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Desastres Naturais? Interfaces entre Defesa Civil, saúde e meio ambiente, artigo de André Antunes

 
 O Brasil é uma terra abençoada: não sofre com terremotos, furacões e outras catástrofes que fazem parte do cotidiano de milhões de pessoas ao redor do mundo. Certamente você já ouviu alguém dizer isso.  Quando a ideia é demonstrar o “orgulho de ser brasileiro”, é comum recorrer a frases como essa para ressaltar as vantagens de se viver por aqui. Mas se é que isso já foi verdade algum dia, vem se tornando cada vez mais difícil corroborar a tese da suposta imunidade do território brasileiro aos desastres. Principalmente depois do país todo ter assistido, em janeiro de 2011, às cenas da tragédia na região serrana do Rio de Janeiro, onde enxurradas e deslizamentos de terra decorrentes das chuvas fortes deixaram mais de 900 mortos, 13 mil desabrigados e 22 mil desalojados, de acordo com números do Ministério da Integração Nacional (MI).

Na mídia e em muitas falas do poder público, alerta-se que a tendência é que os desastres se tornem cada vez mais frequentes e severos, sempre batendo na tecla das mudanças climáticas. No entanto, um assunto que tem sérios desdobramentos para o tema no Brasil, mas que tem sido pouco abordado nos debates sobre desastres, é a proposta de alteração do Código Florestal (no fechamento desta edição, o projeto estava prestes a ser votado no Congresso Nacional). Nesta reportagem falaremos sobre as limitações das práticas de Defesa Civil no país, sobre a atuação e eventuais lacunas que o Sistema Único de Saúde (SUS) apresenta na área dos desastres e, por fim, abordaremos algumas das principais alterações que estão sendo propostas para o Código Florestal e as opiniões de especialistas sobre as possíveis consequências delas para a prevenção de desastres.

Defesa Civil: história e atribuições

No artigo ‘Desastres, ordem social e planejamento em Defesa Civil: o contexto brasileiro’, a coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Sociais em Desastres (Neped) da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), Norma Valencio, conta que a Defesa Civil, em âmbito federal, institucionalizou-se no final da década de 1940, sob a égide militar, em um contexto de polarização ideológica pós-Segunda Guerra Mundial. “A corrida armamentista fez com que o Estado brasileiro priorizasse, como tema de Defesa Civil, a proteção da população civil a possíveis ataques aéreos”, escreve. Não por acaso, no seu primeiro ano de funcionamento, o sistema era chamado de Serviço de Defesa Passiva Anti-Aérea, sob a supervisão do hoje extinto Ministério da Aeronáutica. Em 1943, passou a se chamar Serviço de Defesa Civil, sob a supervisão do Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Os deslocamentos da instituição entre diversos ministérios foram uma constante ao longo da história, o que, segundo Norma Valencio, “impediu o desenvolvimento de discussões substantivas e uma identidade técnica sólida”.

A criação, na década de 1990, da Política Nacional de Defesa Civil foi uma tentativa de reverter esse quadro. A partir daí, aponta a pesquisadora, os órgãos de Defesa Civil foram articulados e coordenados nos três níveis de governo, por meio da criação do Sistema Nacional de Defesa Civil (Sindec). O sistema teve suas diretrizes reformuladas por sucessivos decretos do Poder Executivo – em 1993, 2005 e 2010. Este último,o decreto 7.257, serviu de base para a lei 12.340, que dispõe sobre a organização do Sindec, ainda em vigor. Atualmente, a coordenação do sistema fica a cargo da Secretaria Nacional de Defesa Civil (Sedec), órgão do Ministério da Integração Nacional.

