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Esgoto Potabilizado, artigo de Paulo Afonso da Mata Machado

Estação de tratamento para potabilização de esgoto, em Orange County, Califórnia. Foto do NYT
Estação de tratamento para potabilização de esgoto, em Orange County, Califórnia. Foto do NYT

[EcoDebate] A imprensa tem divulgado, cada vez com maior ênfase, que o planeta vai deparar-se com uma grande crise de água potável. Alguns dizem que a água será a maior riqueza natural deste milênio, outros que vai faltar água para beber e outros, ainda, que haverá guerra por causa de água. Há os que já afirmam que a água seja apenas uma “commodity” .

De acordo com as mais recentes avaliações, os 1.360 quatrilhões de toneladas de água do planeta acham-se assim distribuídos :

· 97% de água salgada;
· 2,2% em calotas polares e geleiras;
· 0,8% de água doce.

Os dados acima indicam que será inevitável a dessalinização da água do mar, que hoje é feita de forma muito tímida, com a produção de menos de 10 bilhões de m3 por ano de água dessalinizada, dos quais a décima parte se processa apenas na cidade de Ryad, na Arábia Saudita, onde praticamente nunca chove nem existem rios ou lagos de superfície .

O aumento na demanda de água e a progressiva poluição dos mananciais tem feito as empresas de saneamento buscarem água cada vez mais longe, como a Sabesp, que importa água bruta do rio Piracicaba (Sistema Cantareira). Ivanildo Hespanhol, ardoroso defensor do reúso da água, é crítico dessas medidas. Segundo ele, “(…) o paradigma que nós estamos adotando hoje é o do Império Romano. O aqueduto Cláudia, que não foi o maior aqueduto construído pelos romanos, tinha 40 km de extensão. É a mesma idéia: à medida que a cidade crescia e os rios próximos eram poluídos, eles iam mais à frente para captar água.”

Não se pode continuar a agir assim. Temos que nos lembrar de que a água é para ser usada e reusada e a natureza vem operando o ciclo hidrológico desde que o mundo é mundo.

Com relação à situação do tratamento de esgotos no Brasil, pesquisa realizada pelo IBGE em 4425 municípios no período de 1989 a 1990 indicou que apenas 8% dos esgotos gerados no país recebiam tratamento adequado, sendo o restante lançado diretamente no ambiente . Nos últimos anos, houve melhora com a construção de novas estações de tratamento de esgoto, mas a situação nas regiões Norte e Nordeste ainda é calamitosa.

O reúso da água está sendo aconselhado pela própria ONU. De acordo com relatório redigido pela Agência Internacional de Energia Nuclear (IAEA), estima-se que 1,1 bilhão de pessoas no mundo não tenham acesso a água potável, cerca de 2,5 bilhões careçam de saneamento básico e mais de 5 milhões por ano morram de doenças causadas por água contaminada – um número dez vezes maior que o número de mortos em guerras em todo o mundo .

O reúso da água para a agricultura vem sendo feito com absoluto sucesso em Israel . No Brasil já existem alguns projetos, destacando-se os realizados pela Universidade de Brasília, que, desde a década passada, vem realizando trabalhos nesse sentido. Ilma Jesus dos Santos, analisando os efluentes das ETEs do Distrito Federal, concluiu que, embora os efluentes das ETEs apresentem bons resultados em termos de tratamento de esgoto, será necessário um estudo individualizado de cada ETE em relação ao tipo de reúso que se pretende adotar, caso se deseje a implantação de um programa nesse sentido. Com relação à oferta de água de reúso, ela chega a uma conclusão desestimulante: em algumas bacias há oferta de efluente, mas não há pontos de consumo , indicando que o fornecimento de água para reúso com restrições nem sempre é a melhor solução.

Ao invés de se adotar um programa de reúso com restrições, muito mais viável economicamente é a adoção de um programa de potabilização do esgoto, ou seja, que a água de reúso possa ser usada sem restrições.

A viabilidade funcional da potabilização de esgoto já está demonstrada. A primeira estação de potabilização de esgoto foi feita nos Estados Unidos em 1976 e se denomina Water Factory 21, localizando-se em Orange County, California. O objetivo era lançar o esgoto tratado no subsolo e diluí-lo na água subterrânea, impedindo assim sua salinização por percolação da água do mar. O New York Times informa que vai ser feito um reservatório para distribuição à população da água obtida por meio da potabilização do esgoto .

