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Sugestão para as Empresas de Saneamento em função do Novo Marco Regulatório

 

Sugestão para as Empresas de Saneamento em função do Novo Marco Regulatório

Artigo de Paulo Afonso da Mata Machado

INTRODUÇÃO

A criação do novo marco regulatório do saneamento (Lei nº 14.026 de 15/07/2020, que alterou a Lei 11.445 de 05/01/2007) abriu o mercado de tratamento de água e de esgoto a empresas que devem se preparar devidamente para o enorme desafio que vão enfrentar. De acordo com o artigo 11-B, 99% da população brasileira deverá ser abastecida com água tratada atendendo ao padrão de potabilidade e 90% da população deverá dispor de serviços de coleta e tratamento de esgoto até 2033:

Os contratos de prestação dos serviços públicos de saneamento básico deverão definir metas de universalização que garantam o atendimento de 99% (noventa e nove por cento) da população com água potável e de 90% (noventa por cento) da população com coleta e tratamento de esgotos até 31 de dezembro de 2033, assim como metas quantitativas de não intermitência do abastecimento, de redução de perdas e de melhoria dos processos de tratamento.

Ocorre que o desafio não será apenas atender à população desabastecida de água ou coletar e tratar o esgoto da população que ainda não dispõe desse serviço. Quando foram construídas as estações de tratamento de água existentes, não se falava em poluentes emergentes, nem o padrão de água potável atual menciona esses contaminantes. Como o padrão está em revisão e, em alguns meses vai sair nova regulamentação, a maioria das ETAs brasileiras vai estar fora do padrão.

Além de retificar as ETAs, as empresas terão, também, que retificar muitas estações de tratamento de esgoto, que não atendem ao padrão de lançamento de efluentes. Entretanto, esse desafio pode ser de grande utilidade.

As estações de tratamento de esgoto possuem tratamento biológico, que reduz, em muito, a concentração de poluentes emergentes. Um aprimoramento nas ETEs visando a reduzir substancialmente a concentração desses poluentes pode ser muito mais fácil e muito mais barato que adaptar as ETAs para esse trabalho. Assim, as ETEs deixarão de ser simples estações de tratamento de esgoto passando a ser estações de reúso potável de esgoto (ERPEs).

Agindo assim, o Brasil estará entrando no seleto grupo das nações que fazem o reúso potável do esgoto doméstico. Esse grupo tem nações da Europa (Bélgica), da Ásia (Singapura) da África (Namíbia e África do Sul), da América do Norte (diversas estações nos Estados Unidos) e da Oceania (Austrália). Por enquanto, não existe uma única estação de reúso potável nas Américas do Sul e Central.

Ao serem transformadas em estações de reúso potável, as ETEs ganharão flexibilidade, pois uma ERPE não se restringe a tratar esgoto, podendo tratar líquidos em geral, à exceção das poucas coleções de água com qualidade inferior à do esgoto doméstico, principalmente aquelas com elevada salinidade e as que contêm excesso de resíduos industriais. Trata-se de enorme vantagem para as regiões do semiárido, onde nem sempre é possível se encontrar água bruta em condições apropriadas a sua potabilização em uma ETA convencional.

Como exemplo de transformação de uma ETE em uma ERPE, podemos citar a estação de tratamento de esgoto Dom Nivaldo Monte, conhecida como ETE do Baldo, em Natal, projetada com três linhas de tratamento, cada uma com capacidade até 810 m3/h. Atualmente, estão executadas duas linhas, com capacidade de tratamento até 1.620 m3/h. Ana Cláudia Araújo Fernandes, em levantamento junto à CAERN, realizado em 2018, com o objetivo de avaliar o potencial de produção de água de reúso da ETE do Baldo, encontrou que o volume tratado na ETE em 2018 foi de 11.448.000 m3, o que equivale a uma vazão média de 1.306 m3/h.

