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Movimentos sociais e autonomia frente ao governo. Entrevista especial com Antonio Marcio Buainain

“A não realização de uma reforma agrária ampla nos anos 1950 ou 1960, como parte do processo de transformação estrutural de uma economia rural em urbana industrial, consolidou uma sociedade profundamente desigual e um processo de acumulação excludente, que até recentemente se assentava na concentração de renda e na reprodução da desigualdade”, diz o doutor em ciências econômicas, Antonio Marcio Buainain, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Polêmico, o professor da Unicamp faz uma análise dos movimentos sociais pensando a luta pela terra na contemporaneidade, por isso fala da evolução desta batalha, da visão acadêmica sobre os movimentos e sua luta e sobre a reforma agrária.

Para Buainain, “os conflitos aumentam com o desenvolvimento e com o aperfeiçoamento da democracia, que abre mais oportunidades para as minorias se manifestarem, para debates que antes ficavam restritos a grupos específicos”.

Antonio Marcio Buainain é graduado em Direito, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e em Ciências Econômicas, pela Faculdade de Ciências Políticas e Econômicas do Rio de Janeiro. É especialista em economia pela University Of London Birckbek College, com mestrado e doutorado na mesma área, realizados na Universidade Federal de Pernambuco e Universidade Estadual de Campinas, respectivamente. É, atualmente, professor da Unicamp e autor de Agricultura familiar e tecnologia no Brasil: características, desafios e obstáculos (Campinas: Editora da Unicamp, 2007), Ações de combate à pobreza rural: metodologia para avaliação de impactos (Brasilia: IICA, 2007), organizador de Agricultura, instituições e desenvolvimento sustentável Luta pela terra, reforma agrária e gestão de conflitos no Brasil (Campinas: Editadora Unicamp, 2008), entre outros.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O Brasil vive, há muitos anos, um grave problema de luta pela terra. Esta luta originou a criação de alguns dos mais importantes movimentos sociais da América Latina, por exemplo, e, hoje, cerca de 70 movimentos lutam pela terra no Brasil. Ao mesmo tempo, a luta, com o passar dos anos, intensificou-se, principalmente, na região amazônica e com maior violência. Qual a sua visão da evolução da luta pela terra no país?

Antonio Marcio Buainain – O desejo de ter um pedaço de chão, como se diz no Nordeste, é muito difuso na sociedade brasileira, até mesmo no meio urbano. A não realização de uma reforma agrária ampla nos anos 1950 ou 1960, como parte do processo de transformação estrutural de uma economia rural em urbana industrial, consolidou uma sociedade profundamente desigual e um processo de acumulação excludente, que até recentemente se assentava na concentração de renda e na reprodução da desigualdade. A não realização da reforma agrária a transformou em um mito, um objetivo a ser perseguido como solução para múltiplos problemas, da pobreza rural à violência urbana, da carestia ao desmatamento da Amazônia. O processo de democratização em um contexto de crise econômica, como o que marcou o país a partir da segunda metade dos anos 1980, facilitou a mobilização de uma ampla camada da população rural, engrossada nos anos mais recentes com famílias recrutadas nas periferias das cidades, em torno da luta pela terra. Tratava-se de uma população desprovida de tudo, principalmente de esperança e de qualquer perspectiva de se inserir na sociedade. A oportunidade de fazer parte de um grupo, de ter voz ativa, de gritar por seus direitos, de ser ouvido e, além disso, de conquistar um lote de terra, atraiu milhares e milhares de famílias para os movimentos sociais de luta pela terra. E na medida em que as reivindicações iniciais foram incorporadas à agenda de políticas públicas na Administração FHC e a reforma agrária voltou a receber atenção, a atratividade aumentou. Hoje, parece que a capacidade de mobilização começa a ceder e, talvez por isto mesmo, alguns movimentos, antes focados na questão agrária, vêm se radicalizando e ampliando a agenda política.