Entretanto, muito antes de ser construída essa estação, a Namíbia construiu a sua. Como nesse país a água é muito escassa, foi feito um grande investimento para se permitir o reúso do esgoto doméstico. Assim, a estação de tratamento de água denominada Goreangab Reclamation Plant trabalha exclusivamente com o esgoto tratado pela ETE de Gammams. O efluente dessa ETE é distribuído entre as duas plantas da ETA. Na primeira, há as etapas de coágulo-floculação, flotação em ar dissolvido, filtração, adsorção em colunas de carvão ativado e desinfeção com cloro. Na segunda, o efluente da ETE recebe carvão ativado em pó e pré-ozonização antes da coágulo-floculação, flotação em ar dissolvido, adição de permanganato de potássio, filtração, desinfecção com ozônio, oxidação com peróxido de hidrogênio, adsorção em carvão ativado, ultrafiltração e aplicação de cloro . Em seguida, é feito o armazenamento da água em lençol freático, de onde é removida através de poços e introduzida no abastecimento público de Windhoek.

É evidente que um investimento dessa natureza não seria viável economicamente no Brasil. Entretanto, com muito menor número de unidades, o Brasil vem tratando água de má qualidade e obtendo água potável. É o caso da estação de tratamento de água do rio Guandu, que importa água do rio Paraíba do Sul para abastecer mais de 2 milhões de habitantes do Rio de Janeiro. Ela pode ser considerada uma verdadeira estação de potabilização de esgoto, já que o rio Paraíba do Sul recebe o esgoto sanitário de municípios paulistas, mineiros e fluminenses a montante da estação, além dos efluentes de inúmeras indústrias do Vale do Paraíba. Quando a poluição fica muito intensa, o fornecimento é interrompido, porque a estação de tratamento do Guandu não consegue transformar água bruta em água tratada . Não consegue porque há necessidade de uma potabilização de esgoto e não apenas de um simples tratamento de água.

Para evitar situações como essa, o Governo tem procurado incentivar o reúso da água e, através da Lei 9.433/1997, criou os comitês de bacia hidrográfica. No artigo 20 dessa lei, foi autorizada a cobrança tanto da captação de água como de seu descarte e, no artigo 38, foi atribuída competência a esses comitês para estabelecer o custo do m3 de água captada. Quanto ao lançamento de efluentes, a lei, em seu artigo 21, inciso II, atribuiu competência aos comitês de bacia para fazer a cobrança diferenciada do m3 de resíduo lançado na água, levando em conta suas características físico-químicas, biológicas e de toxicidade.

Portanto, com o advento da Lei 9.433/1997, as empresas de saneamento vão ter que se adaptar para reduzir o descarte de seus efluentes e, com isso, pagar menores taxas. A solução adotada pela Sabesp foi a de vender o efluente de suas estações de tratamento de esgoto como água para fins não potáveis.

Isso, porém, tem pouca viabilidade econômica, já que seu preço é muito reduzido. Em recente negociação para a expansão do Polo Petroquímico de Capuava, a Sabesp se dispôs a vender o efluente de uma ETE a ser adaptada para esse fim por R$ 1,00 o metro cúbico, contra R$ 9,00 o metro cúbico se o esgoto estivesse totalmente potabilizado .

Por outro lado, a venda generalizada de água reusada para as empresas, de modo a reduzir em 20% a vazão de tratamento de água potável, como pretende a Sabesp, vai tornar necessária a construção de uma outra rede de distribuição. Isso é inviável economicamente, pois o custo médio de construção das unidades de captação, adução, tratamento e reservação de água potável é, em geral, inferior ao custo de implantação de uma rede de distribuição.

No caso da expansão do Polo Petroquímico de Capuava, serão construídos 16,5 km de dutos e o custo dessa construção seria muito maior se não fossem construídos 8 km na faixa de servidão da linha do metrô.

Outra questão da venda de esgoto tratado, mas não potabilizado é a necessidade de armazenamento diferenciado por parte das empresas compradoras. No caso da expansão do Polo Petroquímico de Capuava, o armazenamento ficará a cargo da Petrobras, que armazenará a água na Refinaria de Capuava (Recap), devendo, inclusive, fazer novo tratamento para adequar a água ao uso industrial.

