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Ecologia dos Saberes segundo Boaventura Santos, Parte 3/4, artigo de Roberto Naime

 

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Resenha de “Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes”, de Boaventura Santos, por Roberto Naime

[EcoDebate] SANTOS (2007) afirma que o pensamento abissal continuará a auto-reproduzir-se, por mais excludentes que sejam as práticas que origina, a menos que se defronte com uma resistência ativa.

A resistência política deve ter como postulado a resistência epistemológica. Não existe justiça social global sem justiça cognitiva global. Isso significa que a tarefa crítica que se avizinha não pode ficar limitada à geração de alternativas.

É preciso um novo pensamento, uma concepção pós-abissal.

Será isso possível? Existirão as condições que, se devidamente aproveitadas, poderão propiciar sua emergência?

A investigação sobre essas condições explica a atenção ao contramovimento resultante do abalo que as linhas abissais globais vêm sofrendo desde os anos 1970 e o que se designa como “cosmopolitismo subalterno”, por SANTOS (2007).

O denominado “cosmopolitismo subalterno” contém uma promessa real. Para se apropriar é necessário realizar aquilo que se chama de “sociologia das emergências”, a qual consiste numa amplificação simbólica de sinais, pistas e tendências latentes que, embora dispersas, embrionárias e fragmentadas, apontam para novas constelações de sentido referentes tanto à compreensão como à transformação do mundo.

O cosmopolitismo subalterno se manifesta mediante os diversos movimentos e organizações que configuram a globalização contra-hegemônica, lutando contra a exclusão social, econômica, política e cultural gerada pelo mais recente movimento, denominado como “globalização neoliberal”.

Tendo em mente que a exclusão social sempre é produto de relações de poder desiguais, essas iniciativas são animadas por um “ethos” redistributivo no sentido mais amplo da expressão.

Compreendendo todos os recursos materiais, sociais, políticos, culturais e simbólicos, baseados nos princípios da igualdade e do reconhecimento das diferenças.

SANTOS (2007) revela que desde o início deste século, o Fórum Social Mundial tem sido a expressão mais cabal da globalização contra-hegemônica e do cosmopolitismo subalterno.

Entre as entidades que dele participam, os movimentos indígenas são aqueles cujas concepções e práticas representam a mais convincente emergência do pensamento pós-abissal, o que é muito auspicioso para a possibilidade deste pensamento.

Já que os povos indígenas são os habitantes paradigmáticos do outro lado da linha, no campo histórico do paradigma “apropriação e violência”.

A novidade do cosmopolitismo subalterno reside acima de tudo em seu profundo sentido de incompletude, sem contudo ambicionar a completude. Por um lado, defende que a compreensão do mundo excede largamente a compreensão ocidental do mundo, e que a nossa compreensão da globalização é muito menos global do que a própria globalização.

Por outro lado, SANTOS (2007) defende que quanto mais compreensões não-ocidentais forem identificadas mais evidente se tornará o fato de que ainda restam muitas outras por identificar, e que as compreensões híbridas, com elementos ocidentais e não-ocidentais, são virtualmente infinitas.

O pensamento pós-abissal parte da ideia de que a diversidade do mundo é inesgotável e continua desprovida de uma epistemologia adequada, de modo que a diversidade epistemológica do mundo está por ser construída.

Traduzindo, se necessita de nova autopoiese no sentido da acepção de Niklas Luhmann, a construção de um novo arranjo de equilíbrio social. Não é nem no capitalismo com humanização, nem no socialismo com distribuição de riqueza que está a apropriação de futuro, pois ambos têm a mesma premissa de crescimento permanente, que é incompatível com os recursos naturais.

SANTOS (2007) registra que o pensamento pós-abissal parte do reconhecimento de que a exclusão social, no seu sentido mais amplo, assume diferentes formas conforme seja determinada por uma linha abissal ou não-abissal.

E da noção de que enquanto persistir a exclusão, definida abissalmente não será possível qualquer alternativa progressista. Durante um período de transição, confrontar a exclusão abissal será um pré-requisito para abordar de modo eficiente as muitas formas de exclusão não-abissal que têm dividido o mundo moderno.

O reconhecimento da persistência do pensamento abissal é condição indispensável para começar a pensar e a agir para além. Sem esse reconhecimento, o pensamento crítico permanecerá um pensamento derivativo, que continuará a reproduzir as linhas abissais por mais anti-abissal que se autoproclame.

