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Brasil, um país de todos? artigo de Wilson Aparecido Lopes

[Correio da Cidadania] Tenho insistido para que os agentes sociais, responsáveis pelas mudanças no país, acordem do sono em que o governo os lançou. Claro que não estou alheio às manifestações que têm pululado em vários cantos do Brasil. Uma demonstração de que as alocuções vindas do Palácio do Planalto não mais detêm o poder de manipular e muito menos de cooptar o povo, que, organizado em movimentos e pastorais sociais, luta por transformações. A insistência é quanto aos militantes cujos ânimos se arrefeceram, diante das promessas e esperanças não cumpridas pelo governo.

Que me perdoem aqueles que ainda conseguem ver no governo Lula uma tábua de salvação. Que se contentam com os indicadores sociais vez por outra lançados na grande mídia, quem sabe até mesmo com a intenção de confundir os que já se deram conta de que as mudanças não estão assim tão satisfatórias para aqueles que se encontram no degrau debaixo das camadas sociais.

Não é bem isto que o povo organizado, o mesmo que votou e apoiou Lula na campanha de 2002 e de 2006, esperava. Não foram estas as bandeiras levantadas e muito menos foram estas as lutas pelas quais se derramaram tanto sangue e tantas gotas de sofrimento. Ao rasgar as bandeiras de luta, o governo provocou um atordoamento tão forte que os movimentos e pastorais sociais ainda não conseguiram se recuperar. Seu forte poder de cooptação, mesmo que disfarçado, tem impedido que estes mesmos movimentos e pastorais desempenhem seu verdadeiro papel na sociedade.

Há os que vêem no governo algo de sagrado, que se teme questionar, criticar e até mesmo exigir que cumpra o que prometeu. São militantes que seguem muito mais uma liderança, mesmo que a certa altura esta pegue o caminho errado, do que um projeto. Não à toa constatamos certa apatia, um sentimento de que, se o governo Lula não conseguiu mudar a situação, não adianta lutar, porque quem somos nós para mudar as estruturas do país.

Nitidamente o governo tem cantarolado promessas de mudanças sem, contudo, colocá-las em prática. E não poucos são os militantes que ainda confiam que o governo pode mudar. Mesmo que se evidencie a cada dia e a cada decisão uma negação de nossas bandeiras de luta. Não demora muito e o governo Lula estará conclamando a todos os militantes para que, sob sua batuta, façam campanha para o PSDB e o DEM, haja vista o compadrio nitidamente vergonhoso entre eles. Sirva-se de exemplo a “CPI dos Cartões Corporativos”, onde se tem procurado costurar uma aliança espúria de intocabilidade das contas dos governos anterior e atual.

Alguns movimentos e pastorais sociais colocam para si uma espécie de encruzilhada. Por um lado, temem criticar o governo Lula e fornecer munição para os partidos de direita, ávidos em abocanhar a cadeira da presidência e escancarar de vez o projeto de privatização do país. Por outro, sabe-se claramente que o governo não empunha, se é que um dia empunhou, as bandeiras de luta que os movimentos e pastorais sociais defendem. E neste embotamento vão ficando à margem da história, quando muito reagindo timidamente, negando-se até mesmo a tencionar as correlações de forças com o governo.

Há ainda militantes que comungam da idéia de que o governo Lula tem feito mais realizações do que o governo de Fernando Henrique Cardoso, e tem sido menos repressor. Verdades em parte. Primeiro porque as realizações são medíocres do ponto de vista dos menos favorecidos, esperava-se muito mais, porque se assumiu prometendo muito mais. Segundo porque os movimentos sociais deixaram de pressionar, sem pressão não há repressão. Ponha o povo na rua e veremos até que ponto o governo agüenta.

As bandeiras estão aí, elas não mudaram. O Projeto Popular para o Brasil ainda continua um sonho gestado e parido por homens e mulheres que resolveram deixar o governo e seu magnetismo de lado e foram à luta. Como bem disse Dom Hélder Câmara: “Não se abandonam bandeiras certas somente porque elas estão em mãos erradas”. As bandeiras que o povo organizado empunhava até ontem nas ruas continuam tremulando como sinal de esperança para aqueles que têm consciência de que as mudanças virão do povo.