Na reportagem feita pela Tribuna do Norte em 2018 (www.tribunadonorte.com.br/ete-baldo-na-o-tem-eficia-ncia-diz-mp/41963), foram feitas críticas à ETE do Baldo. Entretanto, em alguns pontos, o tratamento na estação é muito bom, tanto que o efluente atende a diversos requisitos da resolução do CONAMA para lançamento de efluentes.

As unidades da ETE do Baldo são as seguintes: grades grossas, elevatória, grades finas, caixa de areia, reatores UASB, câmaras anóxicas, tanques de aeração, decantadores secundários e desinfecção por radiação ultravioleta. A tabela a seguir, com base no trabalho de Ana Cláudia Araújo Fernandes a partir de dados fornecidos pela CAERN, apresenta os seguintes valores médios no efluente da estação:

 

Parâmetro

Unidade

Média

Condutividade elétrica

dS/m

0,67

DBO5

mg/L

45,56

P total

mg/L

3,60

N amoniacal

mg/L

3,94

Oxigênio dissolvido

mg/L

5,51

pH

7,00

SST

mg/L

12,79

Temperatura

°C

29,27

Coliformes termotolerantes

NMP/100 mL

8,25E+04

Nitrato

mg/L

1,61

 

Fonte: Ana Cláudia Araújo Fernandes, Avaliação do potencial de reúso de água residuária da ETE Dom Nivaldo Monte para fins não potáveis (2018).

Para ilustrar a transformação da ETE em ERPE, está sendo apresentado o fluxograma a seguir, considerando a vazão de projeto para a etapa atual: 1.620 m3/h.

transformação da ETE em ERPE

DESCRIÇÃO DAS UNIDADES DE TRATAMENTO

Grades grossas

O esgoto que chega à ETE tem concentração de DBO5 em torno de 300 mg/L e contém sólidos que viriam a danificar as bombas se não fossem removidos. Para evitar isso, o esgoto bruto passa por grades grossas, onde é removido o material inorgânico com dimensões acima de 20 mm (panos, papéis, cacos de vidro, restos de utensílios domésticos, etc.). Com o tempo, a passagem entre as grades fica obstruída, aumentando a perda de carga e elevando o nível a montante. Chegando o líquido a determinado nível, um sensor é acionado, ativando garras que limpam as grades. Os sólidos removidos são colocados em uma correia transportadora, que os despeja em contêineres para serem descartados. Em seguida, o esgoto é conduzido a uma elevatória e bombeado para continuação do tratamento preliminar. Após a elevatória, existe um medidor eletromagnético, que mede o volume de esgoto tratado.

Tanque de acumulação

Estamos sugerindo que, antes de o líquido ser conduzido à elevatória, passe por um tanque de acumulação, onde se juntará ao líquido que retorna da centrífuga e à água de lavagem tanto dos filtros de dupla camada como dos leitos de carvão biologicamente ativado, a serem inseridos após a transformação da ETE em ERPE. Um misturador de fundo deverá homogeneizar o líquido. Seu tempo de detenção não deverá ser superior a 1 hora para evitar que o esgoto se degrade.

É para esse tanque que deverá convergir a vazão suplementar, que deverá ser captada sempre que, ao se projetar uma ERPE ou ao se transformar uma ETE em ERPE, se deseje obter vazão de água potável superior à vazão de esgoto coletada.

Elevatória

Do tanque de acumulação, o líquido deve ir para a elevatória existente. A elevatória leva o esgoto para o ponto mais alto da estação.

Embora não seja uma unidade de tratamento, a elevatória é considerada o coração do sistema, pois se o bombeamento não estiver funcionando, o esgoto cai no canal do Baldo, sem qualquer tratamento, que não a remoção de sólidos grosseiros.

Peneiras finas e caixas de areia

Da elevatória, o líquido passa por peneiras finas, onde é retido o material menos grosseiro, com dimensões a partir de 3 mm. A retenção desse material provoca aumento gradativo na perda de carga, aumentando-se o nível do líquido a montante. Quando o líquido atinge determinado nível, é acionado um sensor que ativa o sistema de rotação da peneira, removendo o material retido e colocando-o em um parafuso transportador, que o lança em contêineres para serem descartados.

