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Ainda é possível salvar a floresta amazônica?

 

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Ainda é possível salvar a floresta amazônica?

“O Brasil deve acordar para a importância da floresta amazônica e tomar as difíceis decisões políticas necessárias para mantê-la”, adverte o cientista Philip M. Fearnside

IHU

Capacidade de recuperação da floresta vem reduzindo. Desmatamento, exploração desenfreada e queimadas, além dos efeitos da crise climática, levam o bioma a perder resiliência.

Na entrevista a seguir, o pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – INPA, Philip Fearnside, destaca que essa perca de resiliência já está posta e algumas regiões da Amazônia, que chegaram ao “ponto de não retorno”. Segundo ele, “em áreas fortemente desmatadas no sul do Pará e norte do Mato Grosso, o ‘ponto sem volta’ pode já ter sido ultrapassado”.

Contudo, Fearnside acredita que ainda há tempo de virar o jogo e recuperar o bioma. “Isso não significa que devamos ‘jogar a toalha’ para proteger a floresta lá”, sustenta. Mas, esse trabalho também dependerá da Conferência do Clima da ONU – COP30, que acontecerá em 2025 na cidade de Belém, no Pará. A solução estaria em uma mudança de paradigma das nações participantes do evento. A questão é que os “países precisam fazer mais do que pedir ao resto do mundo que contribua financeiramente para os esforços de cada país para conter o desmatamento. As lideranças precisam assumir compromissos politicamente difíceis, como abrir mão da infraestrutura, deixar de legalizar invasões de terras do governo, etc.”, assinala.

A entrevista é de Norbert Suchanek, jornalista e autor alemão especializado em cobertura de ciência ambiental desde 1988, enviada pelo autor ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan, EUA, e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – INPA, em Manaus, AM, onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências e também coordena o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia dos Serviços Ambientais da Amazônia. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas – IPCC, em 2007. Foi identificado em 2006 como o 2º cientista mais citado do mundo sobre aquecimento global, em 2011 como o 7º mais citado sobre desenvolvimento sustentável e em 2021 como “mais influente” no Brasil sobre mudanças climáticas.
Eis a entrevista.

Qual distância estamos do “ponto sem volta” do ecossistema amazônico e suas florestas tropicais? Quão perto estamos do colapso da Amazônia?

Em áreas fortemente desmatadas no sul do Pará e norte do Mato Grosso, o “ponto sem volta” pode já ter sido ultrapassado, mas isso não significa que devamos “jogar a toalha” para proteger a floresta lá. O Acre é outra área que está próxima ou passou por um ponto de inflexão e é a área mais dependente do efeito da reciclagem de água perdida no restante da Amazônia brasileira. Uma questão crítica é o que acontecerá ao norte do Acre, na região do Trans-Purus, no estado do Amazonas. A perda da floresta nessa região seria catastrófica para o Brasil, pois essa área é fundamental para a reciclagem da água que é transportada para São Paulo e outras partes do sudeste do Brasil pelos ventos conhecidos como “rios voadores”. A abertura dessa região do “Trans-Purus” para a entrada de desmatadores por estradas planejadas para ramificar a BR-319 coloca essa área em perigo, tornando a questão do licenciamento da “reconstrução” da BR-319 a questão mais crítica no momento.

Em sua proposta de programa de proteção da Amazônia (PPCDAm), o presidente Lula quer acabar com o desmatamento ilegal na Amazônia brasileira até 2030. Isso significa que o desmatamento legal vai continuar?

A reformulação que você faz aqui da promessa de Lula em seu famoso discurso da COP no Egito é, sem dúvida, uma reflexão melhor do que os planos reais que ele lá apresentou, que não incluiu a palavra crítica “ilegal”. Sim, o desmatamento legal não só continuaria como também aumentaria substancialmente, já que Lula também promete a “regularização” das reivindicações fundiárias. “Regularização” é um eufemismo para legalizar reivindicações ilegais de terras e carrega a conotação de que os reclamantes realmente têm direitos legítimos sobre as terras que reivindicam, mas carecem de documentação devido à ineficiência do governo.

No entanto, a grande maioria da área que está sendo regularizada é por meio de reivindicações feitas no Cadastro Ambiental Rural (CAR), criado em 2012 pelo atual “código florestal” e que permite o cadastramento de áreas on-line sem vistoria in loco. Apesar de teoricamente não ser válido para reivindicar a posse da terra, isso tem acontecido na prática, e o CAR tornou-se a principal ferramenta para grileiros obterem a titulação de terras “não destinadas” pelo governo. Lula anunciou recentemente que quer ter uma “prateleira” de terra para ser distribuída aos reclamantes, incluindo as terras “não destinadas” do governo. Uma vez legalizada a posse dessas áreas, o desmatamento passado e futuro seria legalizado. É claro que legalizar essas áreas também alimenta futuras reivindicações e invasões de terras, já que a disponibilidade de terras gratuitas é um forte motivador, e o ciclo contínuo de “anistias” perdoando invasões de terras e crimes ambientais no passado não tem fim até que a última árvore seja cortada.

