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Modelo de livre mercado de comercialização de direitos à água destrói cidade chilena

Quillagua, um dos lugares mais secos do mundo, tinha 800 habitantes em 1940. Atualmente são 120 habitantes.Foto de Tomas Munita/The New York Times
Quillagua, um dos lugares mais secos do mundo, tinha 800 habitantes em 1940. Atualmente são 120 habitantes. Foto de Tomas Munita/The New York Times

Durante as últimas quatro décadas aqui em Quillagua, uma cidade registrada nos livros de recordes como o local mais seco da terra, os moradores algumas vezes enxergaram gotas de chuva sobre as montanhas à distância. Mas elas nunca atingiram o solo, tendo se evaporado como uma miragem ainda no ar.

O que a cidade tinha era um rio, que alimentava um autêntico oásis no deserto de Atacama. Mas, segundo os moradores, as companhias mineradoras poluíram e compraram uma quantidade tão grande da água que durante vários meses por ano o rio transforma-se em apenas um filete imprestável. Matéria de Alexei Barrionuevo, em Quillagua (Chile), no The New York Times.

Quillagua é uma das várias pequenas cidades que estão sendo engolidas em meio à cada vez mais intensa guerra pela água no país. De acordo com os especialistas, em nenhum outro lugar o sistema de compra e venda de água é mais permissivo do que no Chile, onde os direitos à água constituem-se em propriedade privada, e não em um recurso público, e podem ser comercializados como mercadorias, em um ambiente caracterizado por pouca fiscalização governamental e escassas salvaguardas do meio ambiente.

Em algumas áreas a propriedade privada é tão concentrada que uma única companhia de eletricidade da Espanha, a Endesa, comprou até 80% dos direitos à água em uma enorme região no sul do país, provocando uma onda de protestos. E no norte, os produtores rurais estão competindo com companhias de mineração pelo aproveitamento dos rios e exploração das escassas reservas de água, deixando cidades como estas completamente secas e definhando.

“Parece que tudo está contra nós”, lamenta Bartolome Vicentelo, 79, que no passado cultivava alimentos e pescava camarões no Rio Lova, que abastece Quillagua. A população caiu para cerca de um quinto do que era duas décadas atrás. Tanta gente saiu da cidade que hoje só restam 120 pessoas aqui.

Alguns economistas elogiam o sistema de comercialização de direitos à água no Chile, que foi criado em 1981, durante a ditadura militar, afirmando que se trata de um modelo de eficiência do livre mercado que permite que a água seja utilizada pelos projetos de maior valor econômico.

Mas outros acadêmicos e ambientalistas argumentam que o sistema do Chile é insustentável porque promove a especulação, coloca o meio ambiente em risco e permite que interesses menores sejam esmagados por forças poderosas, como a indústria mineradora chilena.

“O modelo chileno foi longe demais no rumo da regulação descontrolada”, afirma Carl J. Bauer, especialistas nos mercados de água do Chile que leciona na Universidade do Arizona. “É um modelo que não levou em conta o interesse público”.

A Austrália e o oeste dos Estados Unidos têm sistemas um pouco semelhantes a este, mas, segundo Bauer, existe neles regulação ambiental e resolução de conflitos mais fortes do que no Chile.

O Chile é um exemplo notável da polêmica sobre a crise da água em todo o mundo. Temores quanto à carência de água prejudicam a expansão econômica chilena em áreas de recursos naturais como a de cobre, de frutas e de pescados – todas elas conhecidas por necessitarem de muita água em um país que tem reservas aquíferas limitadas.

“O dilema que estamos enfrentando é determinar se podemos continuar nos desenvolvendo com a mesma quantidade de água que possuímos hoje”, explica Rodrigo Weisner, diretor do setor de recursos hídricos do Ministério de Obras Públicas.

“Não existe um consenso político a respeito de como lidarmos com o desafio de explorarmos os recursos que temos – incluindo as maiores reservas de cobre do mundo – em um país que possui o deserto mais árido do planeta”, afirma Weisner.

Fernando Dougnac, um advogado ambiental de Santiago, diz que o equilíbrio é especialmente difícil porque “o mercado é capaz de promover a regulação para que haja mais eficiência econômica, mas não promove mais eficiência sócio-econômica”.

Ultimamente, a abordagem do país quanto à questão dos direitos à água tem exibido algumas falhas. “Na cidade de Copiapo, no deserto de Atacama, a comercialização descontrolada e uma seca de dois anos fez com que a quantidade real de água contida no rio acabasse sendo muito menor do que aquela contida nas quotas de exploração da água”, afirma Dougnac.