Em seguida, o líquido vai para as caixas de areia, onde, além da areia, substâncias inorgânicas com diâmetro a partir de 0,2 mm se precipitam. Para isso, a velocidade nas caixas é estipulada em 0,3 m/s para a vazão média. O material precipitado é colocado em parafuso transportador, que o despeja em contêineres para serem descartados.

Caixa de distribuição

O efluente das caixas de areia segue para uma caixa de distribuição, onde se junta à vazão que conduz o excesso de lodo removido do fundo dos decantadores secundários. Essa caixa promove a homogeneização do líquido em tratamento e tem como objetivo principal distribuí-lo pelos 4 reatores UASB. Como os reatores UASB consomem grande parte da matéria orgânica, cerca de 25% da vazão vai diretamente às câmaras anóxicas, para que não falte matéria carbonácea nas câmaras anóxicas e nos tanques de aeração.

Reatores UASB

O reator UASB se caracteriza pela eficiência no tratamento anaeróbio de esgotos devido a sua grande capacidade de retenção de sólidos. Estes formam uma manta de lodo e o esgoto, distribuído uniformemente no fundo do reator, gera um fluxo ascendente, passando por essa manta de lodo. A instalação do separador de gases, líquidos e sólidos garante o retorno do lodo e seu armazenamento sem um meio suporte. Por isso, o lodo apresenta elevado tempo de residência celular, permitindo que, ao ser removido, saia já digerido e com alta concentração.

O gás gerado nos UASBs é encaminhado para saída no topo do reator, com os sólidos em suspensão voltando ao reator. O líquido, conduzido à parte superior do reator, é separado da escuma e dos sólidos de menor densidade que o esgoto, que são recolhidos em câmara à parte e conduzidos à unidade de tratamento do lodo.

Devido ao elevado tempo de detenção celular nos reatores UASB, o lodo removido de seu fundo sai compactado e digerido e, por isso, é direcionado diretamente à unidade de tratamento do lodo, sem necessidade de passar por um digestor. Ao contrário de outros reatores UASB, em que a remoção do lodo é feita periodicamente, nos UASBs da ETE do Baldo a remoção deve ser feita de forma contínua devido ao aporte do lodo removido do fundo dos reatores secundários, mas com vazão bem inferior à vazão recebida dos decantadores secundários.

O efluente líquido dos reatores UASB é conduzido às câmaras anóxicas.

Tratamento do lodo

No adensamento do lodo, é feita a separação do líquido, que retorna ao início da estação, e o lodo vai para a secagem e, em seguida, para o aterro sanitário.

Gabriela Barros de Queiroz fez um estudo (Diagnóstico da gestão do lodo de uma ETE em escala real, 2019) em que recomenda o uso agrícola do lodo, o que representará custos menores que enviá-lo para o aterro.

Com as modificações para transformar a ETE em ERPE, o líquido removido da unidade de tratamento do lodo deverá ser encaminhado ao tanque de acumulação.

Câmaras anóxicas

As câmaras anóxicas são encarregadas da desnitrificação, embora o efluente dos UASBs não contenha nitrato, que chega às câmaras anóxicas pela linha de recirculação interna (dos tanques de aeração) e pela linha de recirculação externa (dos decantadores secundários).

As câmaras anóxicas estão com bom funcionamento, haja vista a concentração média de nitrato no efluente da ETE indicada na tabela (1,61 mg/L). Contudo, dentro do princípio de barreiras múltiplas, a concentração de nitrato deverá ser reduzida também por adsorção nos filtros de carvão ativado.

Além de remover o nitrato, as câmaras anóxicas homogeneízam o líquido, para que seu efluente seja conduzido aos tanques de aeração em melhores condições para continuação do trabalho de oxidação da matéria orgânica.

