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Artigo

‘A saída dos brasileiros para as ruas foi uma verdadeira epifania’, artigo de Sérgio Abranches

 

Manifestação na Avenida Paulista dia 20 de junho de 2013
Manifestação na Avenida Paulista dia 20 de junho de 2013. Foto: Marcos Santos/USP Imagens

 

“A saída dos brasileiros para as ruas foi uma verdadeira epifania. Caiu a ficha. Nada do que estava acontecendo nos últimos tempos era normal. A sociedade havia perdido a representação e ficado sem voz. Precisou levar sua voz para as ruas”, escreve Sérgio Abranches, sociólogo e cientista político, em artigo publicado no blog Ecopolítica, 07-07-2013.

Segundo ele, “nos últimos dez anos, os partidos brasileiros se oligarquizaram todos. O último a completar esse processo foi o PT. Hoje, os partidos vivem de si e para si e não de e para suas bases. Tornaram-se organizações “voltadas para dentro”, o processo de aquisição de novos agentes políticos passou a se dar por cooptação e por conveniência, não por abertura a lideranças emergentes da sociedade e do movimento social, ou pela busca de talentos políticos manifestos fora da esfera política. Muitos movimentos sociais e ONGs foram também capturados nesse processo de cooptação e busca pela unanimidade”.

“As críticas vêm sendo tratadas como ‘golpismo’, desamor à Pátria, apostas no ‘quanto pior melhor’, ou profecias equivocadas de cassandras mal intencionadas”, avalia. “A mesma atitude autoritária adotada pelos generais da ditadura. Um quadro de paralisia das virtudes democráticas, sitiadas por práticas pré-democráticas (oligárquicas) ou autoritárias mesmo”.

Eis o artigo.

A cobertura e os comentários sobre os eventos políticos recentes no Brasil dão a impressão de que se trata de uma crise ou uma anomalia. Mas não passamos por um surto de anormalidade. É o contrário: o Brasil ficou normal. Anormal era o que tínhamos antes. Vivíamos uma situação anômala de unanimidade governista, oposição prostrada, cooptação e adesão, em todos os níveis. O Brasil mostrava complacência impressionante, tolerando o intolerável. Tudo isso é muito ruim para a democracia.

As unanimidades não são apenas burras, elas têm enorme potencial autoritário. A maioria sem contestação torna-se arrogante e impermeável às demandas que não estão na sua agenda e não fazem parte de seu projeto de poder. Maiorias responsáveis são aquelas que sofrem permanente contestação da minoria, que têm oposições robustas, mobilizadas, com projeto alternativo.

O isolamento da maioria, envolta em perigosa capa de unanimidade, o qual alimenta impunidades e alheamento da coletividade, não é resultado apenas do trabalho de cooptação do governo. A oposição tem enorme responsabilidade, ao se deixar atordoar e amedrontar pelo vigor governista, ao ser incapaz de propor alternativas e ao aderir parcialmente ao projeto governista por oportunismo local.

Normal, numa democracia competitiva e com uma cidadania viva, é ver manifestações de rua, protestos, quedas de popularidade presidencial, fragmentação da coalizão governista, especulação sobre futuros oponentes ao situacionismo nas eleições presidenciais, toda vez que as políticas de governo não atendem mais às expectativas gerais. Anormal é não ver descontentamento quando a inflação muda de patamar, ficando sempre acima do centro da meta, muito próxima ao seu topo. Nesses 30 meses, em dez deles a inflação ficou acima da meta – que não é baixa. Era estranha tanta tolerância com os serviços públicos no limiar do colapso, as agências regulatórias capturadas pelos regulados pela via do loteamento político, a educação sem qualidade e sem perspectivas, o sistema de saúde se despedaçando, cidades deterioradas, engarrafadas e poluídas. A corrupção impune, cada vez mais desabrida. A falta de transparência nas transações públicas. O aumento do preço das tarifas de ônibus não foi mais que o estopim.

Normal é um cidadão da Rocinha ir para a rua para dizer que não quer um teleférico para entupir sua comunidade de turistas e facilitar a ‘gentrification’ – nas comunidades conhecida por “branqueamento”– e que prefere saneamento para acabar com o valão no qual sua filha tem que pisar todo dia. Ele quer um ambiente saudável e normal para sua filha, não “um elefante branco” oferecido como dádiva e realização do governo. Prefere serviço real a outdoors. Ele é normal e ir para a rua dizer isso, já que não se sente representado nem por governistas, nem por oposicionistas, também é normal.

