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Artigo

Programa de recuperação de nascentes que está sendo implantado e divulgado por aí, artigo de Osvaldo Ferreira Valente

 

[EcoDebate] Qualquer pessoa que entrar no YouTube com a expressão “recuperação de nascentes” irá encontrar um bom número de vídeos sobre o assunto. Nós, da hidrologia aplicada a pequenas bacias hidrográficas, usamos o conceito de recuperação de nascente para discutir tecnologias apropriadas ao aumento da sua capacidade de produção de quantidade de água. E isso só será possível com o aumento do volume de água dos aquíferos (lençóis). As nascentes são como torneiras que só liberam água se a caixa estiver abastecida (e os aquíferos são as caixas das nascentes).

Os vídeos, muitos deles baseados em programa da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), mostram apenas técnicas de melhoria das condições de captação de água nos pontos de emergência dos aquíferos, conhecidos em geral como nascentes, mas que muitas vezes são apenas olhos d’água. O fluxograma exposto abaixo, que representa o ciclo hidrológico de formação e manutenção de nascentes ( já mostrado em artigo publicado pelo EcoDebate na série “UTI ambiental”), demonstra que a nascente é o resultado do processamento dos volumes de água de chuva que chegam à pequena bacia hidrográfica. Se a nascente está produzindo pouca água é porque a bacia vem recebendo pouca chuva ou está processando mal os volumes recebidos, produzindo muita enxurrada e/ou elevada taxa de evapotranspiração e, assim, dificultando o abastecimento dos lençóis.

 

ciclo hidrológico de formação e manutenção de nascentes

 

Ir apenas ao retângulo da nascente e realizar um trabalho é desconhecer que tudo depende do que acontece no retângulo bem maior da superfície da bacia. Sem água no lençol, nenhum trabalho no ponto de emergência (nascente) será capaz de garantir produção de água. E a quantidade de água do lençol depende, em primeiro lugar de haver bons volumes de chuva e, em segundo lugar, que tais volumes sejam bem processados pela superfície da pequena bacia, conduzindo pelos menos uns 15% para o lençol.

A técnica mostrada nos vídeos foi desenvolvida no Paraná, em região com boa pluviosidade total anual, que chega a ultrapassar 1.800mm, e com boa distribuição ao longo do ano. Em tais condições, mesmo que a superfície não trabalhe bem, 7 a 9% dos volumes de chuvas recebidos já são suficientes para um abastecimento razoável dos lençóis freáticos. O erro é dar a entender que a técnica é capaz de recuperar vazões de nascentes em regiões castigadas por anos de baixas pluviosidades (valores abaixo de 1.000mm). Aí é consertar a torneira sem verificar se a falta de água não é causada pela pouca entrada de água na caixa. E os 7 a 9%, suficientes no Paraná, precisariam ser levados a algo como 15%. Vale lembrar que mesmo as instituições do Paraná estão preocupadas em mostrar, por meio de cartilhas, que além de consertar a torneira será importante trabalhar a superfície da pequena bacia para aumentar infiltração, primeira providência para abastecimento do lençol. Digo primeira providência porque é preciso analisar os escoamentos subsuperficiais e os balanços de água no solo.

Os ecossistemas hidrológicos variam muito no território brasileiro e não podem ser tratados com receitas tipo as de bolo. Os fundamentos hidrológicos da região de trabalho são estudos básicos para adoção de quaisquer tecnologias de recuperação de nascentes. E profissionais que venham a divulgar as tecnologias devem ser previamente treinados em hidrologia e manejo de pequenas bacias hidrográficas. É estranha a resistência de instituições brasileiras em se curvarem a essa necessidade. Aí acabam achando que ações diretamente nos pontos de emergência dos lençóis freáticos são capazes de recuperar vazões de nascentes em regimes de baixas pluviosidades. Os produtores rurais, detentores de áreas onde está o grosso das nascentes, precisam aprender a manejar adequadamente os volumes de chuvas recebidos, quer para abastecer as nascentes, quer para evitar danos aos solos de suas propriedades.

E aí termino fazendo as seguintes perguntas: 1) por que não desenvolver programas que tenham por base os fundamentos da hidrologia e do manejo de pequenas bacias hidrográficas? 2) por que a insistência em tratar o assunto como mera prática de conservação de solos ou de recuperação de áreas degradadas? 3) por que a fixação no entorno de nascentes e córregos, quando suas vazões são produtos do manejo adequado das respectivas pequenas bacias hidrográficas?

As respostas irão indicar o sucesso ou o fracasso de tecnologias que estão sendo divulgadas e até mesmo implantadas por aí, com expectativas de salvar aquíferos, nascentes e córregos.

Osvaldo Ferreira Valente é engenheiro florestal, especialista em hidrologia e manejo de pequenas bacias hidrográficas, professor titular, aposentado, da Universidade Federal de Viçosa (UFV) e autor dos livros : “Conservação de nascentes – Produção de água em pequenas bacias hidrográficas” e “Das chuvas às torneiras – A água nossa de cada dia”; Colaborador e Articulista do EcoDebate.

 

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 10/11/2017

[cite]

 

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2 thoughts on “Programa de recuperação de nascentes que está sendo implantado e divulgado por aí, artigo de Osvaldo Ferreira Valente

  • Muito bom artigo professor Osvaldo. Aparentemente lidar com a complexidade do ecossistema da micro e macro região de cada bacia parece ser um desafio muito grande para o Estado cumprir, sendo que este não consegue sequer fiscalizar a questão da área de proteção permanente em torno de nascentes, rios e cursos d’água.
    Resta a nós com maior consciência sobre o tema fomentarmos não apenas a discussão, mas práticas efetivas para a conservação e manutenção dos nossos biomas e recursos hídricos.
    Um vislumbre de iniciativa foi o Cadastro Ambiental Rural, que teoricamente agora, será possível o cruzamento dessas informações e fiscalização das áreas. Já é um começo.
    Um abraço

  • ROSSINI FERREIRA MATOS SENA

    Professor Valente, sempre brilhante!”

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