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Avanços no saneamento básico: as armadilhas dos números, artigo de Léo Helleri

Ruas da Estrutural, a dez quilômetros do centro de Brasília. Bairro popular não tem coleta de esgoto. No Dia Mundial da Água, ONU alerta para o problema da falta de saneamento no Brasil. O índice médio de coleta de esgotos no país é de 69,7%, sendo que o tratamento atinge apenas 25% Foto: Valter Campanato/ABr
Ruas da Estrutural, a dez quilômetros do centro de Brasília. Bairro popular não tem coleta de esgoto. No Dia Mundial da Água, ONU alerta para o problema da falta de saneamento no Brasil. O índice médio de coleta de esgotos no país é de 69,7%, sendo que o tratamento atinge apenas 25% Foto: Valter Campanato/ABr

[Ecodebate] Tem recebido recente repercussão na imprensa o estudo comparativo entre os períodos governamentais Fernando Henrique Cardoso e Lula, com base em indicadores da PNAD, de autoria do Prof. Claudio Salm, da UFRJ. A conclusão geral do estudo é pela equivalência do avanço de indicadores sociais, quando se comparam ambos os períodos. Trato aqui de trazer ao debate alguns elementos relacionados aos indicadores de saneamento básico. Em síntese, argumento que tal tipo de análise necessita ser cuidadosa, em dois sentidos: os números requerem leitura menos linear e simplista e é fundamental agregar, à análise quantitativa, uma avaliação qualitativa das políticas praticadas. Embora reduzido o espaço disponível nesta seção, tento sintetizar alguns desses aspectos, com base nas matérias publicadas.

O indicador relativo ao abastecimento de água revela que, em 1996, 48,5% da população pobre tinham acesso à rede geral e este número se eleva para 59,6% em 2002 e 68,3% em 2008. Ou seja, tem-se elevação de 11 pontos percentuais no primeiro período, representando o governo FHC, e de 9 no segundo, representando o período Lula. Os números, em uma primeira análise, sugerem desempenhos equivalentes. Contudo, na cobertura por redes de saneamento, avançar sobre percentuais mais baixos é mais fácil do que quando estes se aproximam da universalização do atendimento, pois são justamente os locais com urbanização mais precária, como vilas e favelas, os mais refratários e complexos para o recebimento dos benefícios. Por outro lado, avaliar o desempenho do abastecimento de água com base apenas na conexão à rede fornece uma pálida imagem da forma como ocorre o atendimento, pois oculta as imprescindíveis informações sobre a qualidade da água consumida e a ocorrência de descontinuidades no abastecimento.

Os dados divulgados sobre o atendimento pela coleta de esgotos para a população pobre mostram avanço de 9 pontos percentuais e 11 pontos, para o primeiro e o segundo períodos respectivamente, atingindo 52,4% de cobertura em 2008. Mostra, igualmente, aparente desempenho e aqui cabe o mesmo comentário anterior (elevar de 41 para 52% constitui façanha maior do que elevar de 32 para 41%). Além disso, a análise apenas deste dado pressupõe que a solução de redes coletoras é a única ou a melhor, desconhecendo importante debate sobre a tecnologia mais apropriada para cada tipo de assentamento humano. E, por fim, ignora a existência de outras unidades do sistema de esgotamento sanitário, como a disposição final, uma das maiores dívidas ambientais do setor de saneamento. Dados da Pesquisa Nacional de Saneamento Básico – PNSB, de 2000, mostram que apenas 14% das localidades brasileiras tinham algum tipo de tratamento de esgotos, resultando no lançamento de 2/3 do volume de esgotos coletados nos cursos de água, sem qualquer tipo de tratamento.

Quanto à coleta de resíduos sólidos, temos um avanço percentual de 21 pontos no primeiro período e de 7 no segundo, mostrando aparente superioridade do governo FHC. Entretanto, os números revelam sobretudo a tomada de consciência que os municípios tiveram na década de 1990 quanto à necessidade de manejo mais adequado dos resíduos urbanos. É bom lembrar que em 1992 foi realizada a Conferência do Rio de Janeiro. Neste campo, mais uma vez, não se informam as soluções adotadas para o destino dos resíduos, outra grave mazela do saneamento. A mesma PNSB-2000 levanta que em 60% das localidades brasileiras esta disposição ocorre de forma inadequada.

Várias são as limitações da abordagem, na base quantitativa adotada. Conforme já referido, primeiramente os números mostram apenas parte dos requisitos esperados para um serviço adequado, excluindo essencialmente a dimensão da qualidade como o serviço é prestado. Deve-se destacar, porém, que lamentavelmente nossas bases de informação nem sempre permitem a realização da análise mais completa necessária.

Além disto, é limitado comparar avanços, com base em pontos percentuais, e atribuir diferenças – ou semelhanças –ao governo do período. Os investimentos federais em saneamento básico têm um período de maturação longo. Entre uma decisão pela aplicação de determinado montante de recursos e o resultado dessa aplicação em termos dos benefícios efetivos decorre um período não inferior a três anos. Há que se elaborar projetos, licitar obras, adquirir materiais, executar as obras, conectar as moradias e iniciar a operação. Assim, poder-se-ia sugerir que parte dos avanços – ou o refreamento de maiores avanços – no período 1996-2002 possa ser atribuído ao governo anterior, da mesma forma que os dados do período 2002-2008 mesclam iniciativas em ambos os governos.

Outro aspecto, não desprezível, é que o saneamento básico é de titularidade municipal, havendo uma polêmica jurídica sobre a titularidade nas áreas metropolitanas. E a prestação dos serviços de água e esgotos tem sido municipal ou estadual. Portanto, a eficácia das políticas de saneamento geradas no nível federal, em especial a concessão de recursos, tem importante componente na gestão municipal e estadual destes serviços. Logo, comparar dois períodos históricos distintos sem avaliar o comportamento desse componente, é outra perigosa simplificação na análise.

Por fim, há que se desenvolver uma avaliação apropriada das políticas federais de saneamento básico praticadas em 1994-2002 e 2003-2009. E, nesse caso, a realidade não deixa dúvidas. A média anual de investimentos federais no governo Lula, em relação ao PIB, é mais que o dobro da média apurada nos dois mandatos de FHC, com uma tendência crescente nos últimos anos, graças ao PAC. A política do governo FHC para o saneamento foi de contenção dos investimentos para as entidades públicas e de preparação do setor para a privatização, inspirado em modelo do Banco Mundial e pressionado pelo FMI, aposta esta não realizada e modelo que não se mostrou capaz de universalizar o acesso aos serviços nos países pobres. O governo Lula, por outro lado, tem demonstrado inequívocos sinais de compromisso com o setor, ao criar a Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental, no âmbito do Ministério das Cidades; ao aprovar a Lei 11.445/2007, a Lei do Saneamento, após quase 40 anos de vácuo legal; ao elevar o montante de recursos para o setor e ao abraçar a iniciativa de elaboração do Plano Nacional de Saneamento Básico, que, espera-se, orientará esta política nos próximos 20 anos.

Parafraseando o autor do estudo, não ou filiado a partido político. Entretanto, defendo que comparar a política pública de dois períodos governamentais não é uma mera confrontação de indicadores frios e descontextualizados. O rigor acadêmico exige esforço com maior profundidade.

Prof. Dr. Léo Heller, do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da UFMG

* Colaboração de Rachel Calderaro para o EcoDebate, 25/01/2010

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