Agricultura de serviços ambientais: Um modelo proposto pelo IAC para a revitalização das bacias hidrográficas
Artigo de Afonso Peche Filho*
Resumo:
A agricultura brasileira enfrenta o desafio de se reinventar em um contexto de mudanças climáticas, escassez hídrica, degradação dos solos e pressão por sustentabilidade. Nesse cenário, o Instituto Agronômico de Campinas (IAC), por meio do seu Centro de Engenharia e Automação (CEA), propõe um modelo inovador de Agricultura de Serviços Ambientais, fundamentado em três procedimentos articulados: (1) o Plano de Segurança Ambiental (PSA1), (2) a Prestação de Serviços Ambientais (PSA2) e (3) o Pagamento por Serviços Ambientais (PSA3). Este modelo visa inserir, de forma prática e mensurável, a produção de serviços ecossistêmicos no cotidiano das propriedades agrícolas, especialmente aquelas inseridas em Planos de Revitalização de Bacias Hidrográficas. Este artigo descreve os fundamentos do modelo, seus objetivos e o potencial técnico-científico da proposta.
1. O Contexto e a Urgência de Um Novo Modelo
A produção agropecuária brasileira ocupa mais de 30% do território nacional e exerce grande influência sobre os ciclos hidrológicos, climáticos e ecológicos. A dependência de recursos naturais e a crescente degradação ambiental, especialmente do solo e da água, têm exigido novas estratégias que integrem produção e conservação. Nesse sentido, o conceito de serviços ambientais tem ganhado força como uma ponte entre a valorização ecológica e a viabilidade econômica do campo.
A proposta do CEA/IAC é transformar a propriedade agrícola em unidade produtora não apenas de alimentos e matérias-primas, mas também de funções ambientais essenciais, como a infiltração de água, revitalização de nascentes, a conservação do solo, o aumento da biodiversidade funcional, a regulação climática local e a purificação do ar e da água.
2. O Modelo dos Três PSA: Uma Estrutura Integrada
2.1. PSA1 – Plano de Segurança Ambiental da Propriedade
O primeiro eixo do modelo consiste na elaboração do Plano de Segurança Ambiental (PSA1). Trata-se de um diagnóstico técnico-operacional que identifica os riscos ambientais da propriedade, mapeando vulnerabilidades, pressões e oportunidades de mitigação. Esse plano é construído com base em uma visão territorial e sistêmica da bacia hidrográfica onde a propriedade está inserida.
O PSA1 leva em consideração a posição da propriedade no território da bacia, sua conectividade com áreas sensíveis e sua contribuição atual ou potencial para processos ecológicos. Uma ênfase especial é dada à necessidade de requalificação da ocupação e do uso das terras, com o objetivo de reduzir ou eliminar riscos de impacto ambiental acumulados historicamente, como erosão, contaminação hídrica, desmatamento ou compactação severa do solo.
Além disso, o PSA1 levanta fatores ambientais coligidos, ou seja, fatores inter-relacionados e herdados do uso anterior da terra, que compõem o diagnóstico de base para o passo seguinte. Esses elementos não são apenas descritos, mas analisados com a função de embasar a etapa seguinte (PSA2), em que a propriedade assume um papel ativo como provedora de serviços ambientais.
Esse plano fornece, portanto, os fundamentos técnicos e territoriais para a transição agroecológica, permitindo um zoneamento funcional da propriedade, conectado à realidade da bacia hidrográfica e ao histórico de uso e ocupação do solo. O PSA1 cumpre, assim, uma função estratégica na identificação das áreas prioritárias para conservação, recuperação ou conversão produtiva, e estabelece as bases para a tipificação e orçamentação dos serviços ambientais que poderão ser remunerados no futuro.
