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Artigo

O preço da carne barata: desmatamento e escravidão, por George Monbiot

[Leiam, também, ao final do artigo, a opinião do EcoDebate]

“Se não é ético comer carne britânica, é 100 vezes pior comer carne brasileira.”
George Monbiot, The Guardian

Você está a pagar para queimar a floresta tropical?
Se está a comprar carne brasileira, a resposta é sim
George Monbiot , in The Guardian 18/10/2005

Durante os últimos cinco anos, estive em guerra contra a Farmers for Action
[Fazendeiros pela Acção]. Esses são os neandertais que pararam o trânsito e
bloquearam as refinarias, na esperança de persuadir o governo a reduzir o preço do
combustível. Não importa com que frequência se explique que o combustível
barato, o qual permite aos supermercados comprarem onde quer que o preço da
carne ou dos grãos seja mais baixo, destruiu a agropecuária britânica. Eles ficam
na frente das câmaras e obrigam-nos a olhar, enquanto cortam as suas próprias
gargantas.

Mas, embora rangendo os dentes, devo admitir que eles acertaram em algo. Em
Janeiro, o homem das cavernas chefe, David Handley, advertiu que a febre aftosa
não tinha sido eliminada no Brasil, e que as importações de carne daquele país
arriscavam trazê-la de volta para a Grã-Bretanha [1]. Os compradores ignoraram a
advertência. Na primeira metade deste ano, as importações de carne do Brasil para
o Reino Unido aumentaram em 70%, para 34.000 toneladas [2]. Na semana
passada, um surto foi confirmado no estado do Mato Grosso do Sul.

Seria de esperar, naturalmente, que os produtores britânicos atirassem toda a lama
possível contra as importações baratas. Seria de esperar que eles questionassem os
padrões de higiene dos seus competidores e os impactos sociais e ambientais, e
Handley fez todas essas coisas. Mas, para meu intenso aborrecimento, ele está
correcto em todos os pontos.

Ao contrário dele, não creio que os fazendeiros britânicos tenham um direito divino
de permanecerem no negócio. Não deveríamos estar a comer carne de todo.
Porque a eficiência da conversão de ração para carne é tão baixa, no gado, que não
há produção de alimentos que cause mais desperdício. Os produtores de carne
britânicos estariam extintos se não fosse pelos subsídios e tarifas europeias. A
carne brasileira ameaça-os, só porque é tão barata que pode ganhar na competição
mesmo depois das taxas comerciais terem sido pagas. Mas se não é ético comer
carne britânica, é 100 vezes pior comer carne brasileira.

Até 1990, o Brasil produziu apenas carne suficiente para se alimentar a si próprio.
Desde então, as cabeças de gado cresceram em cerca de 50 milhões, e o país
tornou-se, segundo algumas estimativas, no maior exportador mundial: vende
agora 1,9 milhões de toneladas por ano [3]. O Reino Unido é o seu quarto maior
cliente, depois da Rússia, do Egipto e do Chile [4]. Uma região é responsável por
80% do crescimento da produção de carne brasileira. É a Amazónia [5].

Os últimos três anos foram os mais destrutivos na história da Amazónia brasileira.
Em 2004, 26.000 quilómetros quadrados de floresta tropical foram queimados: a
segunda maior taxa de que se tem registo [6]. Este ano poderia ser pior. E grande
parte disso é causado pela criação de gado.

Segundo o Center for International Forestry Research [Centro Internacional para a
Pesquisa Florestal], os pastos para o gado são responsáveis por seis vezes mais
desmatamento da floresta do que a terra para cultivo: mesmo os famosos
agricultores da soja, que lavraram cerca de 5 milhões de hectares da antiga
floresta, cobrem apenas um décimo do solo ocupado pelos produtores de carne [7].
Os quatro estados da Amazónia nos quais a maioria da carne é produzida são os
quatro com as mais altas taxas de desmatamento.

Os pastos para o gado, se continuarem a expandir-se na Amazónia, ameaçam dois
quintos da floresta tropical restante no mundo. Este não é apenas o mais
diversificado ecossistema, mas também a maior reserva de carbono. A sua
destruição poderia provocar um desastre hidrológico na América do Sul, já que as
chuvas se reduzem à medida que as árvores são abatidas. Na próxima vez que vir
imagens da floresta ardendo, lembre-se de que pode ter pago para isso acontecer.