Como leigo parece-me que a ampliação da agenda para outros temas, alguns sem qualquer vínculo com o problema agrário, divide e debilita a luta pela terra. Outro traço da evolução da luta pela terra é a aparente perda de identidade básica entre os participantes, que era a origem rural e o desejo legítimo de ter uma terra para trabalhar; hoje os “sem terra” incluem desde pequenos agricultores e trabalhadores rurais até população urbana que nunca trabalhou no meio rural, não tem vocação para ser agricultor e se afiliam em algum movimento buscando proteção, inserção social e naturalmente os benefícios materiais. A “identidade” é doutrinária e ideológica, assegurada por meio de processos de formação que muitos consideram pouco democráticos, já que estimulam o conflito social e promovem o desrespeito às regras e instituições civis em plena vigência da democracia.

Finalmente, há sinais de que alguns movimentos vêm perdendo autonomia em relação ao governo. De um lado, participam de um jogo político partidário que não se via no passado; em mais de uma ocasião, as próprias ações foram moduladas pelo calendário eleitoral, seja para “prejudicar” ou “favorecer” candidatos e governos; de outro, é inegável a importância das verbas públicas, incluindo a distribuição de cestas de alimentos, na capacidade de mobilização e comando dos movimentos sociais.

IHU On-Line – O senhor afirmou que no campo da luta pela terra, há uma ‘igrejização’ ou ‘partidarização’ acadêmica. De que forma essas duas áreas se manifestam na luta? A discussão da luta pela terra deveria ser feita entre que partes e quem deveria ficar de fora desse debate?

Antonio Marcio Buainain – Veja que essa afirmação se refere ao debate acadêmico. Eu entendo que nós somos pagos pela sociedade para refletir criticamente, produzir conhecimento novo, propor soluções para os problemas do país, debater as políticas com o objetivo de aperfeiçoá-las, mudá-las se forem inadequadas e assim por diante. Não sou ingênuo e não acredito nem na neutralidade nem na objetividade da ciência e dos debates científicos. Sei que cada um faz sua reflexão a partir de seu ponto de observação, que inclui a formação, a cultura, os ideais etc. O que tenho questionado é a vinculação da reflexão da academia à política partidária. Em alguns momentos essa vinculação se traduz em uma confusão entre reflexão crítica e crítica aos governos; ou, se conveniente, à ausência de uma reflexão sobre as políticas públicas no caso de governos amigos.

Muitos trabalhos acadêmicos parecem mais panfletos políticos que reflexões baseadas em metodologias claras, dados da realidade e que utilizam uma episteme minimamente consistente. São vulgaridades do ponto de vista científico, que afirmam e repetem como se fosse verdade o que deveria ser explicado e desvendado. Outra manifestação deste fenômeno que tenho chamado de “igrejização” pode ser vista nos seminários. Exceto aqueles cuja seleção é feita em chamadas amplas, com papers escolhidos por comissões múltiplas, os eventos reúnem grupos alinhados que “debatem” intensamente dentro do dogma. Qualquer voz discordante é logo afastada, não raramente de forma grosseira, rotulada disto ou daquilo. É por isto que chamo de igreja, que delimita o debate pela aceitação dos dogmas. Aqueles que discordam são hereges e por isto são expelidos do grupo.

Eu acho que ninguém deveria ficar de fora do debate. Em um regime democrático é perfeitamente legítimo que as pessoas sejam contrárias à reforma agrária e defendam seus pontos de vista sem constrangimento, sem serem necessariamente “boas” ou “más” porque são a favor ou contra esta ou aquela causa. Essa é a essência do regime democrático.

IHU On-Line – Qual é a importância, em sua opinião desses conflitos para a questão da Reforma Agrária no Brasil?

Antonio Marcio Buainain – O conflito é inerente ao processo de reforma agrária. Ninguém vai ceder sua propriedade a outro por livre espontânea vontade. Os governos brasileiros têm forte tradição populista e um dos traços mais marcantes do populismo é dificuldade de definir com clareza os ganhadores e os perdedores; é mais fácil prometer para todos, assumir que todos são iguais e disfarçar a alocação de benesses e do ônus. É assim na questão fiscal, por exemplo. Por décadas o Estado se financiou por meio da inflação – que penaliza os mais pobres – em vez de fazer uma reforma tributária e definir com clareza quem paga a conta e quem recebe os benefícios. É por isto que nenhum governo enfrentou, e nem acredito que venha a enfrentar, o problema agrário sem a pressão criada pelo conflito.