De acordo com a lei 12.340, Defesa Civil compreende o “conjunto de ações preventivas, de socorro, assistenciais e recuperativas destinadas a evitar desastres e minimizar seus impactos para a população e restabelecer a normalidade social”. Na legislação, fica claro que as atribuições da Defesa Civil vão além do resgate de pessoas durante as emergências, já que para desempenhar todas as atividades relacionadas direta e indiretamente a um desastre seria preciso coordenar esforços nas mais diversas áreas. A transversalidade do tema justifica a existência de um sistema como o Sindec, que tem como objetivos “planejar, articular e coordenar as ações de Defesa Civil em todo o território nacional”.

Mais prevenção e menos distorções

O sistema, no entanto, não vem sendo capaz de responder aos desafios que suas atribuições lhe colocam. Em 2011, o Senado Federal formou uma comissão com o objetivo de propor maneiras de reestruturar o sistema. Presidida pelo senador Jorge Viana (PT-AC), a comissão chegou à conclusão que o governo brasileiro investe pouco na prevenção, priorizando o pós-desastre por meio de ações de assistência emergencial. Uma análise dos gastos do Ministério da Integração Nacional nos últimos cinco anos dá uma ideia do que é considerado prioridade pela pasta: segundo dados do Portal da Transparência do governo federal, de 2007 a 2011, o Programa de Prevenção e Preparação para Emergência e Desastres recebeu R$ 85,5 milhões, enquanto o Programa de Respostas aos Desastres e Reconstrução recebeu R$ 1,4 bilhão.

 Para o psicólogo Marcos Ferreira, especialista em Defesa Civil e colaborador do Conselho Federal de Psicologia, embora a comissão tenha tido o mérito de falar em prevenção, falhou ao não abordar, em seu relatório final, algumas das questões de fundo da Defesa Civil no país. “O problema é que não se conhece a construção histórica da Defesa Civil brasileira, e não se aproveita nem o que ela tem de bom, nem se descarta o que ela tem de ruim”, afirma. Essa também é a posição de Norma Valencio. Em entrevista à Poli, ela lembra que a concepção militarizada de Defesa Civil no país impõe entraves para sua atuação. “O quadro decisório da Defesa Civil no Brasil está ligado às instituições militares, como o Corpo de Bombeiros. Dessa maneira, a racionalidade militar impera para entender o desastre como uma ruptura da normalidade, a partir de uma concepção distorcida de normalidade, em uma sociedade injusta e desigual”, aponta Norma. Em termos práticos, isso leva a uma priorização de ações de Defesa Civil provisórias, com ênfase no resgate da população afetada, na remoção dos que se encontram em situação de risco e no seu “aquartelamento” em abrigos. Para piorar, diz Marcos Ferreira, prevalece no Brasil a ideia de que os flagelados, forçados a ficar nos abrigos, são “aproveitadores”. “Eu já ouvi de uma pessoa graduada na Defesa Civil que, no Brasil, o desabrigado tem que receber colchão e cobertor, porque se der lençol e travesseiro ele não vai embora do abrigo”, revela.

Democratização

Outro problema apontado por Ferreira é a falta de participação social na formulação das políticas de Defesa Civil, questão que, segundo ele, também não foi abordada no relatório do Senado. De acordo com o psicólogo, dos 18 integrantes do Conselho Nacional de Defesa Civil (Condec) – que faz parte do Sindec como órgão deliberativo e consultivo – apenas três são representantes da sociedade civil, enquanto os outros 15 representam o Estado. “Isso quando a regra geral é um conselho paritário entre sociedade e Estado. A democratização ainda não chegou à Defesa Civil”, critica. Um flagrante da falta de participação social aconteceu durante a 1ª Conferência Nacional de Defesa Civil, em 2010. “A conferência teve 1,5 mil delegados, sendo mil do Estado e 500 da sociedade civil. Eu fui delegado por Santa Catarina e foi uma experiência inacreditável: o auditório estava dividido ao meio, com uma fila de mesas que não nos deixava chegar perto da mesa diretora dos trabalhos. A área com os representantes do Estado ficava perto da mesa diretora e, nós, da sociedade civil, ficávamos no fundo do salão”, lembra.

