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Agronegócio opositor à cultura e ecologia brasileiras

Agro x segurança alimentar

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Agronegócio opositor à cultura e ecologia brasileiras

APROVEITANDO A PANDEMIA PARA “IR PASSANDO A BOIADA”: Escâncaras e evidências de um agronegócio opositor à cultura e ecologia brasileiras

Artigo de Vagner Luciano de Andrade

[EcoDebate] Lamentavelmente, os meses de agosto e setembro sempre pairam no imaginário social, como épocas das queimadas e suas proporções.

Tempos dos ipês floridos, e das seriemas cantantes, a seca vai se atenuando para transpor a primavera e chegar ao tempo de chuvas e renascimento. Êta mundo que era bom! Mas nos tempos atuais de pandemia e de pandemônio, os dias e noites estão deixando as pessoas mais agoniadas do que o normal.

Para os homens, enquanto seres culturais, o ser/estar no mundo é sempre algo inquietante, conflituoso com questões perturbadoras, com o intuito de se reformular e reafirmar no tempo/espaço.

Pensando sobre essa questão, num mundo mediado pela cultura e por sua ampla simbologia, você receberá o mundo de um jeito e por isso o deixará de outra forma, pois a mudança é permanente.

Alguma coisa sempre reescreve o querer e fazer humanos, redefinindo direções. A vida humana é uma conjunção de palavras desconexas que se tornam, gradativamente num contexto mais compreensível, ou não. Mas deixemos a filosofia e a voltemos à urgência política do agora.

Após passarmos um semestre inteiro com notícias negativas no cenário social, político e econômico, num alcance social depressivo de proporções gigantescas, vivemos um retrocesso exorbitante em termos de ações públicas e desconstrução de cenários de cidadania, democracia e inclusão que eram prerrogativas advindas da Constituição Federal. Ou seja, teoricamente, uma desconstrução (ou seria destruição) do Estado democrático de direito, num contexto de uma pandemia que fez um mundo silenciar-se diante de incertezas, de mortes, de vulnerabilidades.

Foi o que aconteceu nesse semestre confuso, quando paralelo ao crescente número de vítimas diárias, não somente no Brasil, como em todo o mundo, vimos aumentar casos de descumprimento, de desrespeito à Brasilidade, em sua essência. Diante de um contexto de pandemia, uma série de questões e palavras se eternizarão na história brasileira.

Em meio a uma coletividade engajada em se proteger e se cuidar, socializando esperanças, relembrando protocolos de segurança e higienização, vimos também reuniões e ações dos políticos destinados a aproveitar o contexto caótico e burlar a legislação vigente, como se já não bastasse, o medo que havia se feito morada, entre nós.

Só para lembrar, aquela reunião ministerial de 22 de abril que chocou o país, quando o ministro da educação fez acusações sérias sobre o STJ e o ministro do meio ambiente também falou que tinha que aproveitar que a mídia já estava focada na questão da pandemia e ir passando por cima do aparato legal, da jurisprudência vigente e tocando “projetos” que atenderiam aos “interesses” da coletividade, mas que atendem apenas aos interesses de pequenos grupos elitizados, em especial, ruralistas e pessoas vinculadas ao agronegócio.

E nesse contexto, tivemos a fragilização dos ecossistemas e cenários naturais, em especial, a Floresta Amazônica, o Cerrado e o Pantanal, com devastação absurda e o recente conjunto das queimadas descontroladas. As queimadas nos chocaram não apenas pelo desprezo e descaso pela biodiversidade, mas acima de tudo, evidenciou a desconsideração para com as populações e comunidades tradicionais, em particular, indígenas e quilombolas. E eis que a desconstrução dos cenários e paisagens rurais se ampliaram desvinculando comunidades ancestralmente tradicionais. Estão empreendendo a extinção desse homem do campo, figura de grande valor, mas que historicamente insistem em extirpar da civilidade brasileira.

