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áreas degradadas: Por que ninguém usa esta terra?

Para conter a devastação da Amazônia, não basta reprimir madeireiros ilegais. É preciso aproveitar as áreas já desmatadas e abandonadas, que somam um território equivalente aos Estados do Paraná, Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. Por Juliana Arini, Revista Época, Ed. 511 – 03/03/2008.

Menos de 30 dias após o anúncio de que o desmatamento na Amazônia aumentou, revertendo um período de três anos de queda, o governo tomou uma atitude drástica. Enviou, na semana passada, 300 agentes da Polícia Federal, fiscais ambientais e soldados da Força Nacional de Segurança para Tailândia, no oeste do Pará, um dos pólos madeireiros mais antigos da floresta. A atuação ganhou nome de guerra: Operação Arco de Fogo, uma referência ao chamado arco do desmatamento, um cinturão de municípios campeões de devastação que se estende do Acre ao Maranhão. A mensagem é que o governo vai atuar com rigor para deter o avanço da destruição.

É uma boa mensagem. Mas a ação é muito mais uma resposta à opinião pública que um plano eficaz de controle do desmatamento. “As madeireiras não são as responsáveis pelas grandes derrubadas”, diz Tasso Azevedo, secretário de Florestas do Ministério do Meio Ambiente. “A operação é uma forma de demonstrar governança na Amazônia. Para atacar o desmatamento pela raiz, precisamos atuar na pecuária. Só que isso é mais difícil.” Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre 70% e 80% das derrubadas de floresta viram pasto. Em grande medida, isso acontece porque o próprio governo concedeu, até o fim do ano passado, créditos para esses pecuaristas sem nenhum controle ambiental.

A ação em Tailândia tem seus méritos. “A madeira é o começo de tudo”, diz Paulo Barreto, pesquisador do Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), um dos principais centros de pesquisas sobre a região. “Ela abre as estradas e financia a formação de pastagens e a entrada dos bois. Apreender a madeira ilegal barra o processo.” As serrarias movimentam a economia de Tailândia. Já não há mais florestas próximas ao município, mas elas exploram as matas de até 200 quilômetros de distância. Em cinco dias de operação, os fiscais apreenderam 15.000 metros cúbicos de madeira, ou 500 carretas lotadas com toras. A resposta da população local foi imediata: tumultos, protestos e estradas fechadas. Afinal, a indústria da extração predatória é o maior empregador da região. S A tropa de choque do Exército precisou fixar uma base ali perto. Segundo o governo, ações semelhantes vão acontecer ao longo do ano em outros municípios campeões de destruição na Amazônia.

Não importa quantas ações sejam feitas, elas serão insuficientes. Dos 72 milhões de hectares já devastados na Amazônia, o equivalente a toda a Região Sul do país, cerca de 56 milhões de hectares são ocupados por uma pecuária de baixa produtividade, que destrói cada vez mais áreas. Ali, cada boi pasta num terreno equivalente a dois campos de futebol. Em fazendas mais modernas, em São Paulo, a mesma área sustenta seis cabeças. A saída já foi sugerida pelo próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Não precisamos derrubar árvores na Amazônia para aumentar nossa produção agrícola”, disse Lula em um fórum internacional promovido em Brasília pelo Banco Mundial. “Basta ocupar os 16,5 milhões de hectares de áreas abandonadas que existem na região.” Além disso, afirmou que “o avanço tecnológico pode nos permitir produzir mais nas mesmas áreas”. Se a solução está tão clara para o chefe do governo, por que não é posta em prática? “Esse é um caminho que estamos estudando. Mas ainda não há uma direção”, afirma Reinhold Stephanes, ministro da Agricultura. A solução é difícil porque envolve uma reforma fundiária – e mudanças na Constituição.

A razão do desmatamento é o modelo de expansão agropecuária. Ele é nocivo ao país por dois motivos. Primeiro, ele paga para jogar fora recursos naturais. Com empréstimos bancários voltados para a pecuária, abrir pastos sempre foi uma das principais atividades econômicas da região. De 2003 a 2007, o Fundo Constitucional de Financiamento do Norte (FNO) destinou R$ 1,9 bilhão em 14 mil contratos de empréstimos para os Estados da Amazônia. Esse valor foi cedido sob juros baixos, de 1% a 4% ao ano, a pequenos produtores, por meio do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). Os grandes produtores captam o dinheiro com juros de 5% a 9%. Segundo estudos do Imazon, esse dinheiro foi para a compra de bois e a formação de pastos. Agora, o governo anunciou que está criando outras regras de financiamento.