Conceito de prevenção

Já dissemos anteriormente que uma das recomendações do relatório da comissão do Senado foi enfatizar as ações de prevenção. Mas o que significa prevenção de desastres na visão dos senadores? Vejamos o que diz o relatório: “Quanto à prevenção, o foco é o desenvolvimento e a implantação de sistemas de monitoramento destinados a antecipar situações de desastre, de modo a minimizar as perdas humanas, além da identificação de necessidades de priorização de obras civis voltadas à minimização de riscos e prevenção de desastres”. Essa parece ser também a visão do Poder Executivo, que anunciou recentemente a criação do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), no âmbito do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). Instalado na cidade de Cachoeira Paulista (SP), o centro tem como objetivo desenvolver um sistema capaz de antecipar a ocorrência de desastres em todo o território nacional. Mas, como aponta Marcos Ferreira, predição não é prevenção. “Esse sistema criado pelo MCT faz a antecipação da informação de que vai haver uma precipitação forte. Mas de que adianta saber que vai chover se você não sabe para quem contar que vai chover, se não tem canais sociais organizados para isso? É preciso que, em cada bairro, o estado e a prefeitura apóiem a reunião dos cidadãos para se organizar e examinar os riscos da localidade e o que fazer se acontecer algo. Isso está previsto na Política Nacional de Defesa Civil: são os Núcleos Comunitários de Defesa Civil [Nudecs]”. Segundo ele, essa atribuição, em alguns estados, é repassada para os Conselhos Comunitários de Segurança (Consegs). “Isso é um equívoco, porque o flagelado não é assunto de polícia”.

Além disso, como aponta Carlos Machado, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) e ordenador do Centro de Estudos e Pesquisas para a Redução de Desastres, apenas cerca de 1,5 mil municípios brasileiros – aproximadamente 27% do total –  têm coordenações de Defesa Civil com registro oficial na Secretaria Nacional de Defesa Civil. “E isso não quer dizer que haja pessoal suf iciente. Muitos têm a estrutura administrativa, mas não significa que disponham de recursos humanos, técnicos e financeiros suficientes”. Em muitos casos, a Defesa Civil constitui um gabinete de crise, criado para dar conta de um eventual desastre e desmontado logo depois.

Debate despolitizado

Segundo Norma Valencio, o gosto pelos sistemas de alerta é sintomático de uma visão tecnocrática e despolitizada a respeito da vulnerabilidade aos desastres. “Se reduz o fenômeno social: se avisa à pessoa que ela está vulnerável, como se o aviso fosse suficiente para que o outro escapasse do perigo. Tudo se passa como se aquele grupo que se viu forçado a habitar as bordas periféricas tivesse os meios para fugir do perigo, que, historicamente, foi negado a eles. Isso é muito cínico”, critica. Com isso, não são problematizadas questões como a necessidade de democratização do acesso ao solo, de ampliação do escopo dos serviços de saneamento e de regulação da especulação imobiliária. “Fica o discurso de que choveu mais em um dia do que o previsto para o mês, o que acaba desviando o debate”, aponta.

Ainda de acordo com a pesquisadora, tornou-se hegemônica a concepção de desastre como fruto da “crueldade” da natureza, traduzida no uso da expressão “natural” para designar os desastres por parte do poder público. “Acredito que chamar os desastres de naturais é um discurso ideológico com a intenção clara de dificultar o entendimento deles como fenômenos sociais, como se fôssemos reféns de fenômenos atmosféricos”, critica.

Mudanças climáticas

Também é comum encontrar no discurso dos meios de comunicação e do poder público sobre os desastres, a referência às mudanças climáticas, muitas vezes culpada pelo aumento da incidência e da magnitude dos desastres nas últimas décadas. Para a professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Dirce Suertegaray, é preciso ter cautela com esse argumento. Para ilustrar seu ponto de vista, ela cita o exemplo do que ocorre nas áreas de lavoura de arroz no sudoeste do Rio Grande do Sul. “Essa região, historicamente, tem uma característica de variabilidade climática, com períodos de muita seca. Ali houve uma expansão da lavoura de arroz, e ela exige muita água, que é bombeada dos rios. Isso faz com que o volume dos rios diminua muito. Num período normal de seca, os rios correm mais superficialmente, porque têm muito menos água por conta das lavouras”, diz a professora, que completa: “E o discurso é de que as mudanças climáticas estão fazendo com que os rios tenham menos água, sempre enfatizando o prejuízo da lavoura de arroz, que é de milhões. É até irônico”, constata.