Tanques de aeração

Os tanques de aeração dispõem, cada um, de 8 estruturas de biodiscos, que favorecem a proliferação de bactérias aeróbias. O insuflamento de oxigênio em cada reator é feito por meio de 6 sopradores.

O projeto da ETE do Baldo previu a construção de reatores UASB, que baixam bastante a concentração de matéria orgânica. Por isso, a ETE tem um by pass que leva cerca de 25% da vazão das caixas de areia diretamente às câmaras anóxicas.

Essa providência, associada às recirculações interna e externa, torna bastante satisfatória a desnitrificação nas câmaras anóxicas. Contudo, o efluente final da ETE demonstra ineficiência com relação à concentração final de matéria orgânica. A DBO5 média efluente, indicada na tabela, é de 45,56 mg/L, muito acima de valores comumente observados nos efluentes das estações de tratamento de esgoto. Ressalte-se que a média de DBO5 afluente à estação é de cerca de 300 mg/L, o que faz com que a remoção total seja de, aproximadamente, 85% do valor inicial, o que denota baixa eficiência total, considerando que os reatores UASB têm eficiência média de 70%.

De acordo com a tabela, o efluente final da ETE tem concentração média de oxigênio dissolvido de 5,51 mg/L, o que torna injustificável uma concentração tão elevada de DBO5. Torna-se, necessário, então, melhorar o desempenho dos tanques de aeração.

As dimensões úteis dos tanques de aeração são 24,50 m x 19,00 m x 3,25 m, totalizando volume disponível de 1.512,9 m3. Como são quatro tanques, o volume total é de 6.051,6 m3. Para a vazão projetada de 1.620 m3/h, o tempo de detenção é de 3,7 h, o que atende ao disposto na NBR 12209 (item 6.39). Entretanto, Marcos von Sperling (Lodos Ativados, 4ª edição, Quadro 4.3) recomenda tempo de detenção mínimo de 6 horas para sistemas convencionais de lodos ativados.

A conversão da ETE em ERPE fará com que a matéria orgânica remanescente passe por oxidação avançada e, por isso, poderia parecer aceitável manter o atual desempenho dos tanques de aeração. Contudo, se o líquido chegar aos decantadores secundários com a concentração de matéria orgânica esperada para sistemas convencionais de lodos ativados (entre 5 e 20 mg/L, conforme Marcos von Sperling) vai haver a proliferação de rotíferos, que são predadores de protozoários, inclusive na forma de cistos e de oocistos. Portanto, mesmo transformando a ETE em ERPE, deverá ser buscada uma melhoria na eficiência dos tanques de aeração.

Sugerimos a antecipação da construção dos dois tanques de aeração previstos para a terceira linha do projeto. Com a construção desses tanques e a distribuição da vazão efluente das câmaras anóxicas entre os seis tanques, o tempo de detenção subirá para 5,6 h. Será, ainda, insuficiente, mas deverá haver um efluente com menor concentração de DBO5, como esperado.

Como alguns peixes não conseguem sobreviver em água com concentração de amônia acima de 5,0 mg/L, recomenda-se que esse limite seja respeitado para descarte no meio ambiente. Verifica-se, na tabela, que a concentração média de nitrogênio amoniacal foi de 3,94 mg/L, indicando que o limite está sendo respeitado. Contudo, para água potável, o limite para concentração de amônia é de 1,5 mg/L. A inclusão de dois outros tanques de aeração vai proporcionar maior oxidação de nitrogênio amoniacal, permitindo que o líquido saia dos tanques de aeração com concentração de amônia abaixo desse limite, mesmo considerando que, dentro do princípio de barreiras múltiplas, com a transformação da ETE em ERPE, haverá uma unidade de oxidação avançada, cuja eficiência é muito superior à dos tanques de aeração.

Do efluente dos tanques de aeração, sai a vazão de recirculação interna para as câmaras anóxicas. É essa recirculação interna, juntamente com a recirculação externa, a partir dos decantadores secundários, que leva o nitrato para as câmaras anóxicas.

Do tanque de aeração, o fluxo sai em direção aos decantadores secundários.

