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Mídia & Aborto: Debate farisaico, artigo de Alberto Dines

[Diário de S.Paulo] Este debate sobre o aborto é falso, dissimulado, hipócrita. Mascara uma questão de grande relevância e encobre um problema institucional que está no cerne da nossa fragilidade republicana. Dilma Rousseff, José Serra e Marina Silva manifestaram-se sobre a interrupção da gravidez de forma semelhante ao longo do primeiro turno e todos na esfera do “respeito à vida” que tanto agrada ao feixe de confissões religiosas cristãs.

O problema do aborto diz respeito à saúde pública, sobretudo em países dominados pela corrupção e pelo desapego às leis onde vale o “vale tudo”. Descriminalizado ou não, o aborto continua sendo praticado aberta e impunemente na vasta rede informal de atendimento médico.

O que deve sair imediatamente do debate eleitoral é esta fingida religiosidade que leva Deus aos palanques, macula as mais íntimas opções espirituais do eleitor e abala gravemente os fundamentos da nossa democracia – teoricamente isonômica, tolerante, aberta, inclusive aos agnósticos, descrentes e ateus.

Teocracia cega

O secularismo, intrinsecamente ligado ao ideal democrático e republicano, foi seriamente comprometido quando em 2009 o presidente Lula, acompanhado pela candidata in pectore Dilma Rousseff, encontrou-se com o Papa Bento 16 na Santa Sé e assinou uma Concordata que tentou manter secreta, depois minimizou e, em seguida, foi obrigado formalizar. Este foi o pecado original aceito pelas confissões da cepa luterana, certas de que teriam suas compensações. E tiveram: a enxurrada de concessões de emissoras de rádio e TV que distorcem e comprometem o equilíbrio do sistema brasileiro de radiodifusão.

Não obstante, a sociedade brasileira novamente avança em direção ao espírito de Guerra Santa justo às vésperas do feriado nacional de 12 de outubro, data da padroeira do Brasil. Em outras ocasiões produziram-se confrontos que não honram nossa temperança e capacidade de convivência.

Diante do explosivo coquetel composto por altas doses de fanatismo político-eleitoral e igual quantidade de fervor religioso, não nos resta outra alternativa senão a de encarar, proclamar e empreender uma imperiosa e inadiável marcha rumo ao Estado laico. Esta é questão que deveria ser levada aos candidatos e discutida abertamente por eles.

Religião é assunto de foro íntimo, tirá-la desta condição superior para colocá-la no horário eleitoral é desrespeitá-la no que tem de mais elevado. Quando a crença converte-se em clericalismo, a etapa seguinte é a teocracia avassaladora, cega, tirânica. Não há outra opção, o mundo islâmico está aí para comprová-lo, apesar das exceções na Turquia e Líbano.

Grande demais

Israel vai na mesma direção, a despeito da ojeriza inicial da maioria dos religiosos judeus em aceitar um Estado que não fosse criado por ação do Messias. Cercado de inimigos, isolado pela intransigência em admitir a convivência com um Estado palestino, Israel enfrenta neste momento uma grave crise doméstica produzida pela coalizão da direita com os religiosos que pretende obrigar os que desejam obter a cidadania israelense a jurar fidelidade a um “Estado judaico e democrático”.

Se judaísmo for definido como cultura ou civilização, tudo bem, mas no caso é religião e um estado religioso não pode ser democrático.

O “parceiro estratégico” do governo brasileiro, Nicolas Sarkozy, pretendendo ser fiel às tradições seculares do republicanismo francês, não vacilou e proibiu o uso pessoal de símbolos religiosos em locais públicos (burka islâmica, kipá judaica e crucifixos ostensivos).

Medida extrema, antipática, incontornável. Deus é grande demais para ser enfiado num míssil nuclear. Ou enlatado pelo marketing político.

Alberto Dines é jornalista, fundador do Observatório da Imprensa.

Artigo originalmente publicado no Diário de S.Paulo.

* Colaboração de Claudio Estevam Próspero para o EcoDebate, 11/10/2010

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2 thoughts on “Mídia & Aborto: Debate farisaico, artigo de Alberto Dines

  • Alberto Dines, pena que as cabeças que “mandam” nesse pais, não conseguem ter essa visão.
    Com certeza o aborto não é assunto para palanques eleitoreiros nem tão pouco para disputa de credos.É sim uma questão de saude pública, mesmo porque além das clandestinos, temos os as clínicas que fazem aborto por um preço elevadíssimo, assim quem pode paga, quem não pode…….Depois vai para o SUS tratar as infecções, enfim…..esse assunto tem que ser tratado com mais respeito.
    E….reforma política urgente.
    Alice Bragato- movimentos sociais.

Fechado para comentários.