Muitos brasileiros, especialmente aqueles cuja terra está a ser tomada pelos
criadores de gado, estão a tentar parar a destruição. Os fazendeiros têm um
argumento eficaz: quando as pessoas se queixam, eles matam-nas. Em Fevereiro,
ouvimos um eco do massacre que, até agora, reclamou 1200 vidas [8], quando a
freira norte-americana Dorothy Stang foi assassinada — quase certamente por
produtores de carne. Os fazendeiros que se crê terem-na assassinado foram, como
os fazendeiros em toda a Amazónia, protegidos pela polícia [9].

Pela mesma razão, e apesar dos melhores esforços do Presidente Lula, os
fazendeiros estão agora a empregar cerca de 25.000 escravos nas suas terras [10].
Estas pessoas são transportadas a milhares de milhas dos seus estados natais, e
depois — forçados a comprar os seus mantimentos na loja do fazendeiro, a preços
inflacionados — mantidas em dívida permanente. Devido à expansão da produção
de carne na Amazónia, a escravidão no Brasil quintuplicou em 10 anos [11].

Assim, um governo que — apesar dos seus melhores esforços — fracassou em
acabar com a escravidão, o assassínio e a catástrofe ambiental, espera que nós
acreditemos que os padrões de higiene da sua produção são tão rigorosamente
aplicados como os de qualquer outra nação. Qualquer pessoa que tenha trabalhado
na Amazónia sabe que não existe certificado que não possa ser comprado, e poucos
oficiais locais que não estejam a trabalhar para as pessoas que deveriam regular.
Se a febre aftosa é endémica na Amazónia brasileira — a maioria da qual é agora
registrada pelo governo como “segura” — os ministros em Brasília serão os últimos
a saber.

Quando a doença atingiu o Reino Unido pela última vez, em Fevereiro de 2001, o
governo britânico culpou a carne importada pelos restaurantes chineses. Mas em
Abril daquele ano, descobrimos que a fazenda onde se originou a doença, em
Heddon-on-the-Wall, Northumberland, tinha estado a receber lavaduras, para os
seus porcos, do campo de treinamento do exército de Whitburn, perto de
Sunderland. O exército estava a importar parte da sua carne do Brasil e do
Uruguai, duas das praças-fortes da estirpe de tipo O, que infectou os nossos
rebanhos. O Ministro da Defesa insistiu que a carne veio de «regiões livres da
doença» na América do Sul. Uma delas era Mato Grosso do Sul, o estado onde a
febre aftosa acaba de irromper.

Assim, quem é que neste país a tem comprado? A Tesco diz que «bem mais de
90%» da sua carne vem do Reino Unido. Ela parou de comprar carne brasileira
desde o surto da semana passada, mas não me pode dizer em que quantidades
comprava carne do Brasil antes, porque é um assunto «comercialmente sensível»
[13]. Dei a volta a uma das suas lojas e descobri que toda a carne fresca estava
etiquetada «britânica» em grandes letras vermelhas. Mas seis das suas refeições
processadas e vendidas com a sua própria marca (geralmente as mais baratas),
continham «carne da América do Sul», três continham «carne da América do
Sul/UE» e uma só «carne». A maioria das marcas fornecidas por outras companhias
continham somente «carne» [14].

Sainsbury admitiu comprar 5% do Brasil, até a doença ter sido reportada [15]. O
homem da Asda disse-me que a sua cadeia de lojas comprou «menos de 2%» da
sua carne do Brasil, neste verão, e nada desde então [16]. O mercado principal,
segundo ele, são as cadeias de restaurantes e de pubs. Eu tentei o McDonald’s e o
Burger King: ambos disseram que não compram do Brasil. O mesmo para a
companhia de pubs Wetherspoons. As Punch Tavern não compram alimentos, mas
os seus locatários são supridos por companhias de abastecimento como a Brake
Brothers. A Brake Brothers admite comprar carne do Brasil, mas o volume,
novamente, é assunto «competitivamente sensível» [17]. Isso não significa
necessariamente que qualquer dessas empresas tenha comprado carne da
Amazónia: mas comprar carne de qualquer outra região do Brasil cria um buraco no
mercado doméstico, que será preenchido pela crescente produção na floresta
tropical. Assim, dado que estamos a importar dezenas de milhares de toneladas por
ano, para onde vão? Onde está a carne?

Talvez os leitores do Guardian me possam ajudar a localizá-la. Ao contrário de
outras carnes, o país de origem da carne fresca deveria — devido à BSE — ser
impresso no pacote. Assim, com um pouco de trabalho de detective nas lojas e
supermercados e nas cozinhas dos pubs, escolas, hospitais e quartéis, não deveria
ser muito difícil de lhe seguir a pista. Logo que a encontre, sugiro que retroceda.

