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‘Não pode haver dúvida de que programas de transferência de renda contribuem para reduzir a pobreza’. Entrevista com Rodolfo Hoffmann

 

“No período 2004-2012, no Brasil, tanto o aumento da renda média como a redução da desigualdade contribuíram para a redução da pobreza absoluta”, diz o pesquisador.

Foto: www.institutosocioambientaldhc.com.br

“A redução da desigualdade nos últimos 20 anos ocorreu graças à ausência de golpes e governos ditatoriais”, assinala Rodolfo Hoffmann em entrevista à IHU On-Line, concedida por e-mail. Segundo ele, desde a redemocratização, “os governos tomaram algumas medidas que promoveram a redução da desigualdade.

Além dos programas de transferência de renda focalizados nos pobres, houve o sistemático crescimento do valor real do salário mínimo depois do necessário controle da inflação em 1994. A inflação muito alta atrapalha todo o funcionamento da economia, mas prejudica particularmente os relativamente pobres, contribuindo para aumentar a desigualdade”.

De acordo com ele, os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), coletados anualmente, “permitem verificar que as transferências do governo federal, incluindo o Programa Bolsa Família (PBF) e o Benefício da Prestação Continuada (BPC), apesar de representarem, em média, menos de 1% da renda total, são responsáveis por quase 20% da redução do índice de Gini da distribuição da Renda Domiciliar per capita (RDPC) no Brasil de 1995 a 2012”. E acrescenta: “Se o Programa Bolsa Família aumenta a renda dos mais pobres, e a renda dos mais ricos permanece a mesma, é óbvio que isso contribui para diminuir a desigualdade da distribuição da renda”.

Rodolfo Hoffmann é graduado em Agronomia, mestre em Ciências Sociais Rurais e doutor em Economia Agrária. É professor da Universidade de São Paulo – USP.

Confira a entrevista.

Foto: correio.rac.com.br

IHU On-Line – Quais são os indícios de que os programas de distribuição de renda contribuíram para o processo de redução da desigualdade da distribuição da renda no Brasil de 1995 a 2012? 

Rodolfo Hoffmann – Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, coletados anualmente pelo IBGE, permitem verificar que as transferências do governo federal, incluindo o Programa Bolsa Família e o Benefício da Prestação Continuada, apesar de representarem, em média, menos de 1% da renda total, são responsáveis por quase 20% da redução do índice de Gini da distribuição da Renda Domiciliar per capita no Brasil de 1995 a 2012. Os dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de 2008-2009 confirmam a contribuição dessas transferências para reduzir a desigualdade da distribuição de renda. Cabe ressaltar que programas federais de transferência de renda precederam os governos do PT, que sem dúvida os expandiram. Note-se, também, que cerca de 80% da redução da desigualdade se deve a outros fenômenos, e não aos programas de transferência de renda.

O índice de Gini da distribuição da RDPC caiu de 0,599 em 1995 para 0,524 em 2012 (excluindo a área rural da antiga região Norte, que não era coberta pela PNAD em 1995).

IHU On-Line – Há algumas críticas no sentido de que programas como o Bolsa Família possibilitam que uma parcela da população tenha acesso à renda, mas isso não implica em distribuição de renda de fato, porque não altera a renda dos mais ricos em relação a renda dos mais pobres. Como o senhor avalia críticas como essa?

Rodolfo Hoffmann – Se o Programa Bolsa Família aumenta a renda dos mais pobres, e a renda dos mais ricos permanece a mesma, é óbvio que isso contribui para diminuir a desigualdade da distribuição da renda. Não pode haver dúvida de que programas de transferência de renda bem focalizados nos pobres contribuem para reduzir a pobreza e a desigualdade. É certo que deve haver uma preocupação no sentido de que pessoas que não sejam inválidas para o trabalho não fiquem permanentemente dependentes das transferências. Um aspecto positivo do PBF é exigir das famílias beneficiadas a frequência das crianças à escola e certos cuidados com a saúde (as condicionalidades do Programa).

“Cabe ressaltar que programas federais de transferência de renda precederam os governos do PT, que sem dúvida os expandiram”

IHU On-Line – Por que o senhor relaciona programas de transferência de renda com o Índice de Gini? Qual o impacto desses programas no enfrentamento das desigualdades?

Rodolfo Hoffmann – Meus estudos, baseados em dados coletados e fornecidos pelo IBGE, mostram que os programas de transferência de renda contribuíram para reduzir a desigualdade e a pobreza no Brasil de 1995 a 2012, qualquer que seja a medida utilizada.

Nas pesquisas, uso várias medidas de desigualdade e de pobreza. O índice de Gini é apenas a medida de desigualdade mais comum (da mesma maneira que a medida mais comum de tendência central de uma distribuição é a média aritmética, embora também se possa usar a mediana, a moda, a média geométrica, etc.).

IHU On-Line – Em que medida a redução da pobreza significa redução das desigualdades?

