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Artigo

Perfídia contra o Código Florestal, artigo de José Eli da Veiga

 

[Valor Econômico] Qual será o limite de desfaçatez dos que sonham com uma lei que legitime os desmatamentos criminosos dos últimos 12 anos e ainda torne desprotegidas as áreas úmidas, os manguezais, as margens dos rios, as encostas e os topos de morro?

Agora se valem de reles blefe para chantagear a presidente Dilma: aumento dos preços alimentares decorrente de diminuição da área cultivada, caso não seja sancionado o projeto da Câmara que revoga o Código Florestal. Essa é a síntese da ameaça publicada na “Folha de São Paulo” de 12/05 pela presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), senadora Kátia Abreu (PSD/TO).

Bazófia cabalmente desmentida pelas projeções do próprio agronegócio: o “Outlook Brasil 2022”, feito em parceria do Departamento de Agronegócio da Fiesp (Deagro) com o Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Ícone).

A área necessária para expandir a produção de grãos até 2022 não chega a 3% do espaço coberto por capim

Até 2022 a produção de grãos terá crescido quase 30%, com aumento da área plantada de quase 16%. Isso significa que será necessário acrescentar uns 6,2 milhões de hectares aos atuais 39,2 milhões, para que nos próximos dez anos a produção de grãos seja 30% maior que a atual.

Segundo a senadora, seria a obtenção desses 6,2 milhões de hectares que impediria a observância de boas normas de conservação. Como se por aqui houvesse um impasse que obrigaria a nação a sacrificar seu meio ambiente em razão da incontornável necessidade de produzir comida barata.

Falando sério: qualquer vestibulando sabe que a expansão da agricultura se faz por incorporação de terras antes destinadas a pastagens. E esses 6,2 milhões de hectares não chegam a 3% da imensa área coberta por capim, que já ultrapassa 211 milhões de hectares.

É intrigante que se recorra a tão pífio estratagema para tentar defender o indefensável: o “maluco” projeto aprovado na Câmara em 25 de abril. O que mais interessa, contudo, é a real motivação da sanha da CNA contra as áreas de preservação permanente (APP), já que em nada dificultam a expansão agrícola.

A ocupação territorial deste país vem sendo feita por um esquema de desmatamento, queimada e capim que atropela todas as precauções intrínsecas ao cuidado de se manter as APP. Se passar o projeto da Câmara, essas terras terão imediato salto de valorização patrimonial, apesar de todos os riscos de erosão dos solos e assoreamento de rios. Se, ao contrário, a sociedade brasileira exigir a reversão de tão trágico malfeito, os valores desses domínios terão que embutir os custos da indispensável recomposição da vegetação nativa em APP. Principalmente no Centro-Oeste e no Norte, mas também no oeste da Bahia e no sul do Maranhão e do Piauí.

Como esses grandes interesses especulativos são menos confessáveis, foi montada uma campanha política para tentar vender a ideia de que “o grande prejudicado é quem se esforça para produzir “alimentos melhores e mais baratos”. E como também não faltam exemplos de verdadeiros agricultores que, por outras razões, enfrentam dificuldades com a legislação em vigor, são eles que servem de biombo para uma gigantesca operação no mercado imobiliário rural.

É isso que permite entender a geografia da votação de 25 de abril. Aprovado com 100% dos votos das bancadas de Tocantins e de Mato Grosso, ou com mais de 85% dos votos das de Rondônia, Goiás e Roraima, o relatório dos especuladores foi rejeitado pelas bancadas de São Paulo (41 a 26) e do Rio de Janeiro (25 a 15).

Apesar de ter sido cavalo da batalha intragovernamental do PMDB contra o PT, o projeto só obteve 274 votos favoráveis, pouco mais de 50%. E menos de 50% pelo critério do número de eleitores que botaram os atuais deputados na Câmara. Pior: essa é a casa com maior déficit democrático, como demonstrou ontem (14/05) Renato Janine Ribeiro em sua coluna no Valor (A10).

Caso típico, portanto, em que a democracia requer veto presidencial. E como ele tende a ser integral (ou quase), multiplicam-se as iniciativas para preencher o vazio. Algumas certamente tentarão corrigir três sérios deslizes cometidos pelo Senado.

Não é possível ignorar que a Lei de Crimes Ambientais (9.605, de 12/02/1998) está regulamentada desde 1999. Posteriores desmatamentos de APP foram crimes dolosos que, se perdoados, configurariam mais indulto que anistia. A escolha de julho de 2008 para demarcar o passivo é uma mesquinha vingança contra a regulamentação específica do governo Lula.

