EcoDebate

Plataforma de informação, artigos e notícias sobre temas socioambientais

Artigo

Questão de tempo, por Míriam Leitão

[O Globo] Chuvas despencam em volume espantoso sobre áreas do Sudeste, fazendo mais de duas centenas de mortos só na Região Serrana do Rio. Na Austrália, vive-se a maior enxurrada em 120 anos. O Ibama passa por mais uma crise — a terceira — provocada pela exigência de licenciamento da hidrelétrica de Belo Monte. Assuntos separados? Não, partes da mesma insensatez.

Os cientistas estão avisando há tempos que os fenômenos naturais, que sempre estiveram conosco, como tempestades e secas, vão acontecer com mais frequência e com mais intensidade. No ano passado, o caudaloso, abundante e aparentemente infinito Rio Negro, na Amazônia, enfrentou uma seca que o transfigurou. As imagens que chegavam de seu leito seco em algumas áreas eram inacreditáveis para quem já o viu na cheia. Como outros rios amazônicos, ele tem oscilações fortes de volume de água, mas o extremo a que chegou na seca do ano passado foi impressionante. Anos atrás, uma seca na Amazônia exibiu o solo da região mais úmida do Brasil rachada como se fosse o Nordeste. É nessa região que o governo pretende construir a maioria das 61 novas usinas hidrelétricas, que, segundo matéria publicada no GLOBO, vão provocar o desmatamento de 5.300 km de florestas só nas áreas dos reservatórios e das linhas de transmissão. Uma dessas usinas é a mais emblemática e mais polêmica: a hidrelétrica de Belo Monte. Ontem, o presidente do Ibama, Abelardo Bayma, pediu demissão alegando motivos pessoais, mas a informação do Blog Político da “Época” é que ele saiu por discordar da licença de Belo Monte. Já houve outros episódios de desabamento no Ibama por causa da mesma hidrelétrica.

As cidades brasileiras não estão preparadas para o momento atual, o que dirá do futuro que os climatologistas prenunciam e alertam. A arquiteta e urbanista da Unicamp Andrea Ferraz Young me disse ontem que tudo foi feito errado no passado na ocupação do espaço urbano:

— Nunca foi considerado o funcionamento do sistema de margens dos rios e das várzeas, a vegetação foi suprimida sem planejamento. Toda a lógica das bacias e microbacias foi ignorada. As margens dos rios que deveriam ter matas ciliares foram cimentadas e concretadas. Os rios que serpenteavam foram transformados em canais retos. As galerias foram mal dimensionadas. O lixo obstrui tudo. Aí, quando vem a chuva, o solo não consegue absorver a água, e aumenta o volume que cai nos canais, que eram rios. Por não ter obstáculos, a água corre com mais velocidade e se transforma em enxurrada.

Ela acha que diante do aviso dos climatologistas de maior intensidade dos eventos extremos, é preciso repensar seriamente o espaço urbano. Uma das ideias mais óbvias e de mais difícil execução é a remoção de quem mora em área de risco:

— É preciso criar dentro das cidades áreas verdes para que o solo possa absorver a água, reduzindo o impacto da chuva, e, nas secas, elevar a umidade dos centros urbanos.

Tudo parece simples e é adiado. Só que o país corre contra o tempo. A Austrália parece um espelho avançado dos riscos que corremos com as mudanças climáticas. Teve quatro anos de secas extremas, consideradas as piores da história do país. Agora tem uma enchente que provocou em algumas áreas fenômenos chamados de “tsunami interno”. Brisbane, a terceira maior cidade do país, ficou submersa. O prejuízo já se conta em bilhões de dólares e o governo alerta que a população se prepare para o pior.

É neste contexto global de mudança do regime hidrológico que se pensa em construir às pressas e a manu militari hidrelétricas na nossa parte da maior floresta tropical do planeta. Belo Monte para ser construída terá que acabar com o que é hoje chamado de a Grande Volta do rio Xingu. Vai remover mais terra do que o necessário para fazer o Canal do Panamá. Terá uma instabilidade já prevista de geração de energia. A capacidade instalada será de 11 mil megawatts, na média pode ser de 4.000, se tanto. Mas pode-se chegar a apenas mil megawatts em alguns períodos do ano. Não estão bem dimensionados os custos fiscais, o governo estatizou o risco econômico através das empresas, do financiamento e dos fundos de pensão. Já os riscos ambientais não podem ser devidamente avaliados porque cada vez que o Ibama tenta fazer isso rolam cabeças. Foi assim que aconteceu em dezembro de 2009 com o então diretor de licenciamento Sebastião Custódio Pires e com o coordenador de infraestrutura e energia Leonildo Tabaja. Logo depois, em janeiro de 2010, o Ibama foi chamado à Casa Civil e enquadrado. Que o licenciamento saísse. Publiquei aqui neste espaço no dia 17 de abril, na coluna “Ossos do Ofício”, a reprodução dos documentos em que o Ibama foi simplesmente atropelado para dar a licença prévia. Agora querem a licença de instalação da mesma forma. A construção de Belo Monte enfrenta oito ações do Ministério Público.