Quillagua é mencionada no livro Guiness de recordes mundiais como o “local mais seco da terra” há 37 anos, mas ela mesmo assim prosperou devido ao Rio Loa, chegando a ter uma população de 800 habitantes na década de 1940. Um trem de longo curso parava aqui – atualmente a estação está abandonada – e a escola municipal tinha capacidade para quase 120 alunos (hoje em dia há apenas 16 estudantes).

Segundo Raul Molina, geógrafo da Universidade do Chile, a prosperidade começou a desaparecer em 1987, quando o governo militar reduziu em mais de dois terços a quantidade de água para a cidade. Mas os maiores golpes ocorreram em 1997 e 2000, quando dois episódios de contaminação arruinaram o rio, impedindo que a sua água pudesse ser utilizada para a irrigação de culturas agrícolas ou para o fornecimento ao gado durante os críticos meses de verão.

Um estudo inicial conduzido por um acadêmico resultou na conclusão de que a contaminação de 1997 foi provavelmente provocada por um projeto de mineração de cobre administrado pela Codelco, a gigantesca mineradora estatal. Depois do incidente o governo chileno contratou especialistas alemães, que afirmaram que a contaminação tinha uma origem natural.

Em 2000, o Serviço de Pecuária e Agricultura, que integra o Ministério da Agricultura do Chile, refutou essa conclusão, e afirmou em um relatório que a responsabilidade pela contaminação era de pessoas e não da natureza. Foram encontrados metais pesados e outras substâncias associadas ao processamento de minérios que mataram os camarões do rio e fizeram com que a sua água não pudesse ser consumida pelo gado (faz décadas que a água potável para os moradores é transportada de outras regiões).

A Codelco, a maior companhia mineradora de cobre do mundo, rejeita qualquer responsabilidade. Pablo Orozco, um porta-voz da companhia, diz que a água do rio é ruim há anos, e que chuvas pesadas ocorridas na época dos episódios de contaminação provocaram uma enchente de curto período no curso d’água, o que fez com que sedimentos e outras substâncias fossem arrastados para a água.

Mas a natureza do debate é em grande parte acadêmica porque, sem água apropriada para irrigar as culturas, muitos moradores não veem motivo para continuar resistindo às ofertas externas de compra dos direitos à água da cidade. Uma companhia mineradora, a Soquimich, ou SQM, acabou comprando cerca de 75% dos direitos à água de Quillagua. A maioria dos moradores se mudou; aqueles que permaneceram na cidade tem em média 50 anos de idade.

“Quillagua não será capaz de resistir por muito mais tempo”, adverte Alejandro Sanchez, 77, apontando com uma bengala para um campo completamente seco e desprovido de vegetação, onde antigamente ele plantava milho e alfafa.

Em 2007, a agência nacional de água passou a investigar alegações de que a Soquimich estaria extraindo mais água do Rio Loa do que teria direito. As autoridades dizem que o inquérito ainda está em andamento, embora a companhia sustente que nunca retirou água além da quantidade que lhe foi designada.

Mas no início do ano passado, a agência regional de água passou a fazer monitoramento por satélite do Rio Loa. Após não ter registrado fluxo algum em 2007, Quillagua de repente recebeu pequenas quantidades de água no ano passado, e novamente em janeiro deste ano.

Segundo Claudio Lam, diretor regional da agência chilena de água, isso fez com que as autoridades suspeitassem que as companhias estivessem drenando mais água do que o permitido.

Mesmo assim, a água que chegou à cidade no verão ainda não é suficiente para possibilitar o cultivo de lavouras, afirma Victor Palape, chefe dos índios aimara de Quillagua.

A cidade só sobrevive devido aos caminhões pipa que chegam diariamente, e que são parcialmente financiados pela Codelco e pela Soquimich, as duas companhias que os moradores culpam pelos seus problemas.

Os moradores de Quillagua permanecem determinados. Palape, o dono do principal restaurante da cidade, ainda sonha em atrair turistas para a observação das 108 crateras formadas por meteoros. As crateras estão espalhadas por Quillagua e pelas redondezas.

A irmã dele, Gloria, também se orgulha do lugar ocupado por Quillagua na história.

“Para ser capaz de viver no local mais árido do mundo, com tudo o que aconteceu, o povo daqui precisa ser resistente e teimoso”, diz ela. “Não vamos desistir”.

Tradução: UOL

Matéria [Chilean Town Withers in Free Market for Water] do The New York Times, de 14/03/2009, no UOL Notícias, 17/03/2009 – 00h01.

[EcoDebate, 20/03/2009]

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