Decantadores secundários

Os decantadores secundários têm a forma circular e objetivam redução da velocidade do fluxo para permitir a decantação do lodo, que retorna à caixa de distribuição. A escuma e os sólidos flutuantes são removidos para a unidade de tratamento do lodo. Cada decantador tem 32 m de diâmetro e profundidade útil de 3,5 m, totalizando volume de 5.630 m3 (tempo de detenção de 3,5 horas e taxa de aplicação hidráulica de 1,00 m3/m2.h, valores que atendem à NBR 12.209).

Do fundo dos decantadores secundários, sai a recirculação para as câmaras anóxicas e a saída do excesso de lodo para os reatores UASB. Da superfície dos decantadores secundários, sai o efluente tratado, que, antes de ser descartado, deveria ser desinfetado com radiação ultravioleta.

Filtros de duas camadas

Para transformar a ETE em ERPE, antes de ser desinfetado, o efluente deve ser filtrado. Sugerimos filtros de dupla camada (antracito e areia), cuja taxa de filtração permitida é de até 360 m3/m2.d (área superficial mínima de 108 m2). Cada filtro de dupla camada deverá ser lavado periodicamente quando o material retido provocar perda de carga excessiva. A água de lavagem desses filtros deverá seguir para o tanque de acumulação.

O efluente dos filtros de dupla camada deverá passar por leitos de carvão ativado.

Leitos de carvão biologicamente ativado

Não existe norma que discipline o uso de carvão ativado no tratamento da água. Sua taxa de filtração usual é de 240 m3/m2.d (área superficial mínima de 162 m2).

Os leitos de carvão ativado deverão ser inoculados com lodo desidratado, transformando-os em leitos de carvão biologicamente ativado, cuja função, além de reter micropoluentes por adsorção, será também a de promover a oxidação biológica das substâncias que tenham passado incólumes pelos reatores UASB, pelas câmaras anóxicas e pelos tanques de aeração.

O padrão de água potável estipula, em seu artigo 28, que, sendo a média aritmética da concentração de oocistos de Cryptosporidium na captação de água maior ou igual a 3,0 oocistos/L, deve-se obter efluente de filtração rápida com turbidez menor ou igual a 0,3 uT em 95% das amostras mensais ou usar um processo de desinfecção que, comprovadamente, garanta a mesma eficiência de remoção de oocistos.

Em uma ERPE, torna-se desnecessária a avaliação da concentração de oocistos de Cryptosporidium na captação pois essa concentração sempre será superior a 3,0 oocistos por litro. Portanto, a turbidez da água filtrada deverá ser menor ou igual a 0,3 uT em 95% das amostras mensais. Como a filtração se completará no leito de carvão ativado, a turbidez deverá ser medida em seu efluente. Eventuais medições de turbidez acima de 0,3 uT não deverão ser sinal de presença de oocistos, pois haverá tratamento por radiação ultravioleta, processo de desinfecção mais eficiente que a própria filtração com relação a inativação de oocistos.

O efluente dos leitos de carvão ativado irá para a unidade de oxidação avançada. O reservatório de lavagem de filtros deverá ser abastecido com água do efluente dos leitos de carvão ativado.

Oxidação avançada com radiação UV

A ETE dispõe de uma unidade de desinfecção por radiação ultravioleta, ainda que, por vezes, não funcione. À época em que foram feitas as medições da tabela, não estava funcionando, o que se reflete na elevada concentração média do número mais provável de coliformes termotolerantes no efluente da ETE: 8,25E+04 células por 100 mL.

A desinfecção feita com radiação ultravioleta interfere no DNA dos microrganismos, impedindo sua reprodução. Sem poderem se reproduzir, os microrganismos se tornam inócuos.

Juntamente com a radiação UV, o líquido deverá receber peróxido de hidrogênio (H2O2). O peróxido de hidrogênio é altamente oxidante e, quando usado, reduz a concentração de micropoluentes a níveis aceitáveis, pois, sob a ação da radiação UV, as moléculas de H2O2 geram hidroxilas, que têm maior poder oxidante.