O segundo efeito nocivo da atual política agrária é que boa parte dessa expansão da pecuária na Amazônia ainda ocorre para se apropriar de terra pública. Os invasores desmatam a terra e levam bois para lá para garantir sua ocupação – que lhes daria direito de posse. Por isso, não há preocupação em aumentar o número de bois por hectare. Ao contrário. A maior parte dos pecuaristas quer os bois bem espalhados, para ocupar a terra, manter o pasto, evitar que a floresta se recupere e expulsar os posseiros que estavam lá. Hoje, 21% da floresta são terras públicas. Nessas regiões não existem unidades de conservação, terras indígenas ou nenhum tipo de documento de posse privada reconhecido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

“Foram séculos de ausência do Estado”, diz Barreto, do Imazon. “Isso criou uma fronteira similar à do faroeste americano, onde o primeiro que chegar ganha a terra, seja pacificamente ou à bala. Para piorar, os governos reconheceram esse tipo de colonização por meio dos documentos de posse do Incra.” Essas posses eram concedidas até 1996. Para ganhar um atestado de posse, bastava entrar em uma área de até 500 hectares e derrubar 50% da mata. O desmatamento era a prova da ocupação e produtividade da propriedade. “Conquistar uma terra sempre foi o maior estímulo para as pessoas derrubarem a floresta”, afirma Barreto. Hoje, as posses de até 500 hectares ainda podem ser regularizadas, dependendo do entendimento do juiz responsável por examinar cada ação. Isso estimula a ocupação irregular. Uma instrução normativa do Incra também autoriza a tomada de terras de até 1.500 hectares por meio de licitação. “Só que esses leilões são realizados em terras ocupadas por posseiros, que já têm seus documentos de posse. Isso aumenta a confusão e os conflitos.”

Todas essas terras com posseiros irregulares somam 42 milhões de hectares na Amazônia. Uma área equivalente à dos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Paraíba e Sergipe juntos. Pesquisas da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) sugerem que, devido à grande oferta de terras baratas e até gratuitas, o custo de derrubar a floresta e formar um hectare de pasto é de R$ 800. Para aumentar a produtividade de uma área semelhante, seria preciso investir R$ 1.200. “Derrubar ainda compensa”, diz Barreto.

Para pôr fim aos incentivos para derrubar a mata e promover um uso mais racional da terra, o país precisa de novas estratégias. Eis os que recomendam os especialistas:

1. Reduzir as oportunidades para apropriação indevida de terra pública “Faltam leis claras para resolver esse problema”, diz Alessandra Reschke, secretária de Patrimônio da União. Hoje, segundo a Constituição, os 16,5 milhões de hectares abandonados deveriam ser destinados para reforma agrária. Mas existe uma proposta de fazer leilões com parte dessas terras públicas já desmatadas. “Podemos oferecer essas áreas na forma de concessões, tal como já acontece com as florestas”, diz Azevedo, do Ministério do Meio Ambiente. A idéia dele é criar um sistema semelhante ao que existe hoje para oferecer áreas florestais para exploração sustentável por madeireiras privadas. Seu projeto é também licitar terras desmatadas para a produção de biodiesel. Só que isso exige uma revisão das leis.

Além disso, o governo precisa fazer um recadastramento das terras abandonadas na região, segundo Mark Lundell, coordenador de Desenvolvimento Sustentável do Banco Mundial para o Brasil. “Com essa regulamentação, essas áreas podem ser oferecidas para investidores produzirem biodiesel dentro dos limites permitidos por lei.”

2. Incentivar o uso mais intensivo do pasto já existente Segundo a Embrapa, dá para a pecuária na Amazônia ficar mais intensiva, criando três bois por hectare, em vez de 0,7 boi por hectare, como ocorre hoje. Quem tira 3 litros por hectare passaria a tirar 12. Isso reduz ou elimina a necessidade de abrir novas áreas. Pesquisas da Embrapa apontam que um investimento de R$ 4 bilhões por ano pode melhorar a produtividade agrícola. E evitar a derrubada de 10 milhões de hectares de floresta. Essa é a média anual do desmatamento da Amazônia há dez anos.

Em regiões onde o problema fundiário está controlado, essa solução já é um caminho para os produtores, como o mineiro Pérsio Barros Lima. Ele chegou com a família a Paragominas, no Pará, em 1971. Abriu a propriedade de 1.500 hectares com financiamento do Banco da Amazônia. “Na época, quem vinha para cá era visto como artista, herói, e não como bandido, como é agora.” O pecuarista preservou 50% da floresta de sua propriedade, obrigatórios naquela época (hoje a lei é 80%). Como não há mais terras baratas na região de Lima, compensa investir na propriedade em vez de desmatar novas áreas. Foi o que ele fez. No início, criava 0,6 boi por hectare. Hoje, mantém um boi na mesma área. “Quero chegar a ter três cabeças por hectare”, diz. Em suas fazendas, a Barreirão e Santa Fé, ele adota o sistema proposto pela Embrapa. A técnica consiste em plantar milho e outros grãos em uma área separada, para alimentar o rebanho. Com isso, o gado ocupa menos pasto e as terras são adubadas pela alternância entre bois e lavoura. Além de reduzir os custos com a recuperação das áreas degradadas, essa técnica aumenta os ganhos do produtor.