Indústria dos desastres

Na área de prevenção de desastres, a persistência da lógica tecnocrática traduz-se no gosto pelas obras de grande porte.Isso, aliado à facilidade na liberação de recursos por ocasião de desastres, enseja, segundo Norma, o mau uso do dinheiro público e a corrupção. “A cada vez que é decretada situação de emergência em um município, ele opera em estado de excepcionalidade, ou seja, as obras não precisam de licitação e os atos públicos são menos fiscalizados”, explica. Assim, cria-se uma indústria associada aos desastres: “Com a construção de pontes superfaturadas, distribuição de refeições, colchões e cobertores para os abrigos. Tudo isso com as empresas beneficiadas pelos contratos contribuindo com caixinhas para campanhas de políticos”, afirma.

Presidente da Associação dos Desabrigados e Atingidos da Região dos Baús (Adarb), em Santa Catarina, Tatiana Richart, durante audiência pública na Câmara dos Deputados, em novembro de 2011, deu um exemplo de como os fundos de emergência criam oportunidades de lucro fácil para empresas de construção civil. Segundo ela, uma das comunidades da região – atingida por um desastre em 2008 – sofreu problemas de locomoção por mais de um ano por conta da destruição de duas pontes. “Elas finalmente foram reconstruídas, a um custo total de R$ 750 mil, mas caíram com menos de um ano de uso. Hoje, elas estão sendo reconstruídas por R$ 1,5 milhão pela mesma empresa que construiu as que caíram”.

Saúde nos desastres

Os desastres, como as enchentes e os deslizamentos, colocam enormes desafios para a saúde pública no Brasil, contribuindo para sobrecarregar ainda mais o SUS. Documento do Programa Nacional de Vigilância em Saúde Ambiental dos Riscos Decorrentes dos Desastres Naturais (Vigidesastres), do Ministério da Saúde, cita várias formas pelas quais os desastres podem afetar a saúde pública. Segundo o programa, os desastres acarretam, entre outras consequências, um número inesperado de mortes, ferimentos ou enfermidades, que podem exceder a capacidade de resposta dos serviços locais de saúde; danos à infraestrutura de saúde local; interrupção dos sistemas de produção e distribuição de água, bem como dos serviços de esgotamento sanitário, favorecendo a proliferação de doenças como a leptospirose; contaminação microbiológica devido a alagamentos de lixões e aterros sanitários; e a dissolução de comunidades e famílias geradas pela migração, desemprego, perda do patrimônio e mortes de familiares.

Garantir atendimento integral às populações afetadas por desastres, portanto, exige a articulação e integração dos mais diversos setores da saúde, como vigilância epidemiológica, sanitária e os serviços de atendimento. Segundo Guilherme Franco Netto, diretor do Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador do Ministério da Saúde (SVS/MS), emboraos desastres não sejam um fenômeno novo no Brasil, a atenção à saúde em desastres foi uma área negligenciada. Mas ele afirma que essa situação vem mudando nos últimos anos, e cita como um marco importante na área a criação, em 2005, de uma comissão dentro do Ministério da Saúde com o objetivo de gerenciar o atendimento emergencial nos estados e municípios acometidos por desastres. Segundo Franco Netto, a comissão, composta por representantes da SVS, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e da Secretaria de Atenção à Saúde (SAS), entre outros, tem como objetivo fazer a gestão integrada das ações de saúde durante os desastres.

