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Covid-19, uma doença do Antropoceno

 

Covid-19, uma doença do Antropoceno

Covid-19, uma doença do Antropoceno. Artigo de Mariana Mazzucato

IHU

“A janela para lançar uma revolução climática – e no processo conseguir uma recuperação da Covid-19 inclusiva – está se fechando rapidamente. Devemos agir com prontidão, caso queiramos transformar o futuro do trabalho, o trânsito e o uso de energia, e tornar realidade o conceito de uma ‘boa vida ecológica’ para as gerações vindouras. De uma forma ou de outra, a mudança radical é inevitável. Nossa tarefa é garantir que consigamos a mudança que queremos, enquanto ainda temos a opção”, escreve Mariana Mazzucato, professora de Economia da Inovação e Valor Público e diretora do Instituto de Inovação e Interesse Público do University College London, em artigo publicado por Clarín-Revista Ñ, 06-10-2020. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

Na medida em que a Covid se espalhava, em inícios deste ano, os governos introduziram diversas formas de fechamento e isolamento para evitar que a emergência de saúde pública saísse do controle. Em um futuro próximo, o mundo pode precisar novamente recorrer aos bloqueios, desta vez para enfrentar uma emergência climática. As bruscas alterações nas geleiras árticas, os incêndios florestais furiosos em estados do oeste dos Estados Unidos e em outros lugares e as fugas de metano no Mar do Norte são todos sinais de alerta de que nos aproximamos de um ponto crítico da mudança climática, em que para proteger o futuro da civilização serão necessárias intervenções drásticas.

Sob um “bloqueio climático”, os governos limitariam o uso de veículos privados, proibiriam o consumo de carne vermelha e imporiam medidas extremas de economia de energia, ao passo que as empresas de combustíveis fósseis teriam que deixar de fazer perfurações. Para evitar esse cenário, devemos revisar nossas estruturas econômicas e fazer capitalismo de uma forma diferente.

Muitos pensam que a crise climática é diferente das crises sanitárias e econômicas causadas pela pandemia. Mas as três crises – e suas soluções – estão interconectadas. A Covid-19 é em si uma consequência da degradação ambiental. Um estudo recente a classificou como “doença do Antropoceno”.

Além disso, a mudança climática exacerbará os problemas sociais e econômicos ressaltados pela pandemia. Entre eles, a capacidade diminutiva dos governos para encarar a crise de saúde pública, a capacidade limitada do setor privado para suportar uma perturbação econômica sustentada e a desigualdade social generalizada.

Estas deficiências refletem os valores distorcidos que subjazem em nossas prioridades. Por exemplo, exigimos mais dos “trabalhadores essenciais” (entre eles enfermeiras e enfermeiros, trabalhadores de supermercados e distribuidores), ao mesmo tempo em que são aqueles a quem menos pagamos. Sem uma mudança fundamental, a mudança climática agravará estes problemas.

A crise climática é também uma crise de saúde pública. O aquecimento global faz com que a água potável se degrade e permite que prosperem as doenças respiratórias relacionadas à poluição. Segundo algumas projeções, 3,5 bilhões de pessoas em todo o mundo viverão em um calor insuportável, em 2070.

Abordar esta tríplice crise requer reorientar a governança corporativa, as finanças, as medidas políticas e os sistemas energéticos para uma transformação econômica ecológica. Para isto, é necessário eliminar três obstáculos: as empresas que são dirigidas pelos acionistas, não pelas partes interessadas, as finanças que são utilizadas de maneira inadequada e inapropriada, e o governo que se baseia em um pensamento econômico obsoleto e pressupostos errôneos.

A governança das empresas agora deve refletir as necessidades dos interessados, em vez dos caprichos dos acionistas. Construir uma economia inclusiva e sustentável depende da cooperação produtiva entre os setores público e privado e a sociedade civil. Isto significa impor condições rigorosas a qualquer resgate empresarial para garantir que o dinheiro dos contribuintes seja utilizado de forma produtiva e gere um valor público a longo prazo e não lucros privados a curto prazo.

Na crise atual, por exemplo, o governo francês condicionou seus resgates à Renault e à Air France-KLM a compromissos de redução de emissões de carbono. França, Bélgica, Dinamarca e Polônia negaram auxílio estatal a qualquer empresa domiciliada em algum dos lugares em que a União Europeia considere paraísos fiscais e proibiram que os grandes beneficiários pagassem dividendos ou recomprassem suas próprias ações até 2021. Além disso, não se permitiu que empresas estadunidenses, que recebiam empréstimos do governo através da Lei de Auxílio, Socorro e Seguridade Econômica contra o Coronavírus (CARES), utilizassem esses fundos para a recompra de ações.