A questão da economia, cujo único setor que não desfez diante da estagnação pandêmica foi a produção agrícola, evidenciando o agronegócio e o capitalismo neoliberal, onde “estão passando com a boiada”. E nessa totalidade como que ficam os quilombolas, os indígenas, as comunidades ribeirinhas, os agricultores familiares e demais pessoas que vivem a essência camponesa.

Que desprezo escancarado com aqueles que vivem em contato com a natureza, fazendo o manejo ecológico e sustentável dos recursos naturais. Cadê o cuidado, a cautela para com as pessoas e seus direitos. É impactante verificar como é que esses saberes foram destratados e desconstruídos nesse contexto de caos, nos últimos três anos. Décadas de militância em prol dos direitos ambientais, culturais educacionais e sociais se queimam em meio a governantes míopes. Historicamente houve um total desprezo pela questão ecológica e camponesa no Brasil, partindo da figura dos representantes políticos alinhados à elites rurais até fechar com a questão da ausência do estado, ou ineficácia do poder público. Mente-se dizendo que porque dada a dimensão continental, é muita demanda para poucos fiscais, e pouquíssima gente na linha de ação. A culpa é sempre do governo anterior. E aí nós vamos retrocedendo, a “passos lentos de tartaruga”.

Voltamos a pensar na urgente questão brasileira do Homem do Campo, que nos últimos tempos vem sendo desconstruído, descaracterizado, desprezado, reconfigurado no cenário da nova sociedade das inovações tecnológicas, onde contextos se evidenciam e desconstruções se materializam. Artigos, dissertações, documentários, livros, filmes, novelas, teses se debruçaram sobre a temática, principalmente nas quatro décadas finais do século XX. Para sequenciar a discussão, basta citar a popularidade das telenovelas que tratam a temática rural, desde Ana Raio e Zé Trovão (TV Manchete, 1991) até as atuais, passando pela Rei do Gado (TV Globo, 1996). A questão da novela brasileira considera a tradição do povo, ser historicamente “noveleiro”, considerando-se quem concorde e quem discorde disso, dizendo se tratar de um ponto positivo ou negativo. Mas a telenovela traz um conjunto de elementos culturais significativos que podem ser considerados, se elencarmos uma determinada realidade ou temática estruturada no enredo de uma novela. Em se tratando de homem do campo e da questão da vinculação de uma filosofia com a paisagem do campo e para com a natureza, a temporada de pandemia e pandemônio, coincidiu com o fechamento de uma reprise da telenovela chamada “Êta Mundo Bom” (TV Globo, 2016), cuja história do personagem principal, aconteceu numa fictícia paisagem camponesa do interior paulista, chamada Piracema, onde um camponês que tinha sido separado de sua mãe biológica transita do rural ao urbano e retorna à ruralidade, após o reencontro. Ocorrida vinte anos após Rei do Gado, mescla literatura brasileira, com filosofia iluminista, tendo como referência, o cineasta Amâncio Mazzaropi (1912-1981).

Novelas trazem contextos que podem ser atuais ou pretéritos, sempre com vistas a contextualizações. A telenovela apresenta aspectos importantes se considerarmos uma série de contextos educativos, sociais, culturais, e ambientais que podem ser percebidos e se instrumentalizam como instrumento de percepção, conscientização e reflexão sobre determinados processos societários tecidos na vida do camponês. Dessa forma, a novela vai além do seu conteúdo intencional, explicitando um apelo estético vinculado para questões de atuação do elenco, cenários, recursos de produção cultural, ligados a história representada nas telas e socializada com milhares que assistiram a telenovela nas tardes destes tempos de desesperança. E no caso da novela Êta Mundo Bom, a questão muito latente é do homem que extirpado do campo se vê destituído de um espaço próprio se vê forçado a migrar para os centros urbanos, neste caso, leia-se São Paulo.

Durante algumas cenas da telenovela, a cenografia evidencia vários camponeses chegando com sonhos para cidade, que atrai a parte significativa de pessoas de todo o país que não tinham opções de vida no interior.