O conflito move, e também paralisa. A impossibilidade de estabelecer um compromisso entre governo e movimentos sociais em torno de metas, meios, resultados e responsabilidades impede a execução eficiente da política fundiária. Na verdade, o movimento social não considera que a reforma agrária seja uma política pública sujeita às regras vigentes, mas tende a considerá-la como parte de um processo mais amplo de luta política. Neste contexto não tem a menor importância se o dinheiro público é bem gasto ou não, se o assentamento é sustentável ou não; o importante é alcançar o objetivo político.

IHU On-Line – Será possível, algum dia, superar esses conflitos? O que falta, na agenda política brasileira, para que a Reforma Agrária realmente seja feita?

Antonio Marcio Buainain – Os conflitos são superados e renovados. A gente fala de sociedade da informação, sociedade do conhecimento e sociedade global, pós-industrial, mas um dos traços mais marcantes da nossa sociedade é o conflito. E os conflitos aumentam com o desenvolvimento e com o aperfeiçoamento da democracia, que abre mais oportunidades para as minorias se manifestarem, para debates que antes ficavam restritos a grupos específicos. Veja os debates sobre os transgênicos, por exemplo. Antes esse tipo de polêmica era coisa de cientista, e hoje está na sociedade.

O problema não é, portanto, o conflito, mas a institucionalidade que deve ser adequada para permitir a manifestação e a superação dos conflitos. No caso brasileiro temos progressos notáveis em muitas áreas. Há 25 anos estávamos em plena ditadura e hoje vivemos em um regime democrático, com muitas instituições como o Ministério Público e Justiça Federal, para citar apenas duas a título de exemplo, que não deixam nada a dever àquelas das grandes democracias do mundo. Ao mesmo tempo vivemos situações anacrônicas, como a impunidade para delitos políticos, negociatas e corrupção no serviço público, uma Justiça que não consegue assegurar os direitos dos cidadãos, a violência e até o controle de territórios por grupos criminosos.

No caso da reforma agrária temos uma institucionalidade também débil, que não favorece a resolução dos conflitos. Faltam regras tanto para proprietários como para sem terras; o Estado não tem capacidade de impor as leis a nenhum dos lados e isto favorece um conflito estéril do ponto de vista social. Pode favorecer ora este ora aquele grupo, mas se traduz em progresso social muito lento.

Em relação ao que falta “para que a reforma agrária realmente seja feita”, tem uma dimensão técnica e outra política. No plano técnico cabe perguntar se de fato a reforma agrária ainda é necessária; que reforma agrária? Que modelo, onde, para quem? No plano político essas perguntas não fazem sentido, já que o ritmo, modelo e dinâmica da reforma agrária continuará sendo determinada pelo conflito.

IHU On-Line – O senhor afirma também que o crescimento econômico vivido pelo país nos últimos anos pode contribuir para a amenização dos conflitos pela terra. No entanto, muito desse crescimento depende de algumas grandes obras planejadas para a região da Amazônia. Como o senhor analisa a luta que os indígenas vivem hoje na luta por sua própria terra?

Antonio Marcio Buainain – A luta dos indígenas é muito diferente dos movimentos que lutam pela terra, tem especificidades que não conheço. No entanto eu não vejo nenhuma incompatibilidade entre o crescimento e desenvolvimento e a necessidade de obras na região da Amazônia. É evidente que temos que proteger nossos recursos naturais, cujo valor é crescente, mas não podemos imaginar a Amazônia como um santuário intocável. Neste sentido será inevitável que o desenvolvimento implique em certo “dano” ambiental, que pode e deve ser minimizado com a aplicação de tecnologia apropriada. Mais uma vez eu vejo que os conflitos nesta região devem-se mais à falta de instituições adequadas, incluindo a definição clara de direitos de propriedade sobre a terra do que ao desenvolvimento propriamente dito.

(www.ecodebate.com.br) entrevista publicada pelo IHU On-line, 24/06/2008 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]