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Crise de alimentos? artigo de William Luiz da Conceição


[Correio da Cidadania] Há mais de quatro meses o mundo se vê apreensivo por conta de uma supostamente grave e aguda crise de alimentos, que afeta principalmente os países taxados como “subdesenvolvidos ou atrasados”, mesmo tendo estes as maiores áreas plantáveis do mundo. Segundo o relatório de Direitos Humanos da ONU, mais de 100 mil pessoas, em especial crianças e idosos, morrem de fome todos os dias.

No Brasil, além do aumento no preço de alimentos básicos e mais utilizados pela maioria da população, como o arroz e o feijão, parece que o fantasma do passado chamado inflação começa a atormentar novamente. Num supermercado em Joinville, um quilo de feijão “carioquinha” chegou a custar 10 reais no mês de julho.

A grande mídia, principalmente a Rede Globo e seu jornalismo, omite os debates acerca desse problema de alimentos realizando matérias superficiais que mais confundem do que esclarecem a população, informando que o problema é de falta de alimentos, o que não é verdade, porque a produção mundial cresceu 4% na safra 2006/07 e a produção de milho cresceu 24% em todo o planeta. “Com os recursos naturais que temos, bem como a produção já disponível, poderíamos alimentar sem problemas 12 bilhões de pessoas. Quase o dobro da população mundial atual, que é de 6,2 bilhões”, comenta o presidente da FAO, Jacques Diouf. Então, quais os verdadeiros motivos para essa “crise de alimentos”?.

A crise da produção de alimentos é conseqüência da liberação geral do comércio de produtos agrícolas, possibilitando que as empresas transnacionais como Bunge, Monsanto, Cargill, ADM, Nestlé, Unilever, Syngenta, Coca-Cola, Parmalat, Danone, Ralston Purina e outras controlem a produção e o comércio dos principais produtos agrícolas (sementes, fertilizantes e maquinários). É também fruto das políticas neoliberais iniciadas na década de 90 e fortalecidas nos governos FHC e Lula, que estão tirando a capacidade do Brasil de produzir alimentos que nossa população necessita graças a uma política voltada ao agronegócio e à monocultura, principalmente da cana-de-açúcar e da soja para exportação, e tendo o mercado (multinacionais, latifundiários e especuladores) controlado as bolsas de produtos agrícolas, de compra e venda atual, possuindo assim o poder de manipular os preços de alimento básicos, sem benefício algum aos pequenos e médios agricultores e também aos camponeses (maiores produtores de alimentos, responsáveis por cerca de 65% do total consumido internamente). São esses e os mais pobres que acabam como as maiores vítimas mundiais.

“A fome e a desnutrição não são efeitos de fatalidade ou de eventos geográficos. Ela é resultado da exclusão de milhões de pessoas do acesso à terra, à água, às sementes, dos conhecimentos e bens da natureza para produzirem sua própria existência. Ela é resultado das políticas impostas pelos países desenvolvidos, por suas transnacionais e seus aliados nos países pobres do sul, na perspectiva de manter a continuidade da hegemonia política, econômica, cultural e militar sobre o atual processo de reestruturação econômica global”. Assim declara o relator de direitos da alimentação das Nações Unidas, sr. Jean Zigler.

Ainda no atual momento, discutem-se os problemas e contribuições dos agrocombustíveis na crise e, segundo o relator da ONU para os Direitos Humanos, “a expansão do cultivo dos agrocombustíveis é uma temeridade, substitui os alimentos, eleva os preços e se constitui num crime contra os pobres”. Na região centro-sul do Brasil, maior defensor internacional do etanol, já se vê a cana-de-açúcar substituindo as lavouras de milho, mandioca e feijão, assim como a pecuária de leite e a pecuária de corte. O governo Lula dá a seguinte explicação sobre o aumento dos preços: “A culpa é dos subsídios que os governos dos países ricos dão aos seus produtores. Se caíssem os subsídios, os agricultores do sul poderiam aumentar sua produção e exportar para eles a menor preço”. O presidente critica outros países por protegerem seu mercado e investirem em seus produtores, mas por que não faz o mesmo no Brasil?

Portanto, não há uma crise de alimentos. Há uma situação de aumento especulativo dos preços, que não está relacionada com a oferta e a procura. A causa da fome e da desnutrição está relacionada com a distribuição de renda nos países, com a oportunidade de trabalho e, fundamentalmente, com a falta de políticas que estimulem e garantam a produção agrícola. Hoje, as 255 maiores fortunas pessoais do mundo somadas são equivalentes a toda a renda de 2,5 bilhões de pessoas, ou seja, acumulam o mesmo que 40% de toda população mundial. Nos últimos 5 anos, não houve diminuição da produção, pelo contrário, a produção seguiu crescendo mais do que a população do planeta.

Também o modo de produção agrícola baseado no uso intensivo de fertilizantes químicos, agrotóxicos e a mecanização intensiva (Revolução Verde) têm afetado o equilíbrio e a fertilidade dos solos, além de ameaçar a água potável. Devido a essas técnicas que exigem irrigação intensa, hoje se consome 70% de toda água potável do mundo na agricultura. Estima-se que desde a Revolução Verde (monocultura de pinos, eucalipto etc.), cerca de 45 milhões de hectares tenham sidos danificados, bem como há hoje, no mundo, 1,6 bilhões de pessoas que não têm acesso à água necessária. Esse modelo tecnológico está fadado ao fracasso em todo planeta.

A Via Campesina Internacional, através dos movimentos sociais, entrega propostas para a saída dessa “crise” e pontua algumas necessidades, como a de reconstruir as economias baseadas em políticas que busquem e incentivem a soberania alimentar de cada país; regular e controlar o mercado internacional de produtos agrícolas e aplicar direitos básicos; garantir e estimular a produção de alimentos entre seus principais produtores – os camponeses; impedir que a OMC (Organização Mundial do Comércio) siga ditando normas para o comércio agrícola mundial; realizar a reforma agrária nos países nos quais as terras não foram democratizadas.

É necessário que os estados retomem com todas as forças as políticas agrícolas públicas, porém agora voltadas apenas para a agricultura camponesa, tendo como principais políticas agrícolas necessárias o crédito rural subsidiado na produção, garantia de compra da produção camponesa, seguro agrícola, assistência técnica, extensão rural do Estado (gratuita), sistema de armazenamento público e a subordinação da produção de agrocombustíveis às políticas de soberania alimentar e energética, ou seja, que não substitua áreas de produção de alimentos e nem afete biomas e ecossistemas ricos como a Amazônia, mas que seja combinada em pluricultura. Assim, cada comunidade pode produzir, sem monocultivo, a energia e o alimento de que precisam para seu bem-estar.

Willian Luiz da Conceição é militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra em Santa Catarina.

Artigo originalmente publicado no Correio da Cidadania.

[EcoDebate, 21/08/2008]