3. Incentivar o uso da terra já aberta e abandonada A palmeira-dendê é a primeira opção para as áreas já degradadas. Hoje, existem 60.000 hectares dessa espécie cultivados na Amazônia. Se essa produção crescer para 200.000 hectares, uma área menor que a cidade de São Paulo, poderíamos parar de importar o óleo de palma, usado para produzir cosméticos, margarina e sorvetes. Já existem exemplos na região de cultivos sustentáveis de dendê. A Agropalma, do empresário Aloísio Faria, usa áreas de pastagem abandonadas desde 1997 para o plantio de palma. Já foram reflorestados 10.000 hectares.

Os produtores também poderiam cultivar espécies nativas valorizadas. O Brasil importa da Malásia um terço da borracha de seringa. Faltam cupuaçu e açaí para suprir a demanda no mercado de polpas. Hoje, a produção depende da extração do que brota nas árvores naturalmente dispersas na mata. Não é o bastante. “Podemos plantar essas culturas. Isso ajudaria a recuperar as áreas obrigatórias de floresta que foram derrubadas e geraria uma economia permanente”, diz Alfredo Homma, pesquisador da Embrapa de Belém.

Há espaço até para eucalipto. Ele poderia ser plantado nos 10% de área já desmatada, o que daria para abastecer o Pólo Siderúrgico de Carajás, onde atua a Vale do Rio Doce, no Pará. Hoje, os fornecedores da Vale produzem ferro-gusa com carvão obtido por meio da queima de floresta nativa.

Se o Brasil aproveitar as áreas já abertas em vez de desmatar mais, nossa situação no mercado agrícola internacional mudará. Para começar, o país passaria a exportar carne sem os constrangimentos de ter sua produção associada à devastação. Também poderíamos vender combustível verde para ajudar a combater as mudanças climáticas. O álcool e o biodiesel, feito de óleos vegetais como o dendê, não contribuem para o aquecimento global – mas só se não aumentarem o desmatamento, que lança gás carbônico na atmosfera.

Lundell, do Banco Mundial, entregou ao governo um estudo que mostra ser possível o país duplicar sua produção de biocombustíveis sem derrubar florestas ou comprometer a produção de alimentos. Hoje, nossos biocombustíveis (álcool e biodiesel) substituem 0,42% do que roda em todos os carros e caminhões do planeta. Segundo Lundell, o Brasil poderá abastecer até 2% da demanda em 2020. “O país poderá superar até os Estados Unidos, o maior produtor mundial. Aproveitar as áreas degradadas da Amazônia é um dos primeiros passos para esse crescimento”, diz Lundell.

A reciclagem da terra

Por que incentivar o reaproveitamento das áreas degradadas esvaziaria a necessidade de novos desmatamentos Os passos da destruição Como as terras da Amazônia são exploradas e depois descartadas

1 EXTRAÇÃO DE MADEIRA As madeireiras não derrubam a floresta. Elas apenas retiram as árvores de valor comercial que estão dispersas na mata. Mas, para cada árvore retirada, outras 27 são danificadas. Com as estradas, uma madeireira predatória degrada 60% da floresta. Cerca de 15% da madeira da Amazônia vai para São Paulo

2 RETIRADA DE CARVÃO Nas áreas ricas em minério de ferro, as carvoarias queimam o que sobrou de lenha. Elas transformam minério em ferro-gusa, matéria-prima do aço. Às vezes, os fornos que convertem a lenha em carvão são montados no meio da floresta. Cerca de 4 mil caminhões transportam lenha e carvão na Amazônia

3 DESMATAMENTO Os pecuaristas, geralmente associados às madeireiras, derrubam o que sobrou da mata e plantam capim para o gado. Cerca de 35% do rebanho nacional está na Amazônia. Em uma região onde 55% das terras estão em disputa e apenas 4% têm propriedade definida, o gado é usado para garantir a posse, mesmo que ilegalmente

4 CRIAÇÃO DE GADO A área é subaproveitada. Os pecuaristas desmataram uma área de 550 km2, o equivalente a Minas Gerais. Criados livres no campo, sem ração, os bois precisam todo ano de novas áreas derrubadas para a formação de pasto. Cerca de 10% dos bois da Amazônia vão para o mercado internacional

5 ABANDONO DA TERRA O pasto é abandonado em pouco tempo. Cerca de 30% das pastagens duram menos que cinco anos. Nas terras abandonadas, a floresta não se recupera porque o solo foi compactado pelos bois e empobrecido pelo fogo. Resta uma vegetação rala, com arbustos