Integração

De acordo com Franco Netto, no final do ano passado o governo federal deu outro passo importante no sentido de estruturar a assistência à saúde em situações de desastre, com a criação da Força Nacional do SUS. “Com isso, ficou estabelecido que os estados e municípios em situação de emergência de saúde pública, como desastres e pandemias, terão condição de acionar a Força Nacional do SUS, que combina esforços do nível mais estratégico do Ministério da Saúde, através da Secretaria Executiva, até a parte de atendimento de urgências e emergências”, afirma o diretor da SVS, completando: “Até então, todas
as áreas atuavam de maneira isolada. A vigilância fazia seu papel e a assistência fazia o dela. Com a Força Nacional, procuramos superar essa visão fragmentada e envolver todas as áreas da saúde durante uma emergência”. Segundo ele, o processo de estruturação e operacionalização da Força Nacional do SUS ainda é incipiente. “Acredito que em um prazo de três meses teremos o mínimo do mínimo estruturado. Já compramos hospital de campanha, estamos capacitando equipes de voluntários e adquirindo equipamentos. Ao longo de 2012, nos reuniremos com os municípios e estados para chegar ao final do ano com modelo estabelecido em todas as esferas de governo”.

Franco Netto ressalta ainda que o governo federal, por determinação da presidente Dilma Rousseff, começa a se movimentar para dar um caráter permanente e integrado às ações dos diversos ministérios envolvidos com os desastres. “Quando havia um desastre, se criava um gabinete de crise, em geral no âmbito da Casa Civil, que era dissolvido com o fim da situação de emergência”, diz. “Agora vamos ter um processo permanente. Houve recentemente uma reunião interministerial convocada pela Casa Civil para apontar o que cada ministério está fazendo na preparação e resposta a desastres, que será compilado em um trabalho integrado que vai passar a ser o referencial monitorado pela Presidência da República”, completa, dizendo ainda que isso sinaliza uma mudança na lógica das ações da União durante os desastres. “Até então, cada órgão tinha a sua regra e eles se juntavam para resolver os problemas concretos. A lógica agora é termos uma visão mais ampla. Isso vai nos obrigar a ter mais diálogo intersetorial”, acredita.

Planejamento urbano e saúde

Mas, se como afirma Guilherme Franco Netto, a área de assistência à saúde durante os desastres vem ganhando corpo dentro do ministério, o papel da saúde na prevenção de desastres ainda é pouco discutido, segundo o pesquisador da Ensp, Carlos Machado. “O setor saúde está muito ligado à resposta, reabilitação, recuperação dos serviços e reconstrução, mas sabemos que temos que ir além. Um desastre resulta da com condições de vulnerabilidade, que podem ser as condições de vida da população, ocupação do solo e planejamento urbano, por exemplo”, aponta. Franco Netto concorda: “Prevenção pressupõe fortalecer o diálogo do setor saúde com áreas de competência sobre os desastres, como planejamento urbano e meio ambiente. Ainda não nos alertamos para essa agenda. Nossos conselhos municipais de saúde participam muito pouco dos planos diretores. A saúde tem que participar desse processo de planejamento de ocupação do território, mas até mesmo nas instâncias de controle social estamos apenas iniciando isso”, avalia .

Para Carlos Machado, o SUS ainda precisa avançar muito na área de gestão da saúde nos desastres, e, para isso, é necessário ter acesso à formulação de políticas de planejamento urbano. Segundo ele, a maior parte dos serviços de saúde da região serrana, no estado do Rio de Janeiro, foi afetada pelo desastre do ano passado, sendo que mais da metade deles estava em áreas vulneráveis a deslizamentos e inundações. “Os serviços de saúde têm que estar onde estão as populações mais vulneráveis, mas quando os equipamentos de saúde são alocados sem uma política de planejamento urbano, sem uma política ambiental, eles acabam em áreas vulneráveis, o que significa que quando há um desastre a população fica sem um recurso essencial”, ressalta. Para garantir o atendimento durante os desastres é preciso que os serviços de saúde sejam alocados em locais seguros. “Não basta a saúde estar onde o povo está, tem que estar de forma segura. Isso quer dizer que o povo também não deveria estar lá”, conclui.

