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Artigo

Será mesmo possível uma cidade inclusiva de seus miseráveis?

 

São Conrado e Rocinha

Será mesmo possível uma cidade inclusiva de seus miseráveis? artigo de Álvaro Rodrigues dos Santos

Esse pequeno texto não brota de certezas, mas de muitas e angustiantes dúvidas.

Primeiro uma definição, aqui entendo Cidade como o conjunto de infraestruturas e operacionalidades urbanas capazes de acolher e prover o atendimento digno das necessidades físicas e espirituais de todos seus moradores.

Já há muitas décadas uma das principais preocupações de boa parte dos profissionais que lidam com a construção da cidade e com as diretrizes urbanísticas para tanto, assim como de muitos administradores públicos com honesta preocupação social que se revezam nos poderes executivos e legislativos dos três níveis de poder, federal, estadual e municipal, tem sido o atendimento em infraestrutura da enorme demanda da população de baixa renda, com destaque para a habitação.

Mais recentemente, essas mesmas preocupações foram abrigadas na proposta de cidades inclusivas, ou seja, aquelas capazes de incluir nos paradigmas urbanos civilizados de atendimento a grande parte da população mais pobre que deles está secularmente apartada. Também em uma proposta mais fluida, de cidades sustentáveis, essas mesmas preocupações se fazem presentes e exigem um penoso esforço de formulação de propostas que se mostrem viáveis.

Em termos práticos, muito pouca coisa se realizou de concreto e de real por obséquio de todo esse esforço de inclusão dos mais pobres na cidade estruturada em que hoje estão instalados os estratos sociais médios e altos da população urbana brasileira.

Tomando a questão habitacional como exemplo, não fosse a própria população de baixa renda ter assumido autonomamente a solução de seu problema habitacional, elegendo para tanto, de forma totalmente independente e espontânea, a tecnologia possível para ter sua casa própria, qual seja a autoconstrução com base no bloco/laje, a crise habitacional em muitas grandes e médias cidades brasileiras estaria atualmente em um grau de total insuportabilidade.

Hoje as zonas periféricas de expansão urbana apresentam-se como verdadeiros oceanos de habitações auto-construídas em bloco-laje. Ainda que a habitação assim resultante seja tecnicamente precária, com baixo conforto ambiental, o problema maior dessa população não está na edificação propriamente dita, mas sim na generalizada ausência de infraestrutura urbana de suporte, nas péssimas condições de saneamento, nos riscos geológicos induzidos, na deterioração acelerada e precoce de toda a área ocupada, na distância ou na ausência do trabalho, na desqualificação ambiental de todo o bairro, na falta de suporte para a criação dos filhos, etc., etc.

Enfim, os mais pobres continuam vivendo sua própria realidade urbana, uma realidade de completa privação de todos os atributos de qualidade de vida que a cidade estruturada oferece a seus habitantes socialmente mais favorecidos.

Essa cidade estruturada, com bons níveis de infraestruturas e operacionalidade urbanas, como não poderia deixar de ser, é vista pelos mais pobres como um mundo estranho a eles, como um mundo que não é deles e que não é para eles, excluídos que são, inclusive geograficamente, de todos seus atributos de dignidade humana. Por óbvio que bons sentimentos essa exclusão humilhante e perversa não pode gerar entre os moradores mais pobres. E moralmente nem podem ser cobrados pelos moradores da cidade, vamos dizer, bonita. Não há como, está estabelecida uma relação doentia e agressiva entre esses dois universos urbanos tão diferentes e tão conflitivos.

Tenho lidado com o amontoado urbano periférico via a atividade profissional voltada à redução de riscos geológicos e hidrológicos, em especial deslizamentos e enchentes. Vivi e senti os dramas cotidianos dessa população carente de tudo, que é humilhada em todas as situações em que é obrigada a se relacionar com a cidade estruturada. E percebendo o tão pouco que a ação profissional de redução de riscos pode de fato resultar em uma realidade tão perversa, em que a uma área que tenha sua estabilidade geotécnica equacionada, abrem-se na mesma região um sem número de novas situações de instabilidade e riscos, uma angustiante questão vem atormentando meus cansados pensamentos.

Será possível caminharmos, ainda que lenta e progressivamente, para uma cidade inclusiva, que incorpore suas grandes periferias sociais e seja capaz de estender-lhes os atributos civilizatórios alcançados pela cidade central e estruturada, mesmo com a manutenção dos atuais níveis de pobreza e desigualdades sociais?

A mais simples lógica capitalista, aquela que sentencia que as demandas de um cidadão são atendidas na medida de sua capacidade de compra, nos diz que não. E o considerável fracasso do empenho de eventuais profissionais e administradores públicos nas lidas por uma cidade inclusiva também pode estar nos falando dessa inexorável impossibilidade. Enfim, sobra no ar ao menos a desconfiança que o sonho de uma cidade inclusiva somente se tornará realidade em uma sociedade onde a pobreza e a exclusão social tenham sido civilizadamente superadas.

Até lá, o que caberá a nós profissionais dedicados a essa quimera? Quais os limites do realizável em nossos atuais infernos urbanos periféricos? Diante do quadro qual a atitude mais sensata e positiva frente às leis urbanas maiores de uso do solo? Como não nos enganarmos a nós próprios e como não vendermos ilusões descabidas à gente pobre?

Como prosseguirmos em nosso impulso profissional de solidariedade e compaixão humana?

Geól. Álvaro Rodrigues dos Santos (santosalvaro@uol.com.br)
• Ex-Diretor de Planejamento e Gestão do IPT – Instituto de Pesquisas Tecnológicas
• Autor dos livros “Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e Prática”, “A Grande Barreira da Serra do Mar”, “Diálogos Geológicos”, “Cubatão”, “Enchentes e Deslizamentos: Causas e Soluções”, “Manual Básico para elaboração e uso da Carta Geotécnica”, “Cidades e Geologia”
• Consultor em Geologia de Engenharia e Geotecnia
• Colaborador e Articulista do EcoDebate

 

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 17/05/2021

 

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