Não teria sido muito mais viável economicamente que a água já saísse potabilizada ao ser vendida pela Sabesp?

Há, ainda, um risco sanitário enorme ao se vender água de reúso com tratamento incompleto. Ao comercializar a água, a empresa de saneamento perde completamente o controle sobre ela. Assim, caso o cliente decida usá-la para regar horta ou para fins domésticos, estará ensejando a disseminação de doenças de veiculação hídrica, como a gastroenterite, a febre tifóide, a giardíase e a ascaridíase , . A empresa de saneamento, a quem cabe zelar pelo fornecimento de água saudável, ao vender água com ovos viáveis de helmintos, passa a ser um veículo de disseminação dessas doenças.

Dessa forma, entre a potabilização do esgoto sanitário e a comercialização do efluente de uma estação de tratamento de esgoto, a primeira torna-se uma solução muito mais viável do ponto de vista sanitário.

Poder-se-ia argumentar que a potabilização do esgoto doméstico seria relevante em um país com carência de água, mas não no Brasil, que detém 11,6% de toda a água doce do planeta. Entretanto, toda essa água encontra-se muito mal distribuída: enquanto a Região Norte, com 5% da população do país, detém 73% da disponibilidade hídrica nacional, os restantes 27% estão distribuídos nas áreas habitadas pelos restantes 95% da população .

Por outro lado, esses 27% encontram-se também muito mal distribuídos. O Nordeste tem apenas 0,81% desse percentual (3% do total), sendo que 2/3 estão na bacia do São Francisco. Além do São Francisco, apenas o Parnaíba, no Piauí é perene. Todos os outros grandes rios do Nordeste são intermitentes . Nas localidades que não dispõem de cursos de água perenes, a estação de potabilização de esgoto será um importante meio de garantir água tratada durante todo o ano.

Há ainda que se considerar o problema da disposição do lodo da ETA, principalmente o efluente da lavagem dos filtros. Se lançado diretamente num curso de água, constitui-se em uma fonte de consumo de oxigênio, além de uma forma de assoreamento do curso de água. Algumas alternativas têm sido desenvolvidas, todas elas com restrições: a aplicação no solo pode contaminar o lençol freático e o próprio solo com metais existentes no lodo; as ETAS que utilizam sulfato de alumínio como coagulante, ao lançarem no solo o efluente da lavagem de filtros, provocam a adsorção do fósforo pelos compostos contendo alumínio, reduzindo a produtividade do solo; a utilização de lagoas de lodo tem o inconveniente de os resíduos não poderem ser armazenados por muito tempo, o que faz com que a torta deva ser removida e disposta em outro local; o lançamento do lodo em ETEs é uma alternativa viável sob vários aspectos, mas causa impactos tanto no decantador primário como nos digestores de lodo.

Por outro lado, pesquisa em instalação-piloto chegou à conclusão de que o lançamento de resíduos contendo hidróxido de alumínio melhorou as características do sobrenadante de decantadores de ETE e, quando esta era composta de lagoa de aeração seguida de lagoa de sedimentação, verificou-se melhora na qualidade do efluente quando o lodo continha hidróxido de ferro .

As estações de potabilização de esgoto não terão decantador primário ou digestores de lodo. O efluente da lavagem de filtros será lançado na lagoa de aeração, voltando, portanto para a própria EPE, sem impactos negativos sobre qualquer uma de suas unidades de tratamento.

Resta dizer que o déficit de tratamento de esgoto no Brasil em relação ao tratamento de água é, também, um problema político. A coleta e o tratamento do esgoto não têm o mesmo apelo popular que o tratamento de água e, por isso, é grande o número de cidades que possui água tratada mas não possui tratamento de esgoto ou mesmo coleta de esgoto.

O arranjo em uma única unidade do tratamento de esgoto e do tratamento de água trará dividendos políticos às prefeituras que relutam em tratar ou mesmo em coletar o esgoto de seus munícipes.

Portanto, seja do ponto de vista técnico, seja do ponto de vista sanitário, seja do ponto de vista econômico, seja do ponto de vista político, é conveniente que seja iniciado no Brasil um programa de potabilização do esgoto sanitário.

* Paulo Afonso da Mata Machado
Analista do Banco Central do Brasil
Engenheiro Civil e Sanitarista pela UFMG
Mestre em Engenharia do Meio Ambiente pela Rice University.

[EcoDebate, 16/02/2009]

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