E essa “meta de desmatamento zero” até 2030 basta para salvar a Amazônia, ou já é tarde demais?

Se o desmatamento fosse interrompido até 2030, incluindo o desmatamento “legal”, seria um grande avanço. No entanto, também existem outras ameaças. Os incêndios florestais são favorecidos pelas mudanças climáticas e pela exploração madeireira e pelas primeiras “faíscas” proporcionadas pelas queimadas em pastagens de gado em áreas já desmatadas.

Quais são suas críticas ao programa de desmatamento zero de Lula, que ao mesmo tempo também visa a expansão da extração “sustentável” de suas terras públicas não destinadas?

Os esforços do governo para controlar o desmatamento por meio da aplicação da lei com inspeções no âmbito do programa PPCDAm não são objeto de críticas. Isso precisa ser feito, e o Ministério do Meio Ambiente está trabalhando duro para isso. No entanto, outros tipos de ações são necessárias, especialmente abrir mão de projetos de infraestrutura como a Rodovia BR-319, que implicam em enormes quantidades de desmatamento e interromper a legalização de reivindicações de terras por todos, exceto os ribeirinhos tradicionais que vivem há gerações em terras do governo sem documentação, mas que representam uma parte insignificante da área que está sendo legalizada hoje.

Quanto à exploração madeireira “sustentável”, isso é ficção. Essencialmente, todo o corte na Amazônia hoje é insustentável, incluindo o corte em “planos de manejo florestal sustentável” legalmente autorizados. Nenhum desses planos considera o fato de que a extração de madeira torna a floresta muito mais vulnerável à entrada do fogo, e se uma área explorada queima, a intensidade do fogo e a perda de biomassa são maiores. Isso inicia um ciclo vicioso que resulta em incêndios repetidos e termina com a completa eliminação da floresta. Além disso, o manejo florestal não é sustentável na prática devido a contradições na lógica econômica (a floresta se recupera mais lentamente do que a velocidade com que se pode ganhar dinheiro destruindo-a e investindo os lucros em outro lugar) e por brechas legais que permitem cortar legalmente a floresta nos primeiros anos de um ciclo de manejo, supostamente a ser seguido pelo proprietário da terra esperando por décadas sem renda enquanto a floresta explorada se recupera antes do próximo ciclo.

O que o governo deve fazer com suas terras públicas não destinadas?

Essas áreas deveriam ser todas convertidas em “unidades de conservação” (áreas protegidas para a biodiversidade) ou em terras indígenas em áreas onde esses povos estão presentes. As unidades de conservação devem incluir aquelas na categoria de “uso sustentável”, como reservas extrativistas e reservas de desenvolvimento sustentável. Nenhuma dessas terras deve ser legalizada como propriedade privada.

Os governos Lula no passado foram responsáveis por grandes projetos hidrelétricos, como as duas grandes barragens no Rio Madeira e Belo Monte no Rio Xingu, na Amazônia. Teme que novas grandes hidrelétricas sejam decididas ou construídas na Amazônia sob o novo governo Lula?

Este é um grande medo devido não apenas à história passada de Lula, mas também às suas declarações durante sua campanha eleitoral defendendo essas decisões passadas. Os planos das autoridades elétricas do governo expressos nos planos decenal e no Plano de Expansão de Energia 2050 também são preocupantes. Esses planos deixam claro que as autoridades construiriam muito mais barragens na Amazônia se o projeto de lei PL191/2000 fosse aprovado no Congresso Nacional, abrindo áreas indígenas para barragens (bem como mineração, agronegócio e extração de madeira). Os grupos de interesse por trás desta proposta de lei têm votos suficientes para aprová-la e anular qualquer veto presidencial, e o projeto de lei continua em tramitação nos comitês rumo à votação no plenário.

Como o senhor avalia as usinas hidrelétricas existentes na Amazônia? Qual a contribuição delas para a proteção do clima? Ou, pelo contrário, elas contribuem para o aquecimento do clima global? Se sim, as emissões de gases de efeito estufa dos grandes reservatórios das hidrelétricas estão incluídas na contribuição brasileira para as emissões globais de gases de efeito estufa?

As represas hidrelétricas existentes contribuem para o aquecimento global de várias maneiras. Elas emitem tanto dióxido de carbono quanto metano, e essas emissões são muito maiores nos primeiros anos após o enchimento de um reservatório, tornando-os especialmente prejudiciais ao aquecimento global, que deve ser contido nos próximos anos para evitar as consequências catastróficas de atravessar os pontos do colapso climático. Além disso, o metano é um gás com grande impacto de aquecimento nos primeiros anos, em contraste com o CO2, que tem um impacto relativamente leve por tonelada a cada ano, mas que tem seu impacto espalhado por mais de um século. O que conta para evitar pontos de inflexão é o que acontece nos próximos 20 anos, e o relatório mais recente do IPCC calcula que o impacto de uma tonelada de metano nos primeiros 20 anos é 80,5 vezes maior do que o de uma tonelada de CO2. Isso basicamente quadruplica o impacto do metano das barragens amazônicas em comparação com o valor de 21 para essa conversão usada no Protocolo de Kyoto e na maior parte da literatura sobre emissões de barragens (incluindo a minha), ou os valores de 23, 25 e 28 usados em diferentes relatórios do IPCC. Outra forma pela qual as barragens contribuem para o aquecimento global é que o crédito de carbono foi concedido a quatro das grandes barragens da Amazônia brasileira, permitindo emissões nos países que compraram o crédito. Nenhuma dessas barragens é verdadeiramente “adicional” no espírito do Protocolo de Kyoto, ou seja, só teriam sido construídas por causa do subsídio do crédito de carbono.