Se houver excepcionalidade para os chamados “pequenos produtores”, não se deve usar a figura do imóvel rural (com área de até tantos módulos), porque não há qualquer correspondência entre propriedade (imóvel) e empreendimento (estabelecimento). Deve prevalecer a Lei da Agricultura Familiar (11.326, de 24/07/2006), cujos critérios impedem que imóvel voltado à especulação fundiária seja tomado como se fosse dedicado à agricultura de pequena escala.

Terceiro, mas não menos importante: é preciso banir pastagem em APP, pois não há pior atentado ao beabá do conhecimento agronômico.

José Eli da Veiga, professor dos programas de pós-graduação do Instituto de Relações Internacionais da USP (IRI/USP) e do Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ)

Artigo originalmente publicado no Valor Econômico e socializado pelo ClippingMP.

EcoDebate, 16/05/2012

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Alexa

4 thoughts on “Perfídia contra o Código Florestal, artigo de José Eli da Veiga

  • Muito pertinente, essa abordagem do professor Eli. Preocupante, porque sabemos que está nas mãos de políticos, o poder de decisão.

  • Excelente a abordagem do Prof. Eli da Veiga. Uma coisa não justifica a outra. A proposta do futuro código ficou aquém do que o Brasil precisava e merecia. Não podemos pactuar com os extremistas, de ambos os lados, torcendo para o pior acontecer, esquecendo-se de que os legítimos interesses do Brasil e dos brasileiros precisam ser resguardados. Precisamos de mais educação para o produtor rural, do empresário, do consumidor, de exercício de cidadania participativa. Uma lei não irá resolver nada se não tiver os ingredientes citados.
    O texto do código de 1965 está ultrapassado, remendado, anacrónico, abrindo brechas para injustiças, falcatruas, corrupção e estímulo à ilegalidade.
    Fazer uma lei bonita, que satisfaça os alienígenas é continuar na mesmice: as melhores leis do mundo para que não tem hábito de cumpri-las ou achar brechas para descumpri-las. O Brasil perdeu uma oportunidade histórica para fazer um código florestal adequado ás nossas realidades, mas respeitando as diversidades regionais. Prevaleceram os interesses, as emoções.
    Acho que evoluímos muito com a lei, mas precisamos mais educação dos produtores, consumidores e mais exercício de cidadania. Sem isso, qualquer lei é inócua.

  • Osvaldo Ferreira Valente

    É evidente que não houve e nem há racionalidade na discussão. Os extremistas, dos dois lados, manipulam informações, omitem dados etc. O articulista reclama da CNA, por apresentar dados com malícia, mas os ambientalistas também agem da mesma forma. Por exemplo, ao tachar todos os produtores rurais que não têm mais vegetação permanente nas margens dos córregos como desmatadores e criminosos, que precisam pagar pelo crime cometido, acabam colocando, no mesmo barco, pessoas que estão inocentes.
    Vejamos o caso da Zona da Mata mineira, nas cabeceiras do rio Doce. Por ali passaram os bandeirantes, que vinham usando os rios como pontos de referência e desmatavam para pequenos cultivos e construção de ranchos e estruturas de apoio para as idas e vindas das caravanas. Isso aconteceu lá pelos idos de 1670 e hoje as áreas desmatadas estão nas mãos de pequenos produtores que as compraram, muitas vezes, recentemente. Ou herdaram de seus antepassados. Estes são os desmatadores criminosos, que têm de recuperar o que os bandeirantes fizeram? Ambientalistas, eu sei, vão dizer que são casos isolados. Nem tanto, pois os casos isolados, ou melhor, as especificidades acontecem na grande variabilidade da paisagem brasileira. Mas brigam por metragens rígidas e válidas para todo o país. Tenho ojeriza do tratamento geométrico que querem implantar na conservação ambiental. Outro grande mal pregado por ambientalistas na discussão do Código é o sentimento de que,se preservadas as matas ciliares,os cursos d’água estarão salvos, o que não é verdade quanto às vazões (quantidades). A própria Lei das Águas diz que a bacia hidrográfica é que é a unidade básica de produção e uso de água
    Portanto, meu caro articulista, não é só a CNA que mistifica, mas a matreirice campeia solta neste mar de dissimulações.

  • Blá, blá,blá, mas, enquanto houver o que destruir, a destruição continuará em ritmo cada vez mais acelerado.

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