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Pessoas, ambientes, desigualdade e doença: um enfoque ecossistêmico, artigo de André Francisco Pilon

 

Pessoas, ambientes, desigualdade e doença: um enfoque ecossistêmico, artigo de André Francisco Pilon

[Jornal da USP] O filósofo francês Marcel Gauchet (da heteronomia à autonomia), ao analisar a evolução, ao longo da história, da crença de que os eventos, antes atribuídos a fatalidades externas, estariam agora sob o domínio humano, chegou à conclusão de que os indivíduos e as sociedades atuais, longe de se emanciparem, tornaram-se impotentes e não dispõem de autocontrole e verdadeira autonomia.

A definição dos problemas é fragmentada e reduzida por formatos acadêmicos, manchetes da mídia e interesses do mercado. “Bem comum”, “cidadania”, passam a ser um obstáculo à “liberdade individual”, invocada como única razão para uma vida plena, para a existência de uma sociedade “democrática”, apesar da dissolução da herança cultural, dos liames coletivos, da ética, estética, equidade e justiça.

Os quatro cavaleiros do apocalipse (doença, fome, morte, guerra) não só passaram a desafiar o protagonismo humano, como amealharam os homens como coadjuvantes das desgraças anunciadas. Aí estão o aquecimento global, a contaminação do solo, do ar e da água, a criminalidade nas ruas e nos gabinetes. A “inclusão social” sem sentido crítico não altera a leva de produtores e consumidores egocêntricos.

Grandes diferenças de poder entre as pessoas físicas e jurídicas permitem uma influência substancial das corporações sobre políticas públicas e assuntos de Estado; arraigados nas instituições vigentes, lobbies influentes impõem uma reconfiguração significativa do controle estatal e da autoridade política; a prioridade é o lucro, a expansão dos negócios, não as necessidades vitais, a qualidade de vida.

A regeneração dos ambientes naturais e construídos, de um lado, e a regeneração social e cultural, de outro, é uma via de duas mãos, ambas se entrelaçam e dependem uma da outra.

Elas se reforçam mutuamente e as mudanças precisam ser simultâneas no tempo e no espaço, pois precisam do apoio recíproco (motivações e contextos habilitadores são aspectos complementares).

O apelo para a solidariedade e a esperança, se não se assentar na educação, em políticas públicas e estruturas condizentes, na mudança dos paradigmas de desenvolvimento, poder, crescimento, riqueza e liberdade enraizados nas instituições políticas, econômicas, tecnológicas e culturais vigentes, poderá ser rapidamente esquecido e não incorporado à vida cotidiana.

“Não havia nada, absolutamente nada que pudesse impedir uma exploração planetária humana.” Com essas palavras, Clifford Simak, o escritor de ficção científica, no conto intitulado “Beachhead”, narra a chegada de uma nave da Terra em um planeta distante, em uma condição que evitaria danos materiais ou riscos para seres humanos, graças à alta tecnologia que seus tripulantes imaginavam possuir.

“Chegamos em paz, somos amigos, trazemos coisas novas para vocês”, disse o comandante da nave para os nativos. “Vocês não deveriam ter vindo, nunca sairão daqui e aqui morrerão”, respondeu o nativo. Julgando que era uma ameaça, o comandante blefou: “Morrer, o que é morrer?” O nativo simplesmente transmitiu um sentimento de desprezo, encerrou a conversa e mergulhou na floresta.

Não era uma ameaça: na expedição à vila do nativo, os relógios pararam, as comunicações foram interrompidas, os robôs despencaram no solo e a nave não respondeu aos comandos. Havia algo no planeta que a tecnologia avançada do ser humano não detectava ou controlava, que impedia o uso de qualquer equipamento e era por isso que os nativos não tinham nada sofisticado.

Embora o homem possa ser “a medida de todas as coisas” (Protágoras), os humanos eram limitados por suas próprias medidas e não podiam prever o desconhecido, o inimaginável, que escapava a sua experiência. E o comandante da nave teve que se resignar ao destino melancólico da expedição, condenada por forças estranhas em um mundo estranho, diante da precariedade do engenho humano.

As propostas de “desenvolvimento”, as “soluções” tecnológicas, geralmente ignoram os impactos sociais, culturais e ambientais, vinculando a natureza (o capital natural) ao domínio financeiro, que exige sempre mais recursos, aumenta a poluição e os resíduos, sem alterar o sistema irracional de produção, transporte e consumo que assola o mundo de hoje e que provoca os agravos à saúde física e mental.

A parte privilegiada da população não sujeita à luta pela sobrevivência, comprometida com seus próprios interesses, com o aumento de bens pessoais e familiares, lidera a promulgação de leis que legitimam suas posições políticas e econômicas, a “liberdade” de fazer o que bem entender; redes profundamente arraigadas no sistema agem em conjunto para impedir a própria responsabilização.

A plena cidadania exige organizações sociais fortalecidas, uma vontade política de implementar disposições legais; processos de urbanização governados por interesses imobiliários, concentração de empregos em áreas distantes, baixa qualidade de vida, violência urbana, a apatia da população por questões cívicas e a indiferença à violência física e à criminalidade estão inextricavelmente entrelaçados.

A elaboração de políticas que preparem as pessoas para assumir suas posições na sociedade, como profissionais e cidadãos, não pode ser reduzida a ações rituais, como votar ou pagar impostos, nem incentivar uma fidelidade ideológica acrítica ao “livre mercado”, mas primar pela informação transparente, pela neutralidade jurídica, pelo desenvolvimento de espaços sociais para plena participação.

Políticas públicas, programas de comunicação, advocacia, pesquisa e ensino devem definir e lidar com os problemas tendo em vista o “fenômeno geral”, não questões isoladas, objeto de programas segmentados, ao sabor das circunstâncias do momento e dos interesses de grupos predominantes. Uma civilização ecológica inclui a herança natural e cultural, educação, equidade, saúde e ética.

Enquanto no interior das nações (e entre elas), a assimetria de poder (político e econômico) levava a moradias precárias, à falta de saneamento básico, a endemias fatais, a conflitos de toda ordem, envolvendo apenas populações menos favorecidas, tudo parecia normal; somente agora, quando uma pandemia coloca em risco, indiscriminadamente, tanto os ricos como os pobres, é que se lembra que algo andava errado.

Por André Francisco Pilon, professor associado da FSP-USP

 

Artigo originalmente publicado no Jornal da USP e reproduzido in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 03/04/2020

[cite]

 

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