EcoDebate

Plataforma de informação, artigos e notícias sobre temas socioambientais

Artigo

Quem tem água Perrier na geladeira?, por Ruben Siqueira

Enquanto as obras da transposição do São Francisco avançam, continua o discurso oficial mentiroso sobre o projeto e nos bastidores acirram-se as disputas pela “transposição política”.

[EcoDebate] O Presidente Lula volta e meia diz que só é contra a transposição de águas do Rio São Francisco “quem tem água Perrier na geladeira”. Deve funcionar como argumento publicitário, pelo tanto que o usa. A primeira vez foi em setembro de 2005, quando um bispo franciscano fez 11 dias de jejum contra a transposição, bebendo apenas água do rio São Francisco… Símbolo pelo símbolo, o bispo foi mais verdadeiro.

Mas a quem o presidente se dirige? À classe média, que conhece a água francesa da Nestlé e a tem como símbolo de status, tendo-a de fato na geladeira ou não? Deve ser, porque ao povo nordestino, muito longe de saber “que raio de água é essa”, o slogan, tão cansativo quanto mais insistente e mentiroso, é outro: “Água para 12 milhões de sedentos”…

Voltou ao noticiário a empresa “Chesf Águas” a se implantar para comercializar a água bruta da transposição aos estados e municípios nordestinos interessados. Quanto vai custar? Quem e como vai pagar? Tem alguém que responda? Ou “é melhor esconder essa parte”? Águas altamente contaminadas, a tomar pela proliferação atual gigantesca de “algas azuis” (cianobactérias), desde a foz do Rio das Velhas, que recebe os esgotos de Belo Horizonte, até Manga, na fronteira de Minas com Bahia.

As obras iniciais foram finalmente aceleradas pelo Exército, depois de tanta encenação, militarizando a região de Cabrobó e Floresta, no Pernambuco. Estamos de volta ao desenvolvimentismo pós-64/68, que não se constrange em usar a força para impor “o melhor para a nação”?

Para além da ofensa aos movimentos populares, instituições e pessoas que, por excelentes motivos, são contrários e mesmo combatem a transposição, a “dizedeira” presidencial acaba dando oportunidade para clarear os dois lados da questão e da trincheira. Mais que isso, ilustra a real natureza da obra e a estratégia populista, marqueteira, de sua imposição. E deve ser compreendida dentro do contexto da campanha eleitoral para 2010, já deflagrada.

Mostra também o quanto o presidente está distante do Brasil real cá embaixo, enredado que está em tramas e artimanhas do poder pelo poder, sem projeto para o País, a não ser a velha submissão colonial. Quando fala do Nordeste que lhe viu nascer no Agreste Pernambucano reproduz a liçãozinha superada de geografia aprendida em alguma escola primária paulista… Prestasse atenção no semi-árido nos últimos 20, 30 anos, veria o lento mas seguro avanço da sociedade civil organizada na compreensão do que de fato ele é e na proposição de políticas a ele apropriadas. E não só não diria tanta arrogante asneira, como não estaria seu governo reproduzindo o velho discurso e a velha política e a velha indústria da seca.

Lula sabe que por trás da luta contra a transposição estão movimentos sociais tão legítimos agora como quando lhe deram origem como grande líder popular e contribuíram para o eleger e reeleger. Muitos dos quais estão majoritariamente empenhados, em outros campos, em conservar algum caráter popular (menos populista) ao seu governo. E não são movimentos sociais apenas da bacia do São Francisco, mas também e crescentemente no próprio Nordeste Setentrional, como as Frentes Cearense e Paraibana contra a transposição. Movimentos empenhados em desconstruir a idéia de seca e trabalhar as alternativas viáveis e sustentáveis de convivência com o clima semi-árido, que como “semi” não é só seco, tem seu importante período úmido, que o torna o semi-árido mais chuvoso do mundo. Transposição, ao contrário, é alto negócio, econômico e político.

Pescador em águas turvas

Por que descaracterizar esses movimentos nessa luta atribuindo a eles o “caráter burguês” de consumidores de água francesa? Lula está a vender a transposição à classe média? Com que intenção? Parece-nos que sinaliza para os grandes interessados econômicos e políticos que o grande negócio deles está garantido, para o que faz qualquer coisa. Mente descaradamente, inverte o sentido das coisas, renega e desmerece antigos companheiros de luta, etc.

Pescador de águas turvas, Lula mistura os movimentos sociais com os grandes interessados da bacia do São Francisco em disputa cada vez mais acirrada com seus rivais setentrionais pelas mesmas águas sabidamente minguadas do São Francisco. Têm “água Perrier” na geladeira tanto uns quanto os outros, como também do Palácio da Alvorada…

Como a campanha para a presidência em 2010 já está rua, ditos e feitos do presidente – grande, maior eleitor – devem ser lidos sobre esse pano de fundo. Mais ainda quando se trata de “projeto estratégico” como o da transposição. Estratégico do ponto de vista eleitoral e governamental. Eleitoral em duplo aspecto: enquanto capaz de cabalar votos iludidos na região nordestina beneficiária da transposição e como carreador de financiamentos para a campanha entre os grandes interessados no projeto. As empreiteiras, por exemplo, dos maiores financiadores da campanha presidencial passada.

No STF foi apressada a aposentadoria do ministro Sepúlveda Pertence, para substituí-lo pelo ministro conservador Carlos Alberto Direito, em mãos do qual vieram parar os processos que estavam com o antecessor, inclusive as muitas ações contra a transposição. Por que, o que se deve esperar da manobra?

O candidato a 2010 mais desenvolto, Ciro Gomes, ponta de lança dos grandes interesses na transposição, articula com apoio do PCdoB um “bloquinho de esquerda” para ter verossimilhança com ex-operário Lula. E corre o país tentando vender seu peixe. Está preocupando adversários, a julgar pela matéria de capa da revista Veja dessa semana (01/10/07), levantando suspeitas de corrupção sobre um de seus principais assessores.

As obras de revitalização do São Francisco, forçadas pela luta contrária à transposição, para irritação do ministro Geddel Vieira Lima, escapam ao seu controle, deixam de passar pelas prefeituras municipais e ficam tratadas diretamente entre o governo federal e as empresas. A quem beneficia eleitoralmente este esquema, à ministra-candidata Dilma Roussef? A gestão das demais verbas do PAC servirá a qual esquema?

Daqui para 2010, a nação assistirá, indefesa, à disputa cada vez mais renhida. Infelizmente, não é disputa de e por projetos de País, mas só pelo poder e lucros sobre os altos negócios que em nome dos “sem água” fazem os da minoria “que tem água Perrier na geladeira”.

Ruben Siqueira, Sociólogo da Comissão Pastoral da Terra / Bahia, coordena o Projeto Articulação Popular pela Revitalização do Rio São Francisco, colaborador e articulista do Ecodebate

publicado pelo EcoDebate.com.br