Alfabetização agroecológica com base em Paulo Freire

A prática de uma alfabetização agroecológica com base em Paulo Freire deve unir técnica, cultura, identidade, política e cuidado com a vida.
Artigo de Afonso Peche Filho*
Introdução
A alfabetização, em sua concepção tradicional, é frequentemente entendida como o simples domínio da leitura e da escrita. No entanto, Paulo Freire demonstrou que alfabetizar significa também formar sujeitos conscientes, capazes de interpretar criticamente o mundo e agir para transformá-lo.
A partir dessa perspectiva, é possível expandir o conceito de alfabetização para além da dimensão linguística, alcançando campos como a alfabetização ecológica e, em especial, a alfabetização agroecológica. Esta última consiste em integrar a aprendizagem da palavra à leitura crítica da terra, da natureza, das práticas agrícolas e das relações sociais que sustentam a vida rural.
No contexto atual de crises ambientais, desigualdades sociais e ameaças à soberania alimentar, a alfabetização agroecológica, inspirada no método Paulo Freire, surge como prática transformadora.
Mais do que ensinar técnicas de produção, ela possibilita a construção coletiva do saber agroecológico, ancorado na cultura camponesa, na experiência quilombola, indígena e assentada, e na valorização da vida em sua complexidade.
O método Paulo Freire como fundamento.
Paulo Freire parte de uma premissa central: “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”. Isso significa que o educando já possui saberes, experiências e interpretações de sua realidade antes mesmo de entrar em contato com os códigos escritos. O educador deve, portanto, partir desse universo cultural, trazendo para a sala de aula palavras geradoras e temas significativos, que dialoguem diretamente com a vida do grupo.
No campo agroecológico, essa ideia se concretiza ao tomar como ponto de partida a terra, a lavoura, as sementes, a água, as árvores, os animais e a comunidade. São elementos que constituem o “mundo vivido” do agricultor e que podem ser traduzidos em palavras geradoras, solo, chuva, milho, floresta, roça, feira, adubo, ervas, etc. A alfabetização agroecológica, assim, não separa o aprender a ler do aprender a cultivar de modo sustentável, pois ambos são processos de leitura crítica e transformação da realidade.
O conceito de alfabetização agroecológica
De forma objetiva, a alfabetização agroecológica pode ser definida como:
“Um processo educativo que integra a leitura da palavra com a leitura da natureza e da sociedade, promovendo consciência crítica sobre o manejo da terra, a produção de alimentos e as relações comunitárias, de modo a fortalecer a autonomia dos agricultores e a sustentabilidade dos agroecossistemas.”
Essa alfabetização não é neutra. Tal como defendia Freire, todo ato educativo carrega um projeto político. Ao escolher a agroecologia como eixo, o processo educativo se posiciona contra a lógica do agronegócio convencional, baseado na exploração intensiva, no uso de venenos, na exclusão social, e se coloca ao lado da vida, da diversidade, da justiça social e da soberania alimentar.
Dimensões práticas da alfabetização agroecológica
A prática de uma alfabetização agroecológica com base em Paulo Freire deve unir técnica, cultura, identidade, política e cuidado com a vida. Entre suas dimensões principais, destacam-se:
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Contextualização local: os temas de estudo devem emergir das realidades concretas, por exemplo, erosão em um lote agrícola, dificuldade de acesso à água, perda de sementes crioulas.
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Dialogicidade: não se trata de transmitir técnicas prontas, mas de construir o conhecimento em diálogo entre educadores, agricultores e comunidade.
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Palavras geradoras agroecológicas: utilizar termos significativos, como “adubo verde”, “composto”, “feira”, “abelha”, “cuidar”, para iniciar a leitura e, ao mesmo tempo, discutir práticas de manejo ecológico.
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Círculos de cultura: criar espaços de partilha de experiências, onde o aprendizado se dá em roda, com narrativas de vida, histórias da comunidade e problematização coletiva.
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Consciência crítica: compreender que a degradação do solo, a contaminação da água ou o desmatamento não são fatalidades, mas frutos de escolhas políticas e econômicas que podem ser transformadas.
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Autonomia produtiva: valorizar práticas agroecológicas que devolvem ao agricultor o controle sobre suas sementes, insumos e processos, fortalecendo a soberania.
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Integração entre saberes: articular conhecimentos científicos e populares, reconhecendo o valor dos saberes tradicionais quilombolas, indígenas e camponeses.
Exemplos práticos
A alfabetização agroecológica pode ser ilustrada em diversas práticas concretas:
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Palavra geradora “semente”: o grupo discute o significado da palavra, aprende sua escrita e, ao mesmo tempo, debate a importância das sementes crioulas, a ameaça das sementes transgênicas e as estratégias de preservação comunitária.
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Palavra geradora “água”: além da leitura e escrita, discute-se a gestão comunitária das nascentes, a importância da infiltração no solo e o impacto do uso de agrotóxicos nos mananciais.
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Palavra geradora “feira”: aprende-se a grafar e ler, mas também se reflete sobre circuitos curtos de comercialização, economia solidária e valorização da produção local.
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Práticas coletivas: cada atividade de leitura pode ser acompanhada de uma ação prática, mutirão para preparar um composto, plantar adubo verde, construir uma horta comunitária.
Dessa forma, a alfabetização não fica restrita à decodificação, mas se expande como processo de transformação social.
A alfabetização agroecológica como ato político.
Seguindo Paulo Freire, não há neutralidade no ato de alfabetizar. No campo, a escolha entre uma alfabetização bancária, que apenas transmite códigos, e uma alfabetização agroecológica, que problematiza e emancipa é também a escolha entre reproduzir a dependência ou promover a autonomia.
A alfabetização agroecológica permite que agricultores familiares, quilombolas, assentados da reforma agrária e povos originários se reconheçam como protagonistas da produção de alimentos saudáveis e como guardiões da biodiversidade. Isso tem impacto direto na construção de identidades coletivas e na resistência frente às pressões do agronegócio.
Desafios e perspectivas.
Apesar de seu potencial transformador, a alfabetização agroecológica enfrenta desafios. Entre eles:
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Desvalorização social da educação de adultos, frequentemente tratada como secundária.
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Carência de políticas públicas de apoio, que limitem a ação a iniciativas pontuais.
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Formação insuficiente de educadores preparados para trabalhar de forma interdisciplinar, unindo alfabetização e agroecologia.
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Resistência cultural frente ao poder hegemônico do modelo agrícola convencional.
Ainda assim, experiências em movimentos sociais, cooperativas e escolas do campo mostram que é possível consolidar esse caminho. Programas de educação popular agroecológica, inspirados no método Paulo Freire, têm multiplicado práticas pedagógicas que unem alfabetização, agroecologia e organização comunitária.
Conclusão
A alfabetização agroecológica com base em Paulo Freire transcende a mera aprendizagem de códigos linguísticos. Ela propõe um processo integral de formação humana, no qual aprender a ler e a escrever significa, ao mesmo tempo, aprender a ler a terra, a natureza e as relações sociais. É um ato de emancipação, que fortalece a autonomia dos agricultores, promove a soberania alimentar e resgata a dignidade da vida no campo.
Mais do que um método, trata-se de um projeto político-pedagógico: formar sujeitos conscientes, críticos e solidários, capazes de transformar a realidade a partir da agroecologia. Nessa perspectiva, alfabetizar é semear consciência, cultivar autonomia e colher futuro para o agricultor, para a comunidade e para a própria sociedade.
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* Pesquisador científico do Instituto Agronômico de Campinas – IAC.
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in EcoDebate, ISSN 2446-9394
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