________

[1] Sem autor, FFA calls for Brazilian import ban. Farmers’ Weekly, 5 Janeiro 2005.

[2] The Meat and Livestock Commission, 12 Agosto 2005. European Market Survey
05/31.

[3] Dan Buglass, Brazil on alert after foot and mouth case. The Herald, 12 Outubro
2005.

[4] The Meat and Livestock Commission, ibid.

[5] David Kaimowitz, Benoit Mertens, Sven Wunder e Pablo Pacheco, Hamburger
Connection Fuels Amazon Destruction: Cattle ranching and deforestation in Brazil’s
Amazon. Center For International Forestry Research, 2004.
http://www.cifor.cgiar.org/publications/pdf_files/media/Amazon.pdf

[6] William Laurence, Razing Amazonia. New Scientist, 15 Outubro 2005.

[7] ibid.

[8] Gareth Chetwynd, ‘Broad conspiracy’ behind nun’s killing in Brazil. The
Guardian, 2 Abril 2005.

[9] Ibid.

[10] Larry Rohter, Brazil’s Prized Exports Rely on Slaves and Scorched Land. The
New York Times, 25 Março 2002.

[11] ibid.

[12] Joe Murphy, Army ‘caused original foot and mouth infection’. The Telegraph,
29 Abril 2001.

[13] John Church, Tesco press officer, 17 Outubro 2005.

[14] Tesco, Cowley Road, Oxford, 17 Outubro 2005.

[15] Sainsbury’s press office, 14 Outubro 2005.

[16] Asda press office, 14 Outubro 2005.

[17] Simon Henrick, Brake Brothers, 14 Outubro 2005.

http://www.pt.indymedia.org/ler.php?numero=66003&cidade=1

(EcoDebate) Fonte – O artigo foi originalmente publicado no Jornal The Guardian,
18/10/2005 e em O Estado de São Paulo em 23/10/2005

Texto & Contexto – a opinião do EcoDebate
Não pretendemos discutir o artigo em si mesmo, tendo em vista que defendemos vigorosamente o direito de opinião e livre manifestação.

No entanto, é cabível tentar interpretar o contexto do artigo. As reações internacionais ao
crescente desmatamento foram imediatas. Igualmente imediatas foram as reações dos
setores ultraconservadores.

Em resposta à critica que cresce no exterior, diversos setores, economicamente interessados
na devastação, levantaram as bandeiras da internacionalização da amazônia e acusações de
que os críticos não querem o desenvolvimento do país, bem como que os ambientalistas são
colaboracionistas de interesses internacionais. Mais uma vez acusam ambientalistas e ONGs
de “crime” lesa-pátria.

O governador Maggi foi um deles. Na visão do governador, os que questionam e criticam a
devastação como uma política pública, diligentemente desenvolvida pelo governador do MT,
apenas não querem o desenvolvimento ou manifestam a intenção de retardar o
desenvolvimento.

Se há o que coloca em risco o desenvolvimento é a própria devastação em prol da soja e da
pecuária, que já começa a enfrentar o risco de boicote na Europa. As articulações neste
sentido já começaram, porque há quem defenda, na OMC e na União Européia, que a
devastação ambiental seja considerada como subsídio indireto, da mesma forma que a
exploração de mão de obra infantil e/ou escrava. O pior é que é verdade, porque neste
modelo se privatiza o lucro com os ativos ambientais e socializam-se os passivos ambientais.

Já alertamos que os riscos de boicote a produtos/serviços brasileiros e a perda de
financiamentos internacionais são reais e, como demonstra recente editorial do NYT, já
começaram.

A expansão irresponsavelmente descontrolada da fronteira agropecuária está devastando o
presente e pode exterminar o futuro, não apenas do cerrado e da amazônia, como de toda a
agricultura sustentável de nosso país.

Este artigo, de George Monbiot, expressa o início da articulação européia pelo boicote já
avança. E com isto, de fato, teremos ainda maiores perdas, além das decorrentes da
devastação.

É evidente que o atual processo de devastação abre portas a oportunistas de todo tipo,
principalmente os que defendem os astronômicos subsídios à agropecuária (europeus ou
norte-americanos) e para os quais o Brasil é um importante concorrente.

Se há alguém que comete crime de lesa-pátria, certamente não são os ambientalistas e
ONGs.

Henrique Cortez, henriquecortez@ecodebate.com.br
Coordenador do Portal EcoDebate

Nota do EcoDebate – recomendamos, ainda, que leiam os comentários de Evandro
Ferreira, no Blog Ambiente Acreano.