Código Florestal e desastres

Falar em prevenção de desastres implica falar em preservação ambiental. Os desastres na região serrana fluminense dão um exemplo claro dessa inter-relação: de acordo com um relatório de inspeção da área atingida pelas chuvas, do Ministério do Meio Ambiente, dos 657 deslizamentos ocorridos na época, apenas 50 (8%) aconteceram em áreas com vegetação nativa bem conservada. Os outros 607 deslizamentos aconteceram em áreas com alterações na vegetação causadas pela ocupação humana. No relatório da Comissão sobre Defesa Civil, os senadores reconheceram a importância da vegetação na prevenção de enchentes no meio urbano, sugerindo a criação de  uma lei que obrigue cada município brasileiro a manter, no mínimo, 20 metros quadrados de área verde por habitante, como forma de reduzir as enchentes.

Anistia

Entretanto, para os especialistas ouvidos pela Poli, as mudanças que estão sendo propostas para o Código Florestal podem ajudar a aumentar a frequência com que esses eventos ocorrem nas cidades brasileiras e inviabilizar medidas de recuperação de áreas que deveriam ter sido preservadas. É o que afirma o advogado Raul do Valle, do Instituto Socioambiental (ISA). Segundo ele, o novo Código, se aprovado, concederá anistia a quem tenha desmatado ilegalmente antes de 2008. “Essa é uma mudança grande em relação à legislação atual, que diz que todo proprietário tem a obrigação de manter parte de seu imóvel protegida. Esse princípio está sendo quebrado agora. Um grande perdão ambiental vai ser aprovado com essa lei, tanto no meio urbano quanto no meio rural”, afirma o advogado. Com isso, os assentamentos humanos em loca is pr opens os a enchentes e deslizamentos não terão que ser removidos para recomposição da cobertura vegetal, permanecendo o risco de que essas populações sejam afetadas por um eventual desastre. A anistia pode ter como efeito colateral a indução de novas ocupações em áreas como as margens dos rios e as encostas de morros. “Todas as áreas de habitação serão automaticamente legalizadas e pode acontecer disso incentivar novas ocupações, porque o reflexo da anistia é sempre de que vale a pena apostar contra a lei”, diz Raul.

Mudanças nos parâmetros

Outra alteração no Código Florestal, destacada pela professora da UFRGS, Dirce Suertegaray, é a mudança nos parâmetros de conservação das chamadas Áreas de Preservação Permanente (APPs), locais onde a vegetação nativa deve ser mantida por desempenhar a função de preservar os recursos hídricos e a estabilidade do solo. Exemplos de APPs são as margens de rios, áreas ao redor de nascentes, encostas de morros com declividade superior a 45 graus e topos de morros. O Código vigente estabelece parâmetros diferenciados de medição do que deve ser considerado APP nas margens de rios, que variam de acordo com a largura – de 30 metros para os cursos d’água com menos de 10 metros de largura até 500 metros para aqueles com mais de 600 metros de largura. Essa área, pela lei atual, deve ser medida a partir do nível mais alto dos rios, ou seja, durante as cheias. A modificação que está sendo proposta agora é fazer com que essa área seja medida a partir do leito regular dos rios.  “Leito regular é por onde o fluxo é normal, sem chuva. Se você muda o parâmetro para o leito regular, amplia a possibilidade de desmatamento e a impermeabilização do solo nas margens dos rios, aumentando o risco de inundações”, esclarece Dirce.

Segundo Raul do Valle, com essa flexibilização, a lei deixará de proteger áreas inundáveis, como, por exemplo, as várzeas, os igapós na Amazônia e o Pantanal, no Centro-Oeste do país. “Essas áreas são riquíssimas em biodiversidade e existem ecossistemas inteiros que dependem da matéria orgânica que esses locais depositam nos rios. Com as mudanças no Código Florestal, essas áreas não estarão mais protegidas”, diz.