Tenho perguntado a pessoas de várias comunidades ‘pacificadas’ sobre o processo de ‘branqueamento’ (‘gentrification’: que aconteceu com a renovação de bairros populares, principalmente negros, em Chicago; e negros e latinos, em Nova York, por exemplo). É a ocupação do espaço, agora supostamente ou em parte livre do banditismo e da violência, por pessoas de fora – usualmente brancas e de classe média e média alta – que oferecem preços irrecusáveis pelas propriedades precárias, que remodelarão para uso próprio. Esse processo que expulsa para a periferia os moradores tradicionais, acaba por provocar uma bolha de preços de imóveis, que acelera a expulsão. O preço de compra alto, para famílias com orçamentos apertados, é uma tentação irresistível. Os aluguéis em elevação se tornam proibitivos para os de menor renda, que são forçados a sair. Todas as pessoas dessas comunidades a quem perguntei, responderam que sim, isso está acontecendo. Todas falam, também, da ocupação não só por brasileiros, mas por muitos estrangeiros. O próximo passo, é a pressão desses novos moradores pela regularização da posse da terra.

Nos últimos dez anos, os partidos brasileiros se oligarquizaram todos. O último a completar esse processo foi o PT. Hoje, os partidos vivem de si e para si e não de e para suas bases. Tornaram-se organizações “voltadas para dentro”, o processo de aquisição de novos agentes políticos passou a se dar por cooptação e por conveniência, não por abertura a lideranças emergentes da sociedade e do movimento social, ou pela busca de talentos políticos manifestos fora da esfera política. Muitos movimentos sociais e ONGs foram também capturados nesse processo de cooptação e busca pela unanimidade. As críticas vêm sendo tratadas como “golpismo”, desamor à Pátria, apostas no “quanto pior melhor”, ou profecias equivocadas de cassandras mal intencionadas. A mesma atitude autoritária adotada pelos generais da ditadura. Um quadro de paralisia das virtudes democráticas, sitiadas por práticas pré-democráticas (oligárquicas) ou autoritárias mesmo.

A saída dos brasileiros para as ruas foi uma verdadeira epifania. Caiu a ficha. Nada do que estava acontecendo nos últimos tempos era normal. A sociedade havia perdido a representação e ficado sem voz. Precisou levar sua voz para as ruas. Alguns setores dos partidos na oposição começaram a se dar conta, vexados, de seu comportamento timorato e oportunista. Mas o que se está vendo é uma tentativa de estender a rede de cooptação até as ruas, numa busca de capturar esse movimento que foi espontâneo e abrigava demandas múltiplas e difusas. Mesmo nas últimas – e grandes manifestações – podia-se ver a tentativa de aparelhamento, de tomada do controle por lideranças organizadas, na sua maior parte rechaçada pela maioria dos que se manifestavam. Sem falar na sabotagem do movimento pacífico por minorias aliciadas para essa tarefa ou por bandidos interessados na desordem.

Não é normal, ter as ruas cheias de revoltosos todo o tempo. Mas é normal vê-las ocupadas pelos descontentes, toda vez que a situação desanda e a população se vê espoliada por oportunistas e por forças instaladas no governo e no aparelho de estado atuando em proveito próprio, alheias ao interesse coletivo. Quando os partidos e os Poderes ficam de costas para a sociedade, as pessoas, sem representação e sem voz institucionalizada, só têm as ruas para se fazerem ouvir. Isso é normal. As ruas gritam para serem ouvidas, quando estão todos de costas para elas, gastando mal os recursos que retiram dos contribuintes, usando os instrumentos de governo e de estado em benefício próprio. A rua é o único recurso da cidadania, quando os partidos viraram um vasto condomínio de oligarquias, muitas delas na mesma posição de poder desde a ditadura militar. Algumas, mais longevas, desde antes do golpe de 1964. A oligarquização dos partidos e do poder é terreno fértil para a corrupção. Normaliza o anormal: o livre acesso e uso de privilégios, a entrega de benesses aos cooptados, a operação irrestrita de máquinas de financiamento de campanha.

O que está ficando claro é que, com a atual correlação de forças, essas oligarquias oportunistas estarão em qualquer coalizão governista, encabeçada pelo PT ou pelo PSDB. O ‘centrão’ da coalizão variará muito pouco, se não houver condições para uma ruptura eleitoral, que retire a maioria dessas oligarquias encasteladas em quase todos os partidos.

É claro que uma ruptura dessas só é possível abrindo e não fechando a possibilidade de novas entradas na disputa eleitoral. Reduzir, no momento, o número de partidos habilitados a disputar, erigir mais barreiras à entrada na arena eleitoral, só fortalecerá essas oligarquias. Quem realmente quer mudança, precisa desconfiar das receitas convencionais para a reforma política que circulam por aí há bastante tempo. Elas não são para mudar, são para fortalecer o status quo, o estado de coisas atual.

(Ecodebate, 10/07/2013) publicado pela IHU On-line, parceira estratégica do EcoDebate na socialização da informação.

[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]


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