrem tempestades de areia em decorrência de eventos climáticos extremos. A combinação de crise econômica, crise social e crise ambiental prejudicam sobremaneira as condições de vida da população brasileira.

Não faltam alertas. Esta semana foi divulgada a Declaração de São Paulo sobre Saúde Planetária que diz: “A humanidade, e de fato toda a vida na Terra, está em uma encruzilhada. Nas últimas décadas, a escala dos impactos humanos nos sistemas naturais da Terra aumentou exponencialmente a ponto de exceder a capacidade do nosso planeta de absorver nossos resíduos ou fornecer os recursos que estamos usando. O resultado é uma vasta e acelerada transformação e degradação da natureza. Isso inclui não apenas a mudança climática global, mas também a poluição em escala global do ar, da água e do solo; degradação das florestas, rios, sistemas costeiros e marinhos de nosso planeta; e a sexta extinção em massa da vida na Terra” (The Lancet, 05/10/2021).

A Declaração de São Paulo sobre Saúde Planetária é uma chamada global à ação da comunidade de saúde planetária que traça um caminho para apoiar um mundo pós-pandêmico mais justo e resiliente. As recomendações transversais da Declaração foram elaboradas durante o Encontro e Festival Anual de Saúde Planetária 2021 em São Paulo, Brasil, concluindo com uma consulta global de cerca de 350 participantes de mais de 70 países. Lembrando que alimentação saudável é parte essencial da Saúde Global.

O mundo precisa acordar e tomar uma atitude séria na COP26 que começa no final de outubro em Glasgow, no Reino Unido. A humanidade já ultrapassou os limites da resiliência do Planeta e os diversos e simultâneos desastres ecológicos dificultam cada vez mais a produção alimentar. O relatório do IPCC “Climate Change and Land”, divulgado em 08/08/2019, mostra que a produção e o consumo de alimentos contribuíram para o aumento das emissões líquidas de gases de efeito estufa (GEE), perda de ecossistemas naturais e diminuição da biodiversidade. O sistema alimentar responde por cerca de 30% de todas as emissões de gases de efeito estufa (GEE) e 80% do desmatamento global. A agricultura e a pecuária ocupam cada vez mais espaço no mundo e ao acelerar o aquecimento global e suas consequências desastrosas encarecem o preço dos alimentos (Alves, 12/08/2019).

A sociedade global está envolta num círculo vicioso, pois quanto mais alimentos são produzidos maiores são os custos ecológicos e maior é a dificuldade para colocar comida na mesa da população mundial. O caminho atual é insustentável e o aumento do Índice de Preço dos Alimentos da FAO é o reflexo da insustentabilidade do modelo de vida predominante na dinâmica que sustenta a economia internacional, com suas desigualdades, monopólios e a tendência de crescimento desregrado e ilimitado.

O recorde do FFPI da FAO, em setembro de 2021, é apenas um alerta. Infelizmente, a perspectiva é de novos aumentos nos meses vindouros e outros recordes poderão ser registrados se não houver mudança de rota, diminuição do consumo global e, acima de tudo, rápida redução das emissões de gases de efeito estufa e restauração dos ecossistemas.

José Eustáquio Diniz Alves
Doutor em demografia, link do CV Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2003298427606382

Referências:

ALVES, JED. Relatório do IPCC e o efeito perverso entre produção de alimentos e mudanças climáticas, Ecodebate, 12/08/2019

https://www.ecodebate.com.br/2019/08/12/relatorio-do-ipcc-e-o-efeito-perverso-entre-producao-de-alimentos-e-mudancas-climaticas/

ALVES, JED. O preço dos alimentos bate recordes e aumenta a fome, Ecodebate, 14/04/2021

https://www.ecodebate.com.br/2021/04/14/o-preco-dos-alimentos-bate-recordes-e-aumenta-a-fome/

HELBLING, Thomas & ROACHE, Shaun. Rising Prices on the Menu, FMI, F & D, v. 48, março de 2011 http://www.imf.org/external/pubs/ft/fandd/2011/03/helbling.htm

Myers et. al. The São Paulo Declaration on Planetary Health. The Lancet, 05/10/2021

https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(21)02181-4/fulltext

Renata Lo Prete. O Assunto #415: Comida cara, tensão social em alta, G1, 22/03/2021

https://g1.globo.com/podcast/o-assunto/noticia/2021/03/22/o-assunto-415-comida-cara-tensao-social-em-alta.ghtml

 

 

in EcoDebate, ISSN 2446-9394

 

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