Reserva legal

Raul alerta ainda que o projeto de lei que altera o Código Florestal, caso aprovado, também trará mudanças na legislação referente à reserva legal – áreas no interior dos imóveis rurais que devem ser preservadas como complemento às APPs na recarga de mananciais e na conservaçãoda biodiversidade, mas que não constituem acidentes geográficos, como as APPs. Nessas áreas, é permitido o manejo sustentável da vegetação, como a extração de madeira e de frutos. “Com a reserva legal, você tem um instrumento para garantir um mínimo de preservação, que, segundo estudos, deve ser de 30% da vegetação nativa para que ao longo da bacia hidrográfica haja vegetação não só ao longo dos rios, mas também nos pontos mais altos, onde são as recargas de aquíferos”, explica Raul.

Segundo ele, o projeto de novo Código prevê a possibilidade de que as APPs sejam computadas como reserva legal, reduzindo o percentual mínimo a ser preservado nos imóveis rurais para 20%. Com isso, a capacidade de retenção da água pela vegetação ficará comprometida, contribuindo para que ela chegue mais rapidamente e em maiores quantidades aos rios, causando enchentes no meio urbano, de acordo com o especialista. Além disso, aponta Dirce Suertegaray, a ausência de vegetação propicia a ocorrência de processos erosivos. “Com isso, os rios vão acumulando sedimentos, o que diminui sua profundidade e causa enchentes. É o que acontece, por exemplo, em Santa Catarina, onde os rios, por estarem carregados de sedimentos, chegam à planície transbordando porque o próprio canal não dá vazão”, explica.

Variabilidade climática

O pesquisador Christovam Barcellos, do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz) e coordenador do Observatório Clima e Saúde, aponta que as mudanças previstas no Código Florestal podem causar também um aumento dos eventos climáticos extremos. “Esse  Código aumenta o que chamamos de fragmentação da floresta. Ao invés de preservar uma grande área florestada, o Código permite que se faça um desmatamento seletivo, com pequenas amostras de floresta espalhadas. Isso aumenta avariabilidade climática”, aponta Barcellos. O pesquisador explica que onde há campos enormes de monocultura, rodeados por pequenas ilhas de vegetação, existem diferenças na capacidade de retenção da umidade e calor. “Se você tem calor de um lado e frio do outro, o resultado é o vento, que é provocado pela diferença de pressão entre um lugar com acumulação de calor e outro sem esse acúmulo. Ventos intensos e rápidos podem intensificar eventos extremos”.

Modelo de desenvolvimento

Segundo Barcellos, o projeto de revisão do Código Florestal favorece os proprietários rurais ligados ao agronegócio, com a ampliação da área passível de ser utilizada comercialmente. “É preciso repensar esse modelo de ocupação do território, que é devastador. Temos que parar de conquistar áreas novas e refazer as áreas antigas”. Para ele, a saúde tem um papel importante na discussão sobre modelos de desenvolvimento, no qual a revisão do Código Florestal se insere. “O setor saúde tem tido o papel de ficar responsável pelas consequências do modelo, com pouca capacidade de influir sobre as políticas. A saúde tem que mostrar o lado negativo desse modelo de desenvolvimento e apresentar alternativas, mas ainda estamos muito alheios a isso”, conclui.

O exemplo cubano

Embora o Japão muitas vezes sirva como referência quando o assunto é eficiência em Defesa Civil – principalmente após a atuação do governo japonês no desastre na usina nuclear de Fukushima – não é necessário ir tão longe e nem procurar entre os países ditos desenvolvidos para encontrar bons exemplos na área. Frequentemente atingida por furacões, Cuba apresenta números reduzidos de óbitos durante esses eventos, demonstrando que a “crueldade” da natureza não é a única responsável pelos danos causados por desastres.  No Em-Dat, banco de dados sobre desastres da Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, e centro colaborador da Organização Mundial da Saúde (OMS), é possível encontrar alguns exemplos: o furacão Noel, em outubro e novembro de 2007, afetou quase 200 mil pessoas em diversas cidades de Cuba, matando apenas uma. Na vizinha República Dominicana, o mesmo furacão, embora tenha atingido menos da metade do número de pessoas de Cuba (80 mil), causou a morte de 129.