Rodolfo Hoffmann – Em princípio pode haver redução da pobreza sem redução da desigualdade. Basta imaginar que a renda por pessoa da metade mais pobre suba 20% e a renda por pessoa da metade mais rica suba 40%. Haveria redução da pobreza e aumento da desigualdade.

Outra situação hipotética seria a renda de todos subir 10%. Haveria redução da pobreza absoluta sem alteração no grau de desigualdade.

O grau de pobreza (absoluta) é uma função da renda média e da desigualdade. Em geral a pobreza diminui quando a renda média cresce e/ou a desigualdade da distribuição da renda diminui. No período 2004-2012, no Brasil, tanto o aumento da renda média como a redução da desigualdade contribuíram para a redução da pobreza absoluta.

IHU On-Line – Quais dos indicadores expressa e explicita melhor a questão das desigualdades, especificamente no que se refere à desigualdade de renda, num determinado território? No caso do Brasil, qual indicador expressa com mais objetividade a realidade?

Rodolfo Hoffmann – Não vejo nenhuma razão para me limitar ao uso de um único indicador. Considere-se, por exemplo, a distribuição da RDPC no Brasil, de acordo com os dados da PNAD de 2012. O (ainda) elevado grau de desigualdade pode ser mostrado assinalando que o décimo mais rico fica com 42% da renda total, o vigésimo mais rico fica com 30% e o centésimo mais rico fica com 12% da renda total. Por outro lado, os 40% mais pobres ficam com 11% e os 50% mais pobres ficam com menos de 17% da renda total declarada. Note-se que o centésimo mais rico recebe mais do que os 40% mais pobres. A renda média do centésimo mais rico é 45 vezes maior do que a renda média dos 40% mais pobres. O índice de Gini é igual a 0,526. É provável que a desigualdade real seja maior, pois as rendas da PNAD são subdeclaradas e é provável que o grau de subdeclaração seja maior para as rendas mais altas.

IHU On-Line – Ao apontar a proporção de renda, o senhor destaca a regressividade das aposentadorias na parcela da renda total. Em contrapartida a esse dado, o Programa Bolsa Família se destaca como um programa que possibilita uma distribuição de renda mais progressiva, especialmente entre os pobres. Quais as razões desses processos e o que eles indicam em relação à tentativa brasileira de diminuir as desigualdades?

Rodolfo Hoffmann – Uma parcela da renda é progressiva quando beneficia mais os relativamente pobres, contribuindo para reduzir a desigualdade. Por outro lado, um componente da renda total é regressivo quando sua participação é maior na renda dos relativamente ricos, contribuindo para aumentar a desigualdade. A renda do PBF é tipicamente progressiva, uma vez que está focalizada nos pobres.

Se considerarmos separadamente as aposentadorias e pensões iguais a um salário mínimo (incluindo as aposentadorias rurais), verifica-se que elas são uma parcela progressiva da renda total (embora não tão progressiva quanto a renda do PBF).

Por outro lado, se separarmos as aposentadorias e pensões referentes a funcionários públicos estatutários, que, por norma constitucional alterada há pouco tempo, são iguais ao último salário recebido pelo funcionário, verifica-se que são uma parcela fortemente regressiva da renda total. Note-se que aí estão incluídas as aposentadorias e pensões do alto escalão do funcionalismo público.

Quando se considera o agregado de todas as aposentadorias e pensões pagas pelo governo (INSS e aposentadorias e pensões de funcionários públicos), verifica-se que é uma parcela levemente regressiva. Isso se deve à dualidade do sistema previdenciário brasileiro, com regras distintas para os funcionários públicos.

IHU On-Line – Quais as razões de ter evoluído a desigualdade da distribuição da renda domiciliar per capita entre 1995 e 2012?

Rodolfo Hoffmann – Um fato importante é a abertura democrática. Entre 1960 e 1970 a distribuição da renda no Brasil se tornou mais desigual, e isso certamente se deveu, pelo menos em parte, ao golpe de 1964 e ao aprofundamento da ditadura em 1968. Assim, pode-se dizer que a redução da desigualdade nos últimos 20 anos ocorreu graças à ausência de golpes e governos ditatoriais. Refletindo a vontade popular, os governos tomaram algumas medidas que promoveram a redução da desigualdade. Além dos programas de transferência de renda focalizados nos pobres, houve o sistemático crescimento do valor real do salário mínimo depois do necessário controle da inflação em 1994. A inflação muito alta atrapalha todo o funcionamento da economia, mas prejudica particularmente os relativamente pobres, contribuindo para aumentar a desigualdade.

A partir de 2003, quando a escolaridade média das pessoas ocupadas no Brasil ultrapassou 7,5 anos, a dispersão (que pode ser medida pela variância ou pelo desvio padrão) dessa escolaridade passou a diminuir, contribuindo para reduzir a desigualdade da distribuição da renda entre as pessoas ocupadas. Além disso, a partir de 2002 também tem se reduzido o acréscimo de remuneração associado a anos adicionais de escolaridade (denominada taxa de retorno da educação). Em 2002, para pessoas ocupadas fora da agricultura, cada ano adicional de escolaridade acima dos 10 anos de estudo representava um acréscimo médio de 18% na sua remuneração; em 2012 essa taxa tinha caído para 15%. Estudar continua sendo um meio importante de ganhar mais, mas o “prêmio” era maior em 2002, o que, junto com a maior dispersão da escolaridade, contribuía para maior desigualdade na distribuição da renda entre pessoas ocupadas.