Cloração, fluoretação e correção de pH

Para se transformar em ERPE, a desinfecção por radiação UV não é o bastante: a água potável exige cloração e não é apenas devido ao critério das barreiras múltiplas. Como a radiação UV não deixa residual, será necessária a cloração para garantir a desinfecção na rede de distribuição.

Depois de clorada, a água deverá ser fluoretada. O flúor tem-se verificado poderoso auxiliar na prevenção de cáries dentárias.

A cloração abaixa o pH e, portanto, como é feito em estações de tratamento de água, depois de fluoretada, a água deverá ter seu pH corrigido com a adição de cal hidratada, ficando pronta para ser distribuída à população, desde que atendidos os requisitos do padrão de potabilidade.

Chamamos a atenção de que, mesmo com uma estação com barreiras múltiplas e, portanto, mais eficiente que uma ETA convencional, não devem ser negligenciados os mecanismos de controle estabelecidos pelo padrão de água potável.

CONTESTAÇÕES À TRANSFORMAÇÃO DE UMA ETE EM ERPE

1 – Ao estações de reúso potável existentes utilizam filtração por membranas.

A maioria das ERPEs utiliza osmose reversa, que possui poros tão diminutos que até os sais minerais dissolvidos na água são retidos. A ingestão de água que não contém sais de cálcio, potássio, sódio, ferro e outros minerais faz com que o usuário os retire do próprio estômago, aumentando o pH e ficando sujeito a contrair doenças estomacais. Por isso, ao se usar osmose reversa, é preciso que se faça a remineralização no permeado.

Abstraindo de seu elevado custo de aquisição e do elevado custo de energia elétrica, é importante lembrar que os poros da osmose reversa separam a água em dois tipos: permeado e rejeito. Este último é descartado, reduzindo-se o volume de água disponível para ser potabilizado e criando mais um problema com a destinação do rejeito, visto que os sólidos removidos pela osmose reversa não são oxidados.

O reúso potável direto vem sendo praticado há mais de 50 anos no município de Windhoek, situado na Namíbia, sudoeste da África, ao sul do deserto do Saara. Quando essa ERPE foi inaugurada em 1968, não se conhecia a filtração por membranas e ela funcionou por décadas sem qualquer espécie de ultrafiltração. Em 1997, ao se fazer sua remodelagem, introduziu-se a ultrafiltração.

Os poros da ultrafiltração são maiores que os da osmose reversa, o que não os impede de reter vírus, bactérias, cistos e oocistos de protozoários. Entretanto, persiste a questão de onde descartar o rejeito.

Diante disso, a filtração por membranas, apesar de ser uma ótima opção em termos de produção de água potável, deve ter sua utilização restrita a ERPEs destinadas ao abastecimento de grandes cidades, com local apropriado para descarte do rejeito.

2 – Embora o reúso potável direto seja recomendado até mesmo pela Organização Mundial de Saúde, no Brasil não existe legislação específica sobre o reúso potável do esgoto.

Trata-se de um questionamento feito com frequência nos meios de Engenharia Sanitária, mas que está equivocado. Como disse Lukas van Vuuren, engenheiro da primeira estação de reúso potável de esgoto do planeta, a água deve ser julgada por sua qualidade, não por sua história.

O reúso não potável de esgoto tem peculiaridades próprias para cada atividade. Não existe uma legislação a nível federal regulamentando quais devem ser os critérios para que a água de reúso não potável possa ser usada em cada atividade específica.

