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Por que razão o setor de saneamento só faz água. Entrevista Raul Graça Couto Pinho

O saneamento é um dos piores serviços públicos no País. Enquanto 92,7% dos lares brasileiros têm luz elétrica e 75,2% possuem acesso à rede de água em geral, apenas 47% dos domicílios têm coleta de esgoto. Somente 20% do esgoto produzido no Brasil é tratado, o que significa que os demais 80% vão parar em rios, lagos, mares e mananciais. Além disso, só um em cada três brasileiros conta com coleta e tratamento de esgoto simultaneamente. Esses dados constam de um estudo encomendado à Fundação Getúlio Vargas (FGV) pelo Instituto Trata Brasil (ITB), entidade criada no final do ano passado por empresas interessadas no desenvolvimento desse setor, concessionárias públicas e privadas desse serviço e até a Pastoral da Criança. Raul Graça Couto Pinho, diretor executivo do ITB, explica de que maneira a sociedade pode organizar-se para mudar o atual quadro. Entrevista publicada pela Gazeta Mercantil, 24/06/2008.

Gazeta Mercantil – Por que o Brasil chegou a essa situação de calamidade no setor de saneamento? Desde a extinção do Banco Nacional da Habitação (BNH) e até a criação do Ministério das Cidades, o setor de saneamento básico ficou sem nenhuma entidade que se preocupasse com o seu desenvolvimento. Foram décadas de esquecimento e de falta de investimentos, enquanto as cidades continuaram crescendo em ritmo cada vez mais acelerado.

Gazeta Mercantil – Quais as conseqüências da falta de saneamento na saúde pública? Estudos realizados por diversas entidades nacionais e internacionais – como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), entre outras – demonstram a forte relação entre a falta de coleta e de tratamento de esgoto e a ocorrência de doenças de veiculação hídrica que são responsáveis por 65% das internações hospitalares de crianças com até 10 anos de idade. Nos índices de mortalidade na infância – ou seja, de crianças de 1 a 5 anos de idade -, a falta de saneamento provoca 2.500 óbitos por ano. Morrem cerca de 200 crianças, por mês, no Brasil, vítimas da falta de saneamento básico.

Gazeta Mercantil – O estudo da FGV aponta que a precariedade dos serviços de saneamento tem impactos negativos também no aproveitamento escolar das crianças. O senhor pode dar exemplos desse problema? O Instituto Trata Brasil contratou a Fundação Getúlio Vargas para a realização de uma pesquisa que dimensionasse os impactos da falta de saneamento na saúde, na educação, no trabalho e na renda da população. Na educação, o que a pesquisa mostrou é que o grande impacto negativo está no aproveitamento das crianças. Por viverem e estudarem em ambientes sem condição sanitária adequada, as crianças têm aproveitamento 18% menor e apresentam índices de reprovação 46% maior. Ou seja, a falta de saneamento impacta negativamente no aproveitamento escolar das crianças, que deixam de aprender, justamente, na fase da vida mais importante para o desenvolvimento intelectual das pessoas. Crianças com baixo aproveitamento escolar, provavelmente, se tornarão adultos com dificuldades de crescer na pirâmide social.

Gazeta Mercantil – Por que as privatizações no setor não foram bem-sucedidas? Entendemos que o principal motivo da pouca participação do setor privado no saneamento se deu em função da falta de regras e do marco regulatório para o setor. A participação do setor privado no saneamento vem crescendo, nos últimos dois anos, a partir da aprovação da Lei n.º 11.445/07, que regulamenta o setor, da Lei das PPPs e da Lei dos Consórcios. Hoje, o setor conta com uma legislação bastante completa que define as regras para a prestação dos serviços de saneamento. Dentre as poucas concessões privadas, no Brasil, existem casos bem-sucedidos, por exemplos, em Limeira (SP) e Niterói (RJ), que apresentam indicadores de gestão equivalentes a operadores do Primeiro Mundo, onde a cobertura dos serviços de coleta e tratamento de esgoto tem avançado de forma sustentável. Os maus exemplos também existem e, na maioria dos casos, decorreram de contratos malfeitos, do tipo de regime BOT (Build, Operate and Transfer, ou construir, operar e transferir), em que as responsabilidades das partes – pública e privada – não foram estabelecidas com clareza. Em qualquer prestação de serviço, a principal razão de problemas e insucessos passa pela existência de contratos mal formulados.

Gazeta Mercantil – Há empresas privadas interessadas em explorar o serviço atualmente ou se trata de um ramo que, necessariamente, só pode ser explorado por empresas estatais? A participação de empresas privadas como operadoras de serviços de saneamento, não como fornecedoras de bens e serviços, teve início em 1995 com a Lei de Concessões. Hoje, essas empresas atendem cerca de 7% da população brasileira. Com o novo marco regulatório do setor de saneamento, a iniciativa privada voltou a mostrar interesse em investir no ramo. A universalização desses serviços, no Brasil, exige investimentos da ordem de R$ 220 bilhões. São cerca de cinco Programas de Aceleração do Crescimento (PACs), e o setor público, de forma isolada, terá grande dificuldade para atender a essa demanda. Entendemos que as parcerias público-privadas não podem deixar de ser consideradas como uma ferramenta fundamental para que possamos antecipar as metas de universalização da coleta e do tratamento de esgoto no Brasil.

Gazeta Mercantil – O presidente da Sabesp, Gesner Oliveira, declarou em recente entrevista à Gazeta Mercantil que a estatal paulista tem planos de expandir-se para outros estados e até países. Qual sua opinião sobre isso? Nada contra a meta de expansão das empresas, mas sem deixar de lado a priorização da universalização dos serviços de esgoto em São Paulo. Hoje, a Sabesp trata 40% do esgoto coletado.

Gazeta Mercantil – A Lei n.º 11.445/07, que passou a vigorar no ano passado, estabeleceu as regras do jogo no saneamento básico e exige que, para ter direito a recursos públicos, os municípios têm de elaborar até 2010 seus planos municipais de saneamento com definição das metas de universalização do serviço oferecido à população. O senhor acha isso factível, dada a cultura política que prevalece no Brasil de um administrador dificilmente deixar para seu sucessor os resultados positivos de um investimento? Só vamos atingir a universalização desses serviços se as lideranças políticas se comprometerem com essa agenda. Para tanto, é necessário que a sociedade passe a exigir o direito de viver em cidades sem esgoto nas ruas, rios, lagos e praias. O nosso trabalho no Instituto Trata Brasil é de mostrar à população os enormes problemas causados pela falta desses serviços. Político é movido a voto e se nós, eleitores, não exigirmos os serviços, os esforços e recursos certamente serão direcionados para outros segmentos. Para que todos os brasileiros tenham esgoto coletado e tratado, são necessários cinco PACs, ou seja, cinco mandatos, o que evidencia a necessidade de tratar essa questão como política de Estado, e não de governo, que muda a cada quatro anos.

Gazeta Mercantil – Segundo o levantamento da FGV, pelo atual ritmo de investimentos, somente em 2122 o Brasil terá 100% de seus lares com saneamento básico. O que se poderia fazer para abreviar esse tempo? O levantamento da FGV considerou a taxa de crescimento do acesso ao serviço de saneamento, que foi de 1,59%, verificada no período 1992/2006. Mantendo-se o nível de investimentos previstos no PAC para o setor de saneamento, é possível ao País alcançar a universalização em 20 anos. Esse tempo pode ser abreviado com mais participação do setor privado via PPPs e também com a melhoria da eficiência do setor, que hoje tem perdas da ordem de 40%.

Raul Graça Couto Pinho é Diretor do Instituto Trata Brasil – ITB