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Chuvas no Rio de Janeiro. O que podemos aprender com isso? Entrevista com João Whitaker

Mais de 800 pessoas mortas e outras tantas desaparecidas. Este é o saldo de mais uma tragédia em decorrência das chuvas extremas de verão. Um evento que vem se tornando uma rotina nos últimos anos, dado os casos de Blumenau, Niterói, Angra dos Reis e Campos dos Jordão. Todas estas cidades poderiam ter nos deixado uma lição, mas não foi isso que aconteceu. “Esta tragédia foi anunciada, pois acontece esse tipo de evento todos os anos em diversos lugares com as mesmas características. O que não é anunciado é onde elas vão ocorrer”, explica o urbanista João Whitaker na entrevista que concedeu à IHU On-Line por telefone. “É possível realizar ações de revegetação, de contenção, obras de drenagem, que permitam a ocupação em áreas de encostas. O problema no Brasil é que a urbanização desses locais ocorre sem uma política eficaz de controle da ocupação do território. No Brasil a política de expansão urbana se dá marcada por liberalidades”, apontou.

João Sette Whitaker Ferreira é graduado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo e em Economia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É mestre em Ciência Política e doutor em Arquitetura e Urbanismo pela USP. É vice-presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil e professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie e da USP. É autor de O mito da cidade global: o papel da ideologia na produção do espaço urbano (Petrópolis: Vozes, 2007).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Podemos dizer que essa tragédia na região serrana do Rio de Janeiro era anunciada?

João Whitaker – Sim, podemos dizer isso. Na verdade, esta tragédia foi anunciada, pois acontece esse tipo de evento todos os anos em diversos lugares com as mesmas características. O que não é anunciado é o local em que vão ocorrer. Mas que as tragédias ocorrem não é novidade. Nos últimos anos tivemos desastres naturais como esse em Niterói, Campos do Jordão, Blumenau…

IHU On-Line – Quais as principais características da região atingida pelas chuvas? Essa é uma área de Mata Atlântica, certo? Como esse bioma influenciou para a decorrência da tragédia?

João Whitaker – O que nós temos aí é um misto de situações. Não é propriamente uma responsabilidade das características geográficas e geológicas da região. A tragédia é muito mais resultado do mau gerenciamento da ocupação do território. A rigor, não existe, com algumas exceções, o impedimento técnico para que você tenha uma ocupação de encostas. A questão é que a ocupação das encostas precisa ser feita de maneira controlada, regulada, fiscalizada, acompanhada e, vamos dizer, promovida como parte da política de urbanização de um determinado município. Se um município, por exemplo, tem características turísticas, e é um município montanhoso, com encostas, e que, portanto, pode ter hotéis, pousadas, restaurantes ou assentamentos habitacionais em áreas íngremes, deve possuir, então, uma situação política de controle do território com ações que garantam essas construções com segurança.

Há estudos feitos pelo Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos – IPP, de São Paulo, sobre isso. É possível realizar ações de revegetação, de contenção, obras de drenagem, que permitam a ocupação em áreas de encostas. O problema no Brasil é que a urbanização desses locais ocorre sem uma política eficaz de controle da ocupação do território. No Brasil a política de expansão urbana se dá marcada por liberalidades: a primeira é a liberalidade irresponsável, que ocorre quando o Estado abandona. Quando as pessoas não têm alternativas de moradias, nem lhes são oferecidas pelas políticas de habitação ou pelo mercado (que não trabalha para baixa renda), a população mais pobre vai ocupando áreas que, muitas vezes, são indevidas para ocupação, porque não fazem parte de uma política de urbanização.

O morador que vai fazer a sua “autoconstrução” na periferia brasileira não tem obrigação de ser um geotécnico ou um engenheiro. Ele está construindo aquilo como uma solução perante a falta de alternativas, com o saber que ele tem. Essa é uma irresponsabilidade do Estado, de não controlar, não legislar, não fiscalizar, não prevenir as áreas de ocupação informal dos mais pobres, que é o grupo que sofre mais drasticamente os resultados dessas tragédias no momento em que nós temos uma chuva acima do esperado.

“O morador que vai fazer a sua ‘autoconstrução’ na periferia brasileira não tem obrigação de ser um geotécnico ou um engenheiro”

A segunda irresponsabilidade é para com os setores mais ricos das cidades, onde é feito planejamento. Então, no outro extremo, portanto, existe a liberalidade para com o mercado imobiliário e com o setor da construção civil. As cidades do estado do Rio de Janeiro têm uma mistura desses dois casos: por um lado, há ocupações informais em encostas e locais indevidos por falta de políticas de controle de território, do abandono absoluto em relação à população de baixa renda; e, por outro lado, no setor formal há uma liberalidade cuja regulamentação não é rigorosa o suficiente, portanto, ela não é tecnicamente suficientemente bem feita para garantir segurança em situações de ocorrência de chuvas acima da média.

IHU On-Line – E como pensar a reconstrução das cidades depois desses eventos?

João Whitaker – O que é tradicional no Brasil é que isso é reconstruído nos mesmos padrões que foram aqueles geradores destas catástrofes. Existem duas ações que precisam ser adotadas urgentemente pelo conjunto dos municípios brasileiros, e, sobretudo pelo conjunto de municípios que tem situações de risco acentuadas. A primeira ação visa à reconstrução com a participação absoluta do Estado do ponto de vista técnico para fazer as obras e captar recursos do governo federal e dos governos estaduais. Assim, é possível fazer as obras urbanas de contenção e de adaptação do meio físico para poder aceitar os assentamentos sejam eles hotéis, casas de pequeno e grande porte, para pessoas de alta ou baixa renda, que a cidade pretende ter em encostas.