Se não existe legislação nacional disciplinando o reúso não potável do esgoto, o mesmo não ocorre quando se trata de reúso potável. O Decreto nº 79.367/1977, em seu art. 1º, outorgou poderes ao Ministério da Saúde para estabelecer o padrão nacional de potabilidade da água. Esse padrão consta do Anexo XX da Portaria de Consolidação nº 05/2017, do Ministério da Saúde, que, em seu artigo 5º, diz o seguinte:

Art. 5º. Para os fins deste Anexo, são adotadas as seguintes definições:

I – água para consumo humano: água potável destinada à ingestão, preparação e produção de alimentos e à higiene pessoal, independentemente da sua origem;

II – água potável: água que atenda ao padrão de potabilidade estabelecido nesta Portaria e que não ofereça riscos à saúde;

(…)

Portanto, o Ministério da Saúde, usando de suas atribuições, determinou que a água é considerada potável se atender ao padrão de potabilidade vigente e não oferecer riscos à saúde e, como tal, pode ser usada na ingestão, preparação e produção de alimentos, na higiene pessoal e no consumo humano em geral, independentemente da sua origem.

3 – A água da ERPE poderá ser um risco para a saúde se não se conseguir eliminar microrganismos patogênicos como os oocistos de Cryptosporidium.

O padrão de potabilidade da água admite concentração de substâncias químicas até um determinado limite, por considerar que, dentro desse limite, essas substâncias não oferecem risco à saúde humana. Todavia, com relação à ocorrência de microrganismos patogênicos, o padrão é taxativo: não admite a presença de uma única bactéria do grupo coliforme na água potável. Como os coliformes são mais resistentes que os microrganismos patogênicos, sua ausência indica que a água não oferece risco à saúde humana sob o aspecto biológico.

Ao contrário de uma ETA convencional, uma ERPE possui unidades de tratamento de natureza biológica (reatores anaeróbios, câmaras anóxicas, tanques de aeração). Possui também unidades de tratamento físico e biológico (decantação secundária, filtração em dupla camada, filtração e adsorção em leitos de carvão ativado). A oxidação avançada, com peróxido de hidrogênio e radiação ultravioleta, tem a dupla função de oxidar a matéria orgânica restante e de atuar no DNA de microrganismos remanescentes, impedindo sua reprodução. A cloração final, destinada a manter um residual de proteção na rede de abastecimento, representa um polimento final.

Com relação aos oocistos de Cryptosporidium, sua eliminação poderá ser feita por diferentes unidades. Ao contrário dos flocos formados nas ETAs, cujas forças atrativas são de natureza exclusivamente química, os flocos formados nos tanques de aeração e conduzidos aos decantadores secundários possuem uma matriz gelatinosa, que permite a aglutinação de microrganismos em geral. Desse modo, os oocistos de Cryptosporidium que não sofrerem predação por rotíferos tenderão a se precipitar com os flocos, sendo impelidos de volta aos reatores UASB ou às câmaras anóxicas. Eventuais oocistos que escapem à precipitação e à predação serão conduzidos aos filtros rápidos e, se não ficarem retidos, deverão ir para os leitos de carvão biologicamente ativado, cujo poder de retenção é maior. Em seguida, o líquido passará por oxidação avançada, que inclui o tratamento por radiação ultravioleta, apropriado a alterar o DNA dos microrganismos, impedindo-os de se reproduzirem.

Por tudo isso, o tratamento em uma ERPE é muito mais seguro que o realizado em uma ETA convencional.

4 – O público se recusará a consumir o esgoto potabilizado mesmo atendendo aos requisitos de água potável.

Do Guidance for Producing Safe Drinking-water (Organização Mundial de Saúde):

Potable reuse representes a realistic, practical and relatively climate independente source of drinking-water. (Tradução livre: O reúso potável representa uma fonte de água potável realista, prática e relativamente independente do clima.)

A primeira estação de reúso potável direto foi inaugurada em 1968, na Namíbia. Nessa época, esse país estava sob o domínio da África do Sul e seus habitantes não foram informados da potabilização do esgoto. Anos depois, com o país independente, a notícia foi a público e verificaram-se filas de pessoas no serviço médico, sob suspeita de terem se contaminado com a água servida à população. Feito o diagnóstico de cada um, não se constatou uma única pessoa cuja doença tivesse sido causada pela água ingerida.