A urbanização e industrialização se dariam concomitantemente ao processo agrário exportador, centrado no latifúndio/monocultura.

Como as questões ambiental e agrária não foram devidamente tratadas por políticas públicas nos governos anteriores a redemocratização, sempre desencadeou uma tendência a modernização e industrialização e esse sempre foi um discurso que alimentou sonhos e decepções de muitos.

O Parque Industrial do Sudeste, principalmente durante os períodos pré-ditadura e pós-ditadura, até aos tempos atuais de ampliação do agronegócio tornam a questão mais complexa, no sentido de fazer com que vários camponeses buscassem se legitimar no processo de contextualização e afirmação cultural de suas identidades.

Principalmente na primeira década do século XXI, a reafirmação das identidades do quilombola, do caiçara, do ribeirinho, dos seringueiros, do geraizeiro, do sertanejo, do pantaneiro, do gaúcho e todas as identidades plurais foram desconstruídas e esses atores buscaram se afirmar e se reconstruir no tempo/espaço. Assim essa história se dá da mesma forma como na telenovela Êta Mundo Bom, que ambientada no final da década de 1940, traz essa dialética do homem rompendo com o campo, mas do mesmo homem que sonha com a volta ao campo.

Então, o ator principal, Candinho vai para cidade grande em busca da mãe perdida, mas acaba a novela terminando naquilo que era a sua essência, do ponto de vista sociológico/filosófico, a vida no campo, o contato com o ser/estar camponês transitando para paisagem do campo, materializando uma cultura e ecologia a ela associadas.

A questão do trato e da lida com a terra, com os animais criados retoma a questão da Agricultura Familiar, a questão da preservação da vegetação nativa, ou seu manejo sustentável, a questão do cuidado com os recursos hídricos, ou seja, toda essa simbologia era evidenciada em diferentes capítulos.

Além de trazer também elementos para pensarmos na mudança societária que nos assombra em tempos de “aproveitar a pandemia e ir passando a boiada”. Vários valores foram refeitos, desconstruídos, reconstruídos e reconfigurados a partir do século XX, e quanta coisa se perdeu não somente nas paisagens do campo reduzidas a monoculturas mecanizadas em sistemas de máximo impacto e saturação dos recursos, mas, sobretudo, a cultura e ecologia vinculadas ao campesinato.

Em tempos de pandemônio, não foi somente a Brasilidade que se perdeu com a paisagem rural pretérita. Conceitos como cidadania, civilidade e democracia estão sendo riscados do dicionário. Se aqueles que se impõem enquanto governo de poucos, e que sugerem o medo pandêmico como meio para burlar a coletividade, o que esperar. Quem mais que simplesmente destruir culturas e ecossistemas, sendo a narrativa da destruição de uma nação. Conclui-se que inúmeros valores societários primordialmente vinculados a coletividade democrática não serão reprisados.

Resistamos para que o Mundo Bom que se construiu no país, após a redemocratização se fortaleça e que a civilidade a cidadania o que nós permeia seja entendida e resgatada por todos, nos campos e nas cidades. E como capítulo final da telenovela real que vivemos, vai a cópia do jargão, ‘tudo que acontece na vida de ruim é pra melhorar”. Que assim seja e que a boiada não passe oculta na pandemia que assustadoramente nos reescreve. Que como o personagem, possamos não apenas resgatar a mãe ruralidade que permeia nossa maturidade e essência, mas, sobretudo, que reencontremos nossa mãe maior, a Democracia.

A luta continua para além da pandemia, contra o pandemônio que nos governa!

Vagner Luciano de Andrade, graduado em História/Licenciatura pelo UNICESUMAR – Centro Universitário de Maringá – UNICESUMAR, especialista em Museografia e Patrimônio Cultural pelo CEUCLAR – Centro Universitário Claretianos. Agente voluntário de educação e mobilização da Rede Ação Ambiental

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 21/09/2020

 

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