O pensamento pós-abissal é um pensamento não-derivativo, pois envolve uma ruptura radical com as formas conhecidas de elaboração da modernidade ocidental.

SANTOS (2007) assinala que a emergência do ordenamento da apropriação e violência só poderá ser enfrentada se a perspectiva epistemológica na experiência social do outro lado da linha, a Sul do global, for concebida como a metáfora do sofrimento humano sistêmico e injusto.

O pensamento pós-abissal pode ser sintetizado como um aprender com o Sul usando uma epistemologia do Sul. Ele confronta a monocultura da ciência moderna com uma “ecologia de saberes”, na medida em que se funda no reconhecimento da pluralidade de conhecimentos heterogêneos e em interações sustentáveis e dinâmicas entre eles sem comprometer sua autonomia.

A ecologia de saberes se baseia na ideia de que o conhecimento é inter-conhecimento.

A primeira condição para um pensamento pós-abissal é a “co-presença radical”. A co-presença radical significa que práticas e agentes de ambos os lados da linha são contemporâneos em termos igualitários.

Implica conceber simultaneidade como contemporaneidade, o que requer abandonar a concepção linear de tempo.

A co-presença radical pressupõe a abolição da guerra, que com a intolerância, constitui a negação mais radical da co-presença.

Como ecologia de saberes, o pensamento pós-abissal tem por premissa a ideia da inesgotável diversidade epistemológica do mundo, o reconhecimento da existência de uma pluralidade de formas de conhecimento além do conhecimento científico.

Isto implica renunciar a qualquer epistemologia geral. Existem em todo o mundo não só diversas formas de conhecimento da matéria, da sociedade, da vida e do espírito, mas também muitos e diversos conceitos e critérios sobre o que conta como conhecimento.

Um exemplo prosaico deste conhecimento empírico a ser apropriado se apresenta. Se por algum motivo se descobre que tijolos roxos são mais resistentes do que tijolos laranjas, mesmo sem saber porque ou sem aplicações cartesianas, não há porque não utilizar este conhecimento.

Em meios ambiente, mais amplamente falando, esta ecologia de saberes ganha ampla dimensão.

Mas o contexto cultural em que se situa a ecologia de saberes é ambíguo. Por um lado, a ideia da diversidade sociocultural do mundo se fortaleceu nas três últimas décadas, favorecendo o reconhecimento da pluralidade epistemológica como uma de suas dimensões.

Por outro lado, se todas as epistemologias partilham as premissas culturais do seu tempo, uma das mais bem consolidadas premissas do pensamento abissal talvez seja, ainda hoje, a da crença na ciência como única forma de conhecimento válida e rigorosa.

SANTOS (2007) cita José Ortega y Gasset, que propôs uma distinção radical entre crenças e ideias, entendendo por estas últimas a ciência ou a filosofia. A distinção reside em que as crenças fazem parte de nossa identidade e subjetividade, enquanto as ideias nos são exteriores.

Enquanto nossas ideias nascem da dúvida e permanecem nela, nossas crenças nascem da ausência de dúvida. No fundo, a distinção é entre ser e ter, somos as nossas crenças, temos ideias. O que é característico do nosso tempo é o fato de a ciência moderna pertencer simultaneamente ao campo das ideias e ao campo das crenças.

A crença na ciência excede em muito o que as ideias científicas nos permitem realizar. Assim, a relativa perda de confiança epistemológica na ciência durante a segunda metade do século XX ocorreu de par com a crescente crença popular na ciência.

SANTOS (2007) conclui que a relação entre crenças e ideias como duas entidades distintas passa a ser uma relação entre duas maneiras de experienciar socialmente a ciência. E legitima a ciência popular como uma forma tão válida de conhecimento como qualquer outra, após a transgressão da abissalidade.

Dr. Roberto Naime, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em Geologia Ambiental. Aposentado do corpo Docente do Mestrado e Doutorado em Qualidade Ambiental da Universidade Feevale.

Sugestão de leitura: Civilização Instantânea ou Felicidade Efervescente numa Gôndola ou na Tela de um Tablet [EBook Kindle], por Roberto Naime, na Amazon.

 

Referência:

SANTOS, Boaventura de Sousa, Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes, Novos estud. – CEBRAP n. 79 São Paulo nov. 2007, http://dx.doi.org/10.1590/S0101-33002007000300004

 

Nota da redação: para acessar as partes anteriores deste artigo clique nos links

Parte 1

Parte 2

 

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 12/09/2019

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