Mais recentemente, a estação de reúso potável da Califórnia foi inaugurada com uma sala onde é oferecida água ao visitante. Durante muito tempo, a proporção de visitantes que aceitava beber da água era muito baixa.

Diante disso, a Organização Mundial de Saúde aconselha que o público precisa ser avisado com antecedência e preparado psicologicamente para consumir água que foi esgoto. Segundo a OMS, mais de um projeto de reúso potável, feito com técnica e funcionando apropriadamente, foi abandonado por não ter havido uma propaganda eficaz junto ao público alvo.

5 – A cloração de esgoto pode produzir trihalometanos, que são compostos carcinogênicos.

A Agência Nacional de Águas (ANA) informa, em seu Atlas Esgoto, que a contaminação dos corpos de água por águas residuárias faz com que 110.490 km de trechos de rio estejam com a qualidade da água comprometida, sendo que, em 83.450 km desses trechos, isto é, em mais de 75%, não é mais permitida a captação para abastecimento público. Nos restantes 27.040 km, a captação somente é autorizada se for executado tratamento avançado.

A crescente degradação de nossos mananciais tem-se constituído em sério risco de produção de trihalometanos em ETAs convencionais. No caso de uma ERPE, esse risco é bem menor. Sendo substâncias químicas de natureza orgânica, os precursores de trihalometanos são, em geral, oxidados nas unidades de tratamento biológico, retidos nas unidades de tratamento físico ou eliminados pela oxidação avançada.

Se o manancial de água bruta dispuser de precursores de trihalometanos e esses precursores não forem removidos por floculação, decantação e filtração, ao se usar a cloração é possível que haja produção de trihalometanos. Diante disso, nosso padrão de água potável permite concentração de até 0,1 mg/L de trihalometanos na água potável. A título de comparação, o Manual de produção de água potável segura (título em português do Guidance for Producing Safe Drinking-water, disponível na Internet para download), destaca o limite de concentração de trihalometanos permitido na ERPE da Namíbia: 0,04 mg/L.

Portanto, o risco de haver concentração acima do limite no efluente de uma ERPE é muito inferior ao risco da presença de trihalometanos na água tratada em uma ETA convencional.

6 – Têm sido observados poluentes emergentes em ETAs convencionais. Que uma ERPE pode fazer para retirar esses micropoluentes do efluente final?

A presença de poluentes emergentes, principalmente hormônios naturais ou sintéticos, em ETAs convencionais tem sido observada com frequência e se deve, principalmente, ao fato de essas estações não disporem de tratamento biológico. Não havendo fornecimento de oxigênio aos microrganismos, não há como quebrar as cadeias orgânicas, pois o tratamento por coagulação, floculação, decantação, filtração e cloração não consegue eficiência considerável em sua eliminação.

Por outro lado, cadeias grandes como a do hormônio estrogênio (C18H24O2) são facilmente oxidáveis a CO2 e H2O em presença de bactérias aeróbias, bastando injeção de oxigênio. Desse modo, não se pode comparar o efluente de uma ETA convencional ao efluente de uma ERPE, em que as diversas unidades de tratamento tendem a remover os compostos orgânicos presentes no líquido em tratamento.

Uma ERPE segue o princípio das barreiras múltiplas. Como nem todos os poluentes emergentes são conhecidos, é possível que alguns deles ultrapassem os tanques de aeração sem serem oxidados. Nesse caso, passarão pela unidade de oxidação avançada, onde a ingestão de peróxido de hidrogênio, associada ao fornecimento de radiação ultravioleta, vai propiciar a oxidação dos compostos mais renitentes.

A revisão do Anexo XX da Portaria de Consolidação nº 05/2017 vai listar os poluentes emergentes que devem ter limitada sua concentração na água potável, tornando mais fácil seu monitoramento tanto em uma ERPE como nas ETAs convencionais.

Paulo Afonso da Mata Machado

Engenheiro Civil e Sanitarista

Master in Environmental Science and Engineering

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 25/08/2020

 

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