O povo quer emprego, moradia digna, saúde e educação de qualidade para todos, quer terra para plantar e para colher, e não migalhas vindas de programas assistenciais, que mais fortalecem a dependência do que acenam para a libertação. E são os pobres os primeiros a sentirem e constatarem que estas promessas não estão sendo cumpridas. São os despossuídos os que mais sentem esta agrura na própria pele. Por mais que os discursos enfatizem que sua situação está melhorando, eles sentem o quanto a realidade difere em muito das palavras.

Os programas do governo não são para os pobres. Esta é a grande máscara ostentada pelo governo e que precisa ser arrancada. A transposição do rio São Francisco deixou claro com que desdém o governo tem tratado os movimentos e pastorais sociais, além de ter confirmado o que já se sabia. Que o governo está amarrado às grandes empreiteiras, responsáveis pelo grosso dos investimentos em sua campanha à reeleição, e amarrado também ao agro e hidronegócio. Sem contar os banqueiros que comemoram a cada trimestre seus lucros exorbitantes.

Os movimentos e pastorais sociais nada mais têm a esperar de um governo que empunha a bandeira dos transgênicos, como a recente liberação das sementes de milho; da política econômica neoliberal; da privatização das rodovias federais; das exportações em detrimento do consumo interno, como o do recente embargo da carne para a Europa e a comemoração do brasileiro por ver baixarem os preços deste produto no mercado interno; da nossa recente passagem de devedor para credor externo, que na verdade não passa do mascaramento de nosso endividamento interno, enquanto a educação, a saúde, a moradia recebem investimento-esmola; da privatização da Amazônia através das concessões. Não são estas as bandeiras e nem é este o Projeto Popular para o Brasil que os movimentos e pastorais sociais defendem.

O termômetro para se medirem as ações do governo não deveria ser os lucros dos banqueiros e muito menos os mega-projetos das multinacionais que têm em nosso país um interesse explorador-exportador, o mesmo interesse que perdura desde 1500. O termômetro deveria ser a fome do povo. De que adianta comemorar em cima dos indicadores de que, lá fora, o país vai bem obrigado, que nossa economia é forte o suficiente inclusive para sobreviver à recessão norte-americana, enquanto aqui dentro o povo não consegue sequer sobreviver à alta do feijão, tendo que buscar um substituto para este produto essencial à sua mesa?

Quando os movimentos e pastorais sociais resolveram “esticar a corda”, fazendo não somente com que os governos anteriores cumprissem suas promessas de campanha, mas exigindo eles mesmos uma outra nação, o que mais se ouvia era que não se tinha um projeto alternativo. Hoje é possível constatar que os movimentos e pastorais sociais não somente têm um Projeto para o Brasil, como o estão construindo, de norte a sul, de leste a oeste deste imenso país.

A frustração não vem da viabilidade do projeto e nem do povo que tem lutado incansavelmente pelas mudanças. A frustração vem do governo que, não tendo a coragem de empunhar as mesmas bandeiras que os movimentos e pastorais sociais empunham, não consegue fazer do Brasil um país de todos. E ainda busca de toda a maneira persuadir os militantes para que fiquem aguardando as mudanças que o governo fará, que tenham paciência, que nada acontece magicamente e que se está fazendo todo o possível.

Aos movimentos e pastorais sociais não restam muitas alternativas. Se quiserem retomar as rédeas da história às próprias mãos e construir eles mesmos o Projeto para o Brasil, terão que se desvencilhar do governo. Terão que ocupar com muito mais freqüência as ruas, palco das grandes decisões, e empunharem com renovado vigor e convicção suas antigas bandeiras. Se o governo nada mais tem a oferecer que não seja a cooptação, as vãs promessas e o abandono das antigas bandeiras de luta, então não restará aos movimentos e pastorais outro caminho que não seja o da ruptura.

Talvez os movimentos e pastorais sociais sintam um pequeno abalo diante do afastamento do governo, mas, como bem disse Leonardo Boff ,”os movimentos sociais podem se sentir representados no governo, mas têm que ter autonomia porque são permanentes. Os governos mudam, os movimentos sociais não”. Creio que a grande encruzilhada que se colocará daqui para frente não é mais aquela de dever ou não criticar o governo, e sim dever ou não romper com ele, para recuperar sua autonomia e sua presença transformadora na sociedade.

Wilson Aparecido Lopes é assessor da Pastoral do Povo de Rua (Osasco-SP).

Artigo originalmente publicado pelo Correio da Cidadania, 28-Fev-2008.