IHU On-Line – Qual a situação da distribuição de renda no setor agrícola? Quais as principais diferenças em relação à distribuição de renda de trabalhadores do setor agrícola e não agrícola?

Rodolfo Hoffmann – A partir dos microdados das PNADs de 1992 a 2012 foi obtida a Figura 1. As pessoas são classificadas como agrícolas ou não agrícolas com base na sua atividade principal. A Figura 1 mostra que o índice de Gini dessa distribuição, para todas as ocupações ou considerando apenas as não agrícolas, cai sistematicamente desde 1993.

Figura 1 – Evolução do índice de Gini da distribuição do rendimento de todos os trabalhos por pessoa ocupada, no Brasil, de 1992 a 2012.

Essa Figura mostra que a evolução da desigualdade é muito distinta quando se considera apenas o setor agrícola. Os índices oscilam mais e observa-se crescimento da desigualdade de 1999 a 2012.

Nota-se, na Figura 1, que a evolução da desigualdade entre todas as pessoas ocupadas é muito semelhante a essa evolução para o setor não agrícola. Isso se deve, simplesmente, ao fato de o setor agrícola ter uma participação pequena no total, como mostra a Figura 2.


Figura 2 – A participação do setor agrícola no total de pessoas ocupadas e na respectiva renda do trabalho, no Brasil, de 1992 a 2012.

Observa-se, na Figura 2, que a participação do setor agrícola na renda total é bem menor do que sua participação na população de pessoas ocupadas, pois o rendimento médio por pessoa ocupada é substancialmente mais baixo nesse setor. De acordo com os dados da PNAD de 1998, o rendimento do trabalho por pessoa ocupada no setor agrícola correspondia a apenas 43% do rendimento médio no setor não agrícola. A partir desse ano essa proporção mostra tendência crescente, sendo igual a 59% em 2012.

Uma das razões para a evolução distinta da desigualdade no setor agrícola é o comportamento diferenciado da dispersão da escolaridade. No setor agrícola a escolaridade média das pessoas ocupadas é muito mais baixa (4,6 anos em 2012, contra 9,6 para os ocupados no setor não agrícola) e sua dispersão é crescente, contribuindo para aumentar a desigualdade da distribuição da renda dentro desse setor.

O crescimento do valor real do salário mínimo contribuiu para a redução da desigualdade, com efeitos tanto no mercado de trabalho como na distribuição de aposentadoria e pensões (e no valor do Benefício da Prestação Continuada – BPC).

Entretanto, quando se analisa o caso dos empregados agrícolas, verifica-se que para os empregados sem carteira o salário mínimo não funciona, efetivamente, como piso salarial e não contribui para a redução da desigualdade dessa categoria (ver Oliveira e Hoffmann, “Desigualdade de rendimentos entre os empregados na agricultura brasileira de 2002 a 2009: o efeito do salário mínimo”. Revista Econômica do Nordeste 44(1):125-143, 2013).

“Cerca de 80% da redução da desigualdade se deve a outros fenômenos, e não aos programas de transferência de renda”

 

IHU On-Line – É possível traçar um panorama sobre a desigualdade inter-regional no Brasil?

Rodolfo Hoffmann – No setor não agrícola a desigualdade de renda entre regiões (ou entre as 27 Unidades da Federação) mostra tendência de queda a partir de 1998, com redução da vantagem relativa do Estado de São Paulo. Entretanto, quando se considera somente o setor agrícola, há tendência de crescimento da desigualdade entre regiões (e entre as 27 Unidades da Federação). Também sob esse aspecto o comportamento da desigualdade é diferente no setor agrícola. (ver trabalho de Hoffmann e Oliveira)

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Rodolfo Hoffmann – 1) Como crítica do sistema previdenciário no Brasil, recomendo o livro de Brian Nicholson intitulado “A previdência injusta: como o fim dos privilégios pode mudar o Brasil”.

2) Thomas Piketty analisa a evolução da distribuição da renda nos países desenvolvidos no livro intitulado “Capital in the twenty-first century”. Ele mostra que as economias capitalistas têm uma tendência de concentrar riqueza e renda no longo prazo. As guerras mundiais e a grande crise de 1929 reverteram o processo durante toda a primeira metade do século XX, mas a tendência voltou a se manifestar depois. Intervenções governamentais coordenadas são necessárias para frear o processo. A tradução do livro para o português deve ser publicada neste segundo semestre de 2014.

(EcoDebate, 17/07/2014) publicado pela IHU On-line, parceira editorial do EcoDebate na socialização da informação.

[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]


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