Estas condições são um começo, mas não são suficientemente ambiciosas, nem do ponto de vista climático e nem em termos econômicos. A extensão dos pacotes de auxílio público não corresponde às exigências das empresas e as condições nem sempre são juridicamente vinculantes. Por exemplo, a política de emissões da Air France só se aplica a voos nacionais curtos.

É necessário muito mais para conseguir uma recuperação ecológica e sustentável. Por exemplo, os governos poderiam utilizar a tributação para desestimular as empresas a utilizar certos materiais. Também poderiam introduzir garantias de emprego a nível empresarial e nacional para que não se desperdice ou se corroa o capital humano. Isto ajudaria os trabalhadores mais jovens e mais velhos, que sofrem de maneira desproporcional a perda de postos de trabalho devido à pandemia, e reduziria as prováveis perturbações econômicas em regiões desfavorecidas que já estão sofrendo o declínio industrial.

As finanças também precisam de correção. Durante a crise financeira mundial de 2008, os governos inundaram os mercados com liquidez. Mas por não a terem canalizado para as boas oportunidades de investimento, grande parte desse financiamento acabou novamente em um setor financeiro inadequado para este propósito.

A crise atual constitui uma oportunidade para aproveitar recursos financeiros de maneira produtiva, com o propósito de impulsionar crescimento a longo prazo. O financiamento paciente, a longo prazo, é central, pois um ciclo de investimento de 3 a 5 anos não se ajusta à extensa vida útil de uma turbina eólica (mais de 25 anos), nem fomenta a inovação necessária em mobilidade, em desenvolvimento de capital natural (como os programas de reflorestamento) ou em infraestrutura ecológica.

Alguns governos já colocaram em marcha iniciativas de crescimento sustentável. A Nova Zelândia elaborou um orçamento baseado na medição “do bem-estar”, em vez do PIB, para adaptar o gasto público a objetivos mais amplos, ao passo que a Escócia criou o Banco Nacional Escocês de Investimento, destinado a missões concretas.

Junto com a condução das finanças para uma transição verde, temos que responsabilizar o setor financeiro por seu impacto ambiental, muitas vezes destrutivo. O Banco Central holandês estima que a pegada de biodiversidade das instituições financeiras holandesas representa uma perda de mais de 58.000 quilômetros quadrados de natureza em estado puro, superfície 1,4 vez maior que a dos Países Baixos.

Dado que os mercados não liderarão uma revolução verde por si, a política governamental deve orientá-los nessa direção. Isto requererá um Estado empreendedor que inove, assuma riscos e invista junto com o setor privado. Portanto, os encarregados em formular políticas deveriam redesenhar os contratos de aquisição para se distanciar dos investimentos de baixo custo dos provedores atuais e estabelecer mecanismos que “atraiam massivamente” inovação por parte de múltiplos atores para alcançar objetivos ecológicos públicos.

Os governos também devem adotar um enfoque integral acerca da inovação e investimento. No Reino Unido e nos Estados Unidos, uma política industrial mais ampla segue apoiando a revolução da tecnologia da informação. De forma análoga, o Pacto Verde Europeu, Estratégia Industrial e o Mecanismo de Transição Justa, todas instituições da União Europeia recentemente colocadas em funcionamento, estão atuando como motor e bússola do fundo de recuperação “UE da próxima geração”, de 888 bilhões de dólares.

Por último, precisamos reorientar nosso sistema energético em torno da energia renovável, antídoto contra a mudança climática e chave para que nossas economias sejam seguras do ponto de vista energético. Portanto, devemos subtrair dos negócios, das finanças e da política os interesses dos combustíveis fósseis e o imediatismo. As instituições financeiramente poderosas como os bancos e as universidades devem se despojar das companhias de combustíveis fósseis. Enquanto não agirem assim, prevalecerá uma economia baseada no carbono.

A janela para lançar uma revolução climática – e no processo conseguir uma recuperação da Covid-19 inclusiva – está se fechando rapidamente. Devemos agir com prontidão, caso queiramos transformar o futuro do trabalho, o trânsito e o uso de energia, e tornar realidade o conceito de uma “boa vida ecológica” para as gerações vindouras. De uma forma ou de outra, a mudança radical é inevitável. Nossa tarefa é garantir que consigamos a mudança que queremos, enquanto ainda temos a opção.

(EcoDebate, 09/10/2020) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.

[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

 

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