2.2. PSA2 – Prestação de Serviços Ambientais em Potencial
Com base nas medidas de segurança e nas áreas aptas à recuperação ou à conservação ativa, a propriedade pode se tornar prestadora de serviços ambientais. Essa etapa corresponde ao segundo PSA (PSA2), em que se quantificam e caracterizam as ações e processos ecológicos gerados intencionalmente pela propriedade. A proposta do CEA já sistematizou mais de 50 tipos de serviços ambientais potenciais, entre os quais destacam-se:
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Recarga de aquíferos e conservação da umidade edáfica;
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Controle biológico natural de pragas e polinizadores espontâneos;
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Proteção de nascentes e corredores ecológicos;
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Redução de carga de sedimentos para cursos d’água;
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Biomassa fotossintética acumulada (como sumidouro de carbono);
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Produção de sementes e mudas nativas;
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Manutenção de solos agregados e cobertura vegetal permanente;
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Retenção de nutrientes e redução de lixiviação;
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Regulação da temperatura e da umidade na paisagem agrícola.
A partir da identificação feita no PSA1, esses serviços passam a ser tipificados e orçados, compondo uma carteira funcional de serviços ambientais da propriedade. A clareza na definição dos serviços permite que se estabeleça um preço justo e transparente para cada ação prestada. A lista em anexo, destaca a tipificação de serviços em estudo no CEA/IAC.
2.3. PSA3 – Pagamento por Serviços Ambientais Prestados
A etapa final do modelo é o Pagamento por Serviços Ambientais (PSA3), que consiste na atribuição de valor econômico às ações efetivas realizadas pela propriedade em benefício do bem comum ambiental. Este pagamento pode vir por meio de:
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Programas públicos federais, estaduais ou municipais de PSA;
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Fundos de revitalização de bacias hidrográficas;
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Contratos diretos com empresas ou consórcios que buscam compensações ambientais ou neutralidade de carbono;
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Projetos de responsabilidade socioambiental de cooperativas, associações ou indústrias do agro.
Para garantir a validade e a continuidade desse pagamento, é necessária a criação de indicadores confiáveis, verificáveis e comunicáveis, o que é possível graças à estrutura anterior dos PSA1 e PSA2. Essa etapa promove o reconhecimento e a remuneração do agricultor como prestador de serviços públicos ambientais, alinhando sustentabilidade com renda.
3. Integração com Planos de Revitalização de Bacias
O modelo de Agricultura de Serviços Ambientais proposto pelo CEA se alinha de forma estratégica aos Planos de Revitalização de Bacias Hidrográficas, que buscam restaurar a funcionalidade ecológica e hidrológica das regiões hidrográficas comprometidas por degradação, escassez hídrica ou conflitos de uso.
A propriedade que adota os três PSA passa a contribuir diretamente com metas como:
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Aumento da infiltração e do armazenamento de água no solo;
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Redução da erosão e do assoreamento de corpos hídricos;
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Conectividade ecológica entre fragmentos florestais;
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Redução de contaminantes difusos (agrotóxicos e fertilizantes);
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Recuperação de áreas de nascentes e recarga.
A agricultura, nesse novo paradigma, torna-se parte ativa da solução e não da causa do problema ambiental. Esse modelo também contribui com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), em especial os ODS 2 (fome zero e agricultura sustentável), ODS 6 (água limpa e saneamento) e ODS 13 (ação contra a mudança global do clima).
4. Considerações Finais
A proposta do IAC por meio do CEA representa uma evolução na forma de compreender e conduzir a propriedade agrícola, tratando-a como uma unidade ecológica produtora de serviços ambientais. Ao estruturar tecnicamente os três PSA – plano, prestação e pagamento, cria-se um caminho viável para que a conservação ambiental seja incorporada de forma operacional, mensurável e economicamente valorizada no dia a dia da agricultura.
Mais do que uma técnica, esse modelo propõe uma mudança cultural: enxergar o agricultor como guardião da funcionalidade ambiental da paisagem, produtor de alimentos e mantenedor dos serviços ecossistêmicos que garantem a vida no campo e nas cidades.
Palavras-chave: Agricultura de serviços, serviços ambientais, revitalização de bacias, PSA, gestão agroambiental, propriedades rurais, Instituto Agronômico de Campinas, sustentabilidade agrícola.
Abaixo está uma lista organizada por categorias ecológicas-funcionais, com foco em propriedades rurais que integram programas de revitalização de bacias hidrográficas e gestão agroambiental:
1. FAUNA SILVESTRE E DOMÉSTICA ECOLOGICAMENTE INTEGRADA
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Criação e manejo de cercas ecológicas para passagem de fauna.
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Instalação de abrigos artificiais para polinizadores.
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Conservação de topos de morro.