Desastres na Rio+20

Os desastres ambientais devem ser um dos pontos focais dos debates durante a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável – Rio+20. Pelo menos é o que diz o site da ONU sobre o evento, que coloca os desastres como um dos temas críticos para a viabilidade da “economia verde”. Na Rio+20, a ideia é fazer uma avaliação da implementação do Marco de Ação de Hyogo, acordo firmado entre os países participantes da Conferência Mundial sobre Redução dos Desastres, em 2005. O documento, do qual o Brasil é signatário, estabeleceu um plano de ação de dez anos visando a redução do risco de desastres, com cinco prioridades: fortalecer a prevenção aos desastres; reduzir fatores fundamentais do risco (entre os quais a ocupação de áreas ambientalmente frágeis); fortalecer a preparação para os desastres (elaborando planos de contingência e simulados, por exemplo); fomentar a produção e divulgação de conhecimento sobre desastres; e promover a identificação das áreas vulneráveis, com a elaboração, por exemplo, de mapas de risco. A ONU também pretende pactuar na Rio+20 novos planos de ação contra os desastres para além do prazo de vigência estipulado para o Marco de Ação de Hyogo, que expira em 2015.

Conhecimento para a redução dos desastres

Criado em 2010 com o objetivo de ser um centro de pesquisa e ensino na redução do risco de desastres, o Centro de Estudos e Pesquisas em Desastres (Ceped) é uma iniciativa que envolve a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a Universidade Federal Fluminense (UFF) e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).  A Política Nacional de Defesa Civil previa a implantação de 12 Ceped’s no país até o ano 2000, mas, até agora, apenas três foram criados: além do Rio de Janeiro, existem centros em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul.

“O Ceped está sendo estruturado para dar conta de todas as questões que envolvem os desastres, mas, para o setor saúde, o foco está principalmente nas ações de resposta, na reabilitação dos serviços básicos de saúde e na reconstrução”, diz seu coordenador, Carlos Machado. Segundo ele, a estruturação de centros de pesquisa com o Ceped também deve contribuir para promover uma cultura de prevenção aos desastres no país. “Não há uma boa capacidade de redução de riscos sem produção de conhecimento. Quase não temos profissionais formados no país para a área de desastres. Sem a produção de massa crítica não tem como falar em prevenção”. Entre os projetos para os quais o centro já obteve recursos está o de criação de material didático para capacitação de Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e de técnicos em Vigilância em Saúde na área de desastres, projeto que conta com a colaboração da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz).

Guilherme Franco Netto explica que o projeto faz parte de uma estratégia para envolver os profissionais de atenção básica na área. O professorpesquisador da EPSJV, Mauricio Monken, conta que o curso, em fase de elaboração, terá 90 horas-aula e será oferecido pelas unidades da Fiocruz no Rio de Janeiro, Manaus, Pernambuco e no Pantanal, além de uma instituição ainda não definida em Santa Catarina. “Os desastres vão ser uma atribuição desses profissionais também. Isso não estava firmado como conteúdo para esse tipo de trabalhador, mas é uma área que está se desenvolvendo agora”, diz Monken. Segundo Carlos Machado, esses dois profissionais foram escolhidos por atuar de maneira mais próxima das comunidades vulneráveis aos desastres. “Qualificar esses profissionais é vital para que eles aprendam a se proteger e levem esse conhecimento para a comunidade, para que, na hora do desastre, quando as comunicações e as vias de acesso estiverem interrompidas, eles possam contribuir para dar uma primeira resposta”.

Artigo socializado pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)

EcoDebate, 04/04/2012

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