EcoDebate

Plataforma de informação, artigos e notícias sobre temas socioambientais

Artigo

transposição do São Francisco: Ouvidos moucos à beira do rio, artigo de Washington Novaes

[O Estado de S.Paulo] Soldados do 2º Batalhão de Engenharia e Construção do Exército iniciaram as obras de transposição de águas do Rio São Francisco para o eixo Norte do semi-árido – começando a concretizar projeto altamente polêmico. Agora, mesmo o bispo dom Luiz Flávio Cappio – que chegou a fazer uma greve de fome, só interrompida com um apelo do presidente da República e com um acordo entre os dois – está dizendo que ‘o acordo não foi cumprido’; que o presidente ‘mentiu para o Brasil e demonstrou a falta de seriedade desse governo com o povo, empurrando um projeto goela abaixo, numa total falta de respeito’. Para ele, ‘a presença do Exército em Cabrobó remonta ao período militar da ditadura’ e é uma ‘agressão ao meio ambiente, à economia e ao povo’ (O Tempo, 10/6).

Setenta e seis empreiteiras apresentaram propostas para os lotes da obra em licitação, no valor de R$ 3,2 bilhões – o custo final está estimado em R$ 6,7 bilhões (A Tarde, 10/6). E desde março está concedida pelo Ibama a licença de instalação que a permite, mas com 51 condicionantes. Já havia outras 31 exigências na licença prévia concedida em maio de 2005, até aqui, aparentemente, também não atendidas. Por essas e outras razões, em fevereiro a Procuradoria-Geral da República (PGR) havia pedido ao Supremo Tribunal Federal (STF) que suspendesse a licença prévia. Quase ao mesmo tempo, a mesma PGR no Distrito Federal recomendara ao Ibama que não expedisse a licença de instalação. Como, entretanto, a própria ministra do Meio Ambiente considerou o projeto ‘ambientalmente seguro’ (Agência Estado, 16/3), seguiu-se em frente – ainda que estejam em tramitação no STF 11 ações, por iniciativa do Ministério Público Federal e estaduais, da OAB e outras. Mas algumas liminares que impediam o início das obras foram suspensas em dezembro de 2006 pelo ministro Sepúlveda Pertence.

Também não tiveram êxito os protestos do Fórum Nacional pela Reforma Agrária e pela Justiça no Campo (31/5), para o qual o governo federal desprezou a oferta de 140 tecnologias alternativas à transposição, ‘diversificadas e adaptadas às diversidades do bioma caatinga e ao clima semi-árido’. A transposição – diz o fórum – reforçará ‘a estrutura agrária, econômica, política e social que é a grande responsável pelo quadro de sofrimentos que há séculos atormenta o Nordeste’. A seu ver, vai agravar o problema da seca, aumentar o custo da água e exigir subsídios cruzados que serão pagos pela população, para beneficiar principalmente grandes projetos de exportação de camarões, grãos e flores, entre outros. Outros protestos vieram de etnias indígenas, da Comissão Pastoral da Terra e da CUT. Ambientalistas disseram que nos últimos 40 anos o rio já perdeu 40% de seu volume de água (Ecodebate, 11/6). E que a própria Agência Nacional de Águas já mostrou ser possível atender a todos os núcleos urbanos do semi-árido com mais de 5 mil habitantes a um custo 50% inferior ao da transposição. Houve quem lembrasse que com 1 milhão de cisternas de placa se atenderia a milhões de pessoas de todas as comunidades isoladas, as maiores vítimas da seca, a um custo muito menor que o da transposição.

De nada adiantaram críticas e protestos. Para o ministro Geddel Vieira Lima (que era contra o projeto, antes de ganhar o cargo), as pessoas que criticam a transposição ‘na maioria das vezes desconhecem o projeto ou são agentes políticos que querem ‘compensação” (Correio Braziliense, 17/4). Para o ex-ministro Ciro Gomes, há dois grupos de opositores: um, ‘de má-fé’, seria composto de pessoas que querem manter reserva de valor, áreas ou projetos de irrigação à beira-rio; o outro seria composto de ‘pessoas bem-intencionadas, mas desinformadas’.

Há dez anos o autor destas linhas escreve sobre o tema neste espaço, levantando dúvidas e questões até aqui sem resposta. Para ficar apenas nos artigos de 2005 para cá, foram mencionados estudos dos professores Aldo Rebouças (USP), João Abner (UFRN) e João Suassuna (Fundação Joaquim Nabuco), lembrando que o problema do semi-árido não é de escassez de recursos hídricos, é de ‘má gestão’; os consumos urbanos não chegam a 10% da disponibilidade e podem ser atendidos por ela. Na verdade, 70% da água transposta servirá a projetos de irrigação e 26%, ao consumo urbano, sem atender às comunidades isoladas. Podem estar embutidos no preço da água subsídios aos irrigantes (quem os pagará, os demais consumidores?). Tudo isso foi perguntado num artigo neste espaço em 28/1/2005.

Em 20 de maio desse ano, comentou-se a análise do Ibama sobre o estudo de impacto ambiental, mostrando que a água irá em sua maior parte para açudes onde o nível de perda por evaporação chega a 75% (alega-se que diminuirá). Que o número de beneficiados no estudo varia entre 12,4 milhões e 7,21 milhões. Que os hectares irrigáveis também oscilam de 186 mil a 161 mil. E, mais grave, ‘20% dos solos irrigáveis pelo projeto têm limitação para uso agrícola; somados aos solos litólicos, notadamente impróprios’, chega-se a mais de 50% do total; e ‘62% precisam de controle, por causa da forte tendência à erosão’. Com tudo isso, licenciou-se o projeto…

Em artigos posteriores (30/9/2005, 6/1/2006 e 22/3/2007), novos questionamentos foram levantados. Os do Tribunal de Contas da União (custos superestimados), do biólogo Ivan Bergier Tavares de Lima (sobre o desprezo, no projeto, aos cenários do clima no semi-árido e suas repercussões sobre os recursos hídricos), da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (sobre o custo da água, o volume a ser transposto – que poderia chegar a 47% da disponibilidade). Nada disso foi respondido pelos ouvidos moucos.

Só ficando, então, com a frase de Ariano Suassuna: ‘Fazer obras contra a seca no Nordeste é como criar um departamento para combater a neve na Sibéria.’ Pelo menos alivia o estado de espírito.

(www.ecodebate.com.br) artigo originalmente publicado pelo O Estado de S.Paulo – 22/06/2007