Que país é este, que mesmo diante dos alertas da Natureza de que todos os riscos ambientais precisam ser bem avaliados porque o clima está mudando de forma acelerada, acha que se deve soterrar as dúvidas com uma barragem de autoritarismo? Que país é este, que acha que pode continuar ocupando o espaço urbano sem planejamento, não corrigir os erros do passado e contratar a repetição de tragédias? Ontem, o Bom Dia Brasil mostrou que moradores estão voltando a morar no Morro do Bumba, em Niterói, que desabou porque era uma favela feita sobre um lixão. Que país canta “Às margens do Ipiranga”, mas soterra o Ipiranga sobre concreto, como fez com inúmeros outros rios, córregos, riachos? Se você mora em tal país, está na hora de exigir que ele comece a mudar. É uma questão de tempo.

Texto no Blog de Mírian Leitão, em O Globo.

EcoDebate, 14/01/2011


Compartilhar

[ O conteúdo do EcoDebate é “Copyleft”, podendo ser copiado, reproduzido e/ou distribuído, desde que seja dado crédito ao autor, ao Ecodebate e, se for o caso, à fonte primária da informação ]

Inclusão na lista de distribuição do Boletim Diário do Portal EcoDebate
Caso queira ser incluído(a) na lista de distribuição de nosso boletim diário, basta clicar no LINK e preencher o formulário de inscrição. O seu e-mail será incluído e você receberá uma mensagem solicitando que confirme a inscrição.

O EcoDebate não pratica SPAM e a exigência de confirmação do e-mail de origem visa evitar que seu e-mail seja incluído indevidamente por terceiros.

One thought on “Questão de tempo, por Míriam Leitão

  • A Tragédia da Tragédia!

    Conforme tenho publicado em outros artigos que escrevo, caminhamos invariavelmente para o Comunismo Capitalista, o Brasil não parece seguir no caminho do amadurecimento político e cívico no momento em que permite que todos os políticos sem exceção exerçam seus cargos em causa própria. Seria muito interessante vermos as leis serem feitas, executadas e fiscalizadas para a coletividade e não para favorecimento de uns em detrimento de outros. Gostaria muito de ver uma obra concluída que custasse aquilo que ela vale e não aquilo para o qual a verba foi aprovada e executada com um décimo do seu orçamento.

    A verdade é que desta vez o governo do estado e a presidência não podem dizer em momento algum que a culpa é do governo anterior, assim como sabemos que estes primam por suas práticas assistencialistas para a camada da população mais pobre onde ainda que digam aos quatro ventos que fazem um Brasil melhor os serviços prestados até para estas pobres criaturas os serviços são de muito má qualidade, vide saúde publica, educação e outros serviços. Portanto quando vemos estas tragédias sabemos que elas têm um sobrenome que são os partidos em questão assim como seus votantes das camadas mais baixas que trocam seus votos por um churrasquinho no fim de semana.

    Há que sermos solidários sem esquecermos quem de verdade são os nossos inimigos declarados, em um país onde se deixa faltar gêneros alimentícios para suprir a necessidade de superávit de exportações e compramos no mercado local os produtos de primeira necessidade pelo dobro do preço que é vendido no exterior não me parece ser um país sério, vide o preço, por exemplo, da carne de primeira que beira os R$ 18,00, pergunto então: Os miseráveis deixaram de ser pobres, mas riem de quê?

    É sabido que não é a vegetação que segura os deslizamentos, mas ajuda bastante, afinal por raízes mais profundas que existam nas matas pouco ou nada existe nestes terrenos arenosos onde se segurarem. Evidentemente que o expansionismo urbano é a maior causa das tragédias dos últimos tempos e estão longe de terminarem já que as “águas de março” nem mesmo chegaram, a outra pergunta é o que os responsáveis por nossa segurança e modo de vida estão fazendo para nos salvaguardar, ao mesmo tempo em que podemos perguntar por que não existem planos de emergência adequados para tal? Onde estavam as forças armadas nos primeiros momentos que foram fundamentais para o salvamento de vidas? Esperando o governador voltar de suas férias em Paris e a Srª Presidente sobrevoarem de helicóptero o local para darem seu aval? Algum deles foi ao Haiti para mandar nossas tropas de campanha para lá?

    Pior do que tudo isso é saber que se a Srª Dilma fizer um governo igual ao anterior deverá ficar mais quatro anos e logo após virá novamente o Luiz Inácio com a sua “tremenda” popularidade de 80 e tal %, de outra forma e na suposição de que faça uma primeira gestão ruim, assim mesmo virá o Luiz Inácio da mesma forma por mais oito anos. O que nós Brasileiros descontentes e inconformados precisamos é fazer oposição efetiva a este governo, declaradamente dizermos que não queremos suas políticas assistencialistas e outros que só denigrem nossa imagem internacionalmente. (É necessária uma tragédia nacional para que fique mais evidente a falta de compromisso com a vida, mas sim ter sobreviventes com assistencialismo).

    Mas advirto que para que isso aconteça é preciso antes que todos nós tenhamos em mente que não podemos fazer negócios escusos, levar a mínima vantagem que seja em detrimento de outrem, que devemos acima de tudo e de todos fiscalizar nossos semelhantes em suas atitudes e denunciá-los sempre que possível, sem medo de sermos vistos como Alienígenas ou marginais só porque queremos ter e fazer as coisas da forma correta. Enquanto não tivermos essa postura e mudarmos primeiro em nós nossas atitudes, para com isso mostrar também que não aceitamos a corrupção no seu seio de origem que é o poder político, não teremos como mostrar para as gerações que aí estão que existe uma luz no fim do túnel que não seja o trem vindo em nossa direção.

    Ana Paula de Carvalho

Fechado para comentários.