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Implantação de corredores ecológicos funcionais entre fragmentos.
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Eliminação do uso de pesticidas com foco no controle biológico natural.
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Manejo conservacionista de pastagens com refúgio de fauna insetívora.
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Implantação de bebedouros e caixas de acumulação temporária para fauna.
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Estímulo à presença de predadores naturais para equilíbrio ecológico.
2. FLORA E FUNCIONALIDADE VEGETAL
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Enriquecimento florístico de fragmentos com espécies nativas regionais.
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Estabelecimento de bancos de sementes locais.
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Plantio de espécies nativas com alto potencial de contribuição à recarga hídrica.
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Implantação de pomares agroflorestais com plantas atrativas à fauna.
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Manutenção de vegetação de sub-bosque em fragmentos e APPs.
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Estímulo à regeneração natural assistida.
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Controle de espécies exóticas invasoras.
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Cultivo de espécies de cobertura com função ecológica estratégica.
3. HÁBITATS E CONECTIVIDADE ECOLÓGICA
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Recuperação de áreas de ecótono entre lavouras e matas.
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Implantação de ilhas de biodiversidade em áreas de produção.
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Estabelecimento de rotas ecológicas de polinizadores.
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Criação de mosaicos paisagísticos para conexão entre habitats.
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Preservação e valorização de elementos naturais como micro-habitats (troncos, pedras, arbustos).
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Readequação do uso do solo com foco em sinergia entre produção e habitat.
4. PROTEÇÃO CILIAR E DE FRAGMENTOS FLORESTAIS
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Isolamento e cercamento de APPs para regeneração natural.
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Implantação de vegetação ciliar multifuncional.
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Adoção de sistemas agroflorestais nas bordas de fragmentos.
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Proteção contra fogo em faixas de vegetação nativa.
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Integração da manutenção de trilhas ecológicas com conservação da borda de matas.
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Implantação de sistema de faixas-tampão ao redor de áreas de cultivo intensivo.
5. RECURSOS HÍDRICOS (RECARGA, DISSIPAÇÃO, REVITALIZAÇÃO)
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Criação e manutenção de bacias de acumulação.
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Adequação de estradas com dispositivos ecológicos.
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Implantação de curvas de nível vegetadas para infiltração hídrica.
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Recuperação de nascentes com cercamento e plantio em várias faixas.
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Redução de áreas impermeabilizadas ou compactadas na propriedade.
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Manutenção de zonas úmidas naturais (brejos, veredas, baixadas).
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Uso de espécies vegetais com alta capacidade de convivência em ambientes hídricos.
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Implantação de sistemas filtrantes vivos (SbN).
6. SEQUESTRO E PROTEÇÃO DO CARBONO NO SOLO E NA VEGETAÇÃO
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Estímulo ao acúmulo de palhada permanente no solo.
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Adoção do sistema plantio direto com cobertura diversificada.
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Aplicação de compostos orgânicos e bioinsumos estruturantes.
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Introdução de árvores de crescimento rápido com alta biomassa.
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Substituição de insumos químicos por práticas de manejo biológico.
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Implantação de rotação agroecológica com leguminosas profundas.
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Valorização de áreas com solos orgânicos ou turfeiras.
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Conservação de carbono fixado em raízes mortas e resíduos não removidos.
7. AÇÕES COLABORATIVAS E COLETIVAS
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Participação em consórcios interpropriedades de corredores ecológicos.
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Compartilhamento de viveiros de mudas nativas entre vizinhos.
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Ações coletivas de vigilância contra fogo e caça ilegal.
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Intercâmbio técnico-comunitário sobre práticas de conservação.
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Constituição de fundos locais para PSA ou incentivo à revitalização.
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Educação ambiental comunitária vinculada à conservação da bacia.
Esses serviços podem ser tipificados, mapeados, monitorados e orçados para compor uma carteira funcional de serviços ambientais da propriedade rural, como propõe o modelo desenvolvido pelo CEA/IAC. Eles ainda servem de base para construção de indicadores para programas de PSA (Pagamento por Serviços Ambientais) e como referência técnica para zoneamentos ecológicos produtivos.
* Pesquisador Científico do Instituto Agronômico de Campinas – IAC
in EcoDebate, ISSN 2446-9394
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