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No Rio Grande do Sul, por último, os primeiros; artigo de Flávio Schardong Gobbi

 

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[EcoDebate] Tarso Genro anunciou recentemente a renovação de parte dos integrantes do Conselho Estadual de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES/RS). O chamado “conselhão” é apresentado como uma inovação institucional, criando uma instância privilegiada de interlocução do governo com os distintos interesses, visões e vontades dos segmentos da população gaúcha, ampliando os espaços democráticos. Neste início de 2013, o “conselhão” substituiu parte de suas cadeiras, após dois anos de funcionamento. Dentre os novos nomes divulgados, destaca-se uma única vaga que não tem nome: “representante indígena”. Acompanha a informação de que “será definido em assembleia dos povos indígenas, em março”.

Talvez, em algum momento destes dois anos de existência do “conselhão”, alguém estranhou uma notável ausência: dos noventa assentos de um conselho que pretende ser o fórum de “concertação”, aqueles que há mais tempo se encontram nessas terras ficaram sem lugar. Até então, o desenvolvimento econômico e social projetado sobre um território há não muito tempo conquistado foi debatido na ausência daqueles que outrora eram seus “senhores naturais”. Nada de novo, nem de se estranhar, não tivesse o governador sua formação e trajetória, incluindo o cargo de Ministro da Justiça; conhecedor, portanto, dos dispositivos jurídicos nacionais e internacionais que reconhecem o fato da conquista e determinam que as ações estatais devem ocorrer em sintonia com os interesses dos povos indígenas. Iniciando pela participação.

Pois até a Constituição de 1988 a legislação e a política indigenista ancoravam-se no pressuposto de que a condição indígena era transitória. Refletindo e infletindo em projetos e práticas de construção da nacionalidade, entendia-se que os capítulos dignos da existência indígena eram coisas do passado. Primeiros habitantes, os indígenas valiam enquanto peças de museu e literatura romântica. Os representantes contemporâneos seriam remanescentes, e deveriam ser, na letra da lei, resguardados e tutelados para uma transição sem sobressaltos aos estágios avançados da civilização. Frágeis e efêmeros, não teriam contribuições a dar no desenvolvimento econômico e social da nação. Tampouco seriam interlocutores merecedores de atenção.

No final do século XX ocorrem transformações significativas nos marcos jurídicos reguladores da ação estatal diante dos povos indígenas. A Constituição de 1988 e a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais apontam para o singelo reconhecimento da existência dos povos indígenas enquanto integrantes dos Estados nacionais que se construíram sobre suas terras, e que serão resguardados em suas especificidades e contemplados em suas diferenças nos projetos de desenvolvimento. Aspecto central na postura estatal preconizada pela legislação atual está a consulta, expressa com clareza também no Artigo 7º da Convenção da OIT:

** Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso, esses povos deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetá-los diretamente. **

Tais mudanças nos dispositivos legais se inserem num cenário consolidado por discursos e práticas tutelares indispostas ao diálogo, também marcado pela desvalorização das instituições responsáveis pela política indigenista. A mudança das estruturas estatais dependeria da chamada vontade política dos governos em avançar na direção de uma política pública que se relacione com as diferenças indígenas, para a qual é imprescindível a participação qualificada, no sentido de levar o diálogo a sério. Obviamente, não será através de uma voz dentre as outras oitenta e nove que as prioridades indígenas serão consideradas.

Mas o CDES integra um “Sistema de Participação”, do qual faz parte o Conselho Estadual dos Povos Indígenas (CEPI), de formação tripartite, com representantes governamentais e de povos indígenas que habitam o RS: Kaingang, Guarani e, incluídos recentemente, Charrua. Estaria configurada uma armadura institucional promissora: num nível, participação indígena expressiva e potencialmente efetiva, com as especificidades de povos e aldeias contempladas; noutro, a expressão dessa presença indígena (mais simbólica do que efetiva, mesmo assim importante) diante dos demais representantes dos diferentes segmentos da sociedade gaúcha.

Porém, o CEPI no governo Tarso foi praticamente desativado. Nos últimos dois anos, suas reuniões não adquiriram sistematicidade, ao contrário do que ocorria em governos anteriores. Também é demonstrativo da pouca importância conferida ao CEPI, ao diálogo com os povos indígenas, o fato de que nestes últimos dois anos ele funcionou apenas com estagiários. Rompendo com uma prática institucional dos últimos governos, a Coordenação Executiva do CEPI deixou de ser ocupada por alguém a ela dedicada integralmente. Com isto, o CEPI perdeu operacionalidade e, consequentemente, legitimidade perante os indígenas como um espaço de articulação de suas demandas. No momento em que se esperava o avanço nos mecanismos de participação indígena, (pois havia problemas, e muitos) a constatação é de um violento retrocesso.

A gravidade de tal descaso aumenta ao considerarmos a atual conjuntura da questão indígena nacional e estadual. O incremento do desenvolvimento econômico é acompanhado pela intensificação da pressão sobre os espaços de vida indígena. O mesmo desenvolvimento ao qual os governos dedicam todas suas forças para liberá-lo de suas “amarras” tem por efeito restrições aos direitos indígenas. Os atores poderosos, contrários aos interesses indígenas, avançam em ações legislativas e judiciais para obstaculizar as recentes conquistas. No Congresso, membros da bancada gaúcha destacam-se na frente anti-indigenista. Processos administrativos de demarcações de terras indígenas são freados, com a participação direta do Estado do Rio Grande do Sul, através de sua Procuradoria.

Se as instituições, políticas e projetos são objeto de disputa, no Rio Grande do Sul os indígenas foram destituídos de um espaço que, embora não seja condição suficiente para avanços significativos, é necessário para que também possam participar das contendas em condições mínimas, falando por si. Ali poderiam construir estratégias de defesa diante do avanço dos inimigos históricos. Mesmo que o atual governo mobilize números para dizer que estão fazendo mais pelos indígenas, o descaso conferido ao CEPI nestes dois anos revela que a conversa com os indígenas está longe de ser relevante. A esta altura, em que se anuncia que as ações de governo passaram da etapa de planejamento para a de execução, um “estamos providenciando” é lamentável. Para um governo que afirma a centralidade da participação, conclui-se que nessa “concertação” aos indígenas cabe a plateia, se muito.

Flávio Schardong Gobbi – Cientista Social. Mestre e Doutorando em Antropologia Social (PPGAS/UFRGS).

EcoDebate, 19/02/2013


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