Vocês, como cientistas do clima e da Amazônia, veem a pavimentação da BR-319 como uma das maiores ameaças à região. O senhor vê algum sinal de que Lula e seu governo vão concluir ou abandonar o projeto da rodovia?

Em uma entrevista de rádio em Manaus durante sua campanha eleitoral, Lula afirmou que não via por que razão a BR-319 não deveria ser aprovada enquanto os governos estaduais e municipais tivessem um compromisso com a “preservação”. Infelizmente, isso não conteria os danos da rodovia, mesmo que tal compromisso existisse. O impacto vai muito além dos municípios ao longo da própria BR-319, e não há sinal de disposição para para pagar o custo astronômico de conter o desmatamento na região como um todo. Além disso, políticos mudam a cada eleição e não há forma de garantir o suposto “compromisso” com a preservação ao longo das próximas décadas.

Como você avalia os projetos de exploração de petróleo e gás existentes e planejados nos estados amazônicos? As produção de petróleo nas regiões florestais ser continuadas, expandidas ou interrompidas apenas por razões de proteção climática?

Globalmente, o petróleo e o gás devem ser eliminados rapidamente para conter a mudança climática. Até a Agência Internacional de Energia (IEA), que não é uma organização ambiental para dizer o mínimo, emitiu um relatório afirmando que nenhum novo campo de petróleo e gás deve ser iniciado e que os existentes devem ser gradualmente reduzidos a zero, com zero líquido emissões globalmente até 2050. O Brasil deve seguir esse caminho, e na Amazônia deve ser mais rápido do que em qualquer outro lugar por causa dos danos ambientais, além da mudança climática, resultantes de derramamentos ou construção de estradas colaterais e desmatamento na floresta amazônica.

Sobre o projeto de óleo e gás na Área Sedimentar do Solimões. A Rosneft, empresa estatal russa de petróleo e gás, comprou direitos de perfuração para 16 blocos naquela vasta área de floresta tropical intacta na parte ocidental da região amazônica brasileira. Quando a empresa russa pode e irá iniciar a exploração de gás e petróleo? Ou o governo Lula vai parar o projeto?

Nenhum cronograma foi anunciado e nenhuma decisão de desistir do projeto foi anunciada. Dada a estreita ligação de Putin com a Rosneft, a inclinação de Lula para Putin na guerra na Ucrânia é preocupante. A BR-319 e a rodovia AM-366 associada seriam muito importantes para a Rosneft.

Quais seriam as consequências para a floresta tropical e os povos indígenas da região se o projeto de petróleo e gás fosse implementado?

O AM-366 passaria por três dos primeiros blocos de petróleo, bem como por uma grande área de potenciais blocos futuros. Se essa estrada for construída, grileiros, invasores e outros seriam atraídos para as terras públicas não designadas que ela atravessa, e toda a metade leste da rede rodoviária proposta já foi reivindicada no CAR. O projeto de petróleo e gás pode ser um fato fundamental para acelerar a construção dessas estradas, já que tanto o dinheiro da Rosneft quanto a influência de Putin podem torná-lo uma prioridade do governo federal e estadual.

Como o senhor vê o risco da produção de biocombustíveis “sustentáveis” a partir do cultivo da cana-de-açúcar ou do dendê – ou soja e milho – na Amazônia?

Essa é uma preocupação significativa, especialmente no caso do dendezeiro na área de Trans-Purus. Esta área é climaticamente a mais adequada para o dendezeiro, e as empresas de dendê da Malásia até tentaram comprar áreas lá em 2008, mas recuaram em favor de investimentos em outros países por enquanto.

O que você deseja como resultado da conferência de Belém?

Seria de se esperar que o Brasil e os outros países amazônicos assumissem o compromisso de renunciar a projetos como a BR-319, que têm tremendas implicações para a mudança climática, bem como para a biodiversidade e os povos indígenas.

O que deve ser decidido pelas líderes brasileiros dos demais países amazônicos em Belém?

Estes países precisam fazer mais do que pedir ao resto do mundo que contribua financeiramente para os esforços de cada país para conter o desmatamento. As lideranças precisam assumir compromissos politicamente difíceis, como abrir mão da infraestrutura, deixar de legalizar invasões de terras do governo, etc.

Quais são suas esperanças para a Amazônia e o Brasil?

O Brasil deve acordar para a importância da floresta amazônica e tomar as difíceis decisões políticas necessárias para mantê-la. Isso requer muito mais do que passar o problema para o Ministério do Meio Ambiente. Uma preocupação particular é a área do Trans-Purus e os planos que a ameaçam.

 

(EcoDebate) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.

[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

 

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