A segunda ação imediata foi de fiscalização. Esta foi realizada por alguns municípios no ano passado, depois das tragédias em Niterói, e agora eles estão colhendo os frutos porque não foram vítimas de grandes tragédias. Nesse sentido, posso citar Belo Horizonte e São Bernardo do Campo. Esta é uma ação política constante, regular, ao longo do ano, de fiscalização, levantamento, cadastramento, hierarquização das áreas de risco. Isso fez com que políticas diferenciadas fossem aplicadas, como obras de contenção e de drenagem que solucionem o risco (seja ele baixo, moderado ou alto). É preciso, portanto, fiscalizar de forma permanente, pois sabemos que as pessoas ocuparam novas áreas depois que são remanejadas de áreas de risco. É preciso fiscalizar sempre.

IHU On-Line – Há dez anos existe o Estatuto da Cidade que, entre várias funções, regula a ocupação do solo. Ele está sendo cumprido pelos municípios?

João Whitaker – Não, você tocou em uma questão muito importante. Nós temos o Estatuto da Cidade completando dez anos e ele, na prática, quase não foi aplicado. Eu diria, inclusive, que de uma maneira intensa, integrada, sistêmica e completa ele não foi aplicado em nenhum município no Brasil. Alguns municípios aplicaram um ou outro instrumento, mas são instrumentos que têm muita força política, são de enfrentamento à lógica do mercado imobiliário. Vou dar dois exemplos: a cidade de São Paulo, apesar de ser a maior do Brasil, a terceira maior do mundo, ser o pulmão econômico do país e de ela ter 40% da sua população morando em situação imprópria, o estatuto ainda não foi regulamentado. O IPTU progressivo poderia combater áreas vazias em áreas centrais, lotes vazios com infraestrutura em área central.

Segundo exemplo: muitos dos instrumentos que visam regulamentar, combater, criar alternativas de moradias deveriam ser feitos para serem eficazes de maneira integrada. Nós temos que ser honestos e constatar que o Estatuto da Cidade hoje tem um saldo extremamente negativo para o Brasil, porque ele mostra que o país ainda não tem uma conscientização sobre o urbano, sobre a questão das cidades. Também sobre a questão da democracia urbana como elemento necessário para que nosso próprio futuro urbano tenha sido assimilado pela população.

IHU On-Line – O que essa tragédia pode nos ensinar?

João Whitaker – Infelizmente ela não vem ensinando nada, porque, se ela ensinasse, nós já teríamos aprendido com Niterói no ano passado, com o desastre em Campos do Jordão e assim por diante. É verdade que nós temos, a partir destes desastres, algumas melhorias. Alguns municípios passaram a adotar uma atitude diferente e políticas de combate à situação de risco iminente, então foi um avanço. Agora, nós temos os deputados querendo aprovar uma lei que criminalize os governantes que tenham em seus municípios situações deste tipo ocorrendo. Pouco a pouco, então, nós vamos avançando. Porém, ainda é em um ritmo muito lento e insuficiente.

IHU On-Line – Há solução para essa questão das moradias em encostas de morros e rios? Modificar o modelo de ocupação das cidades brasileiras ainda é possível?

João Whitaker – Sim. Nas médias e pequenas cidades ainda é totalmente possível mudar o modelo de ocupação. Porque nós temos nessas regiões um grande potencial de crescimento, com muitos terrenos vagos em áreas centrais, assim como muita capacidade de urbanização. Infelizmente, as cidades pequenas e médias do Brasil reproduzem o padrão de urbanização, de uso do solo, de descaso com os córregos, dando prioridade aos automóveis, que é o padrão das grandes cidades.

“Nas médias e pequenas cidades ainda é totalmente possível mudar o modelo de ocupação”

Esse é o grande problema. Precisamos mudar essa lógica, mas é claro que falar em mudanças em uma cidade como São Paulo ou Rio de Janeiro é um pouco mais difícil. Porém, cidades menores como Campinas, Belo Horizonte e Fortaleza ainda têm total capacidade de aplicar o Plano Diretor e de recuperar sua urbanização de forma mais democrática e mais justa do ponto de vista social e menos impactante ao meio ambiente.

IHU On-Line – Diante de programas de incentivo a financiamento de moradias, como o Minha Casa, Minha Vida, quais são os desafios que o Brasil precisa enfrentar: produzir casas ou planejar cidades?

João Whitaker – Na verdade, nós precisamos planejar as cidades e o que precisa ficar muito claro é que a prerrogativa da política de ocupação de território é municipal. Portanto, são os municípios que devem definir onde estarão essas casas, de que maneiras elas vão enfrentar os interesses dominantes que mantêm terrenos vazios, a especulação imobiliária, o poder econômico do mercado da construção civil, de tal forma a construir cidades que sejam de fato sustentáveis. Então, precisamos, evidentemente, do financiamento federal que já vem ocorrendo. No entanto, a maneira como se dá essa interface entre o governo federal, a política de financiamento, os municípios e o mercado é uma interface que precisa ser trabalhada de maneira mais efetiva. O grande desafio é este.

(Ecodebate, 31/01/2011) publicado pelo IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.

[IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

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