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O trabalho infanto-juvenil é comprovadamente prejudicial ao desenvolvimento físico e psicológico e ao desempenho educacional

 

Era uma vez… Histórias de infância e adolescência roubadas

No Brasil, seguem explorados 2,3 milhões de meninos e meninas, o que representa 2% das 152 milhões de crianças e adolescentes entre cinco e 17 anos que estão na mesma situação no mundo. Considerado aqui e por vários países uma prática ilegal, o trabalho precoce é comprovadamente prejudicial ao desenvolvimento físico e psicológico e ao desempenho educacional

Por Katia Machado – EPSJV/Fiocruz

Em agosto de 2017, dezenas de crianças com cinco a 12 anos foram flagradas trabalhando em casas de farinha do município de Cruzeiro do Sul, no interior do Acre. Elas manuseavam facões e carregavam sacos com até 50 quilos do produto. Uma das dificuldades encontradas pelos assistentes sociais e fiscais que estavam no local foi a resistência das famílias em aceitar que o trabalho infantil era crime. Quase dois anos depois, em julho deste ano, um jovem imigrante boliviano, de 16 anos, foi encontrado em uma oficina de costura na cidade de Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo, em situação de trabalho exaustivo e degradante.

Ambos os casos rompem os cem anos de uma das primeiras convenções de combate ao trabalho infanto-juvenil, de número 5, adotada pela Organização Internacional do Trabalho, a OIT. Em 1919, a agência da Organização das Nações Unidas (ONU), da qual o Brasil é membro, estabelecia o limite etário mínimo de 14 anos para admissão nos trabalhos industriais. O texto seria atualizado mais tarde pela Convenção 138, de 1973, que recomendou que a inserção no mundo do trabalho não ocorresse antes da conclusão da escolaridade compulsória determinada por cada país, individualmente – e, em qualquer hipótese, não acontecesse antes dos 15 anos.

Em 1959, a ONU também adotou outro importante documento: a Declaração dos Direitos da Criança, que reconheceu a proteção contra toda forma de exploração na infância – embora afirmasse que “a criança deveria estar em condições de ganhar a vida”. Em 1979, as Nações Unidas estabeleceram o Ano Internacional da Criança, com o intuito de chamar atenção para problemas que persistiam em todo o planeta, como subnutrição e falta de acesso à educação, mas também o trabalho na infância. Por fim, em 1989, os países membros da ONU, entre eles o Brasil, assinaram a Convenção sobre os Direitos da Criança. O documento reconhece, em seu artigo 32, o amparo contra a exploração econômica e a proteção da infância dos trabalhos considerados perigosos, que possam trazer riscos à saúde física e mental ou interfiram na educação nessa fase da vida. Exatos 30 anos depois, em 2019, o debate em torno do trabalho no contexto da infância e da adolescência ainda divide a sociedade em várias partes do mundo.

Panorama assustador

A OIT estima: no mundo, há 73 milhões de menores de idade que trabalham em ocupações perigosas, como agricultura, mineração, construção civil e fábricas. O número representa quase metade dos 152 milhões de jovens que têm entre cinco e 17 anos e estão envolvidos em alguma atividade produtiva. E o Brasil?

Entre 2004 e 2015, foram retirados 5,3 milhões de crianças e adolescentes da situação de trabalho, segundo cálculos do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI) feitos com base na Pnad, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2016, com informações colhidas em 2015 – referência para instituições e especialistas que atuam no combate ao trabalho infantil (leia mais aqui). Contudo, estima-se que aproximadamente 2,7 milhões de meninos e meninas exerçam algum tipo de ocupação, o que representa 6% das 40,1 milhões de pessoas nessa faixa etária.

Desse universo, 2,3 milhões estão trabalhando sem a proteção especial a que têm direito, seja porque estão abaixo da idade mínima indicada para a entrada no mercado de trabalho, seja porque atuam em ambientes perigosos ou insalubres, sem carteira assinada no mercado de trabalho informal. Apenas 406 mil adolescentes estão ocupados de forma legal. Ou seja, a partir dos 14 anos na condição de aprendiz. A maior parte da mão de obra de indivíduos entre cinco e 17 anos segue explorada de forma indiscriminada na cidade e no campo; nas ruas, nas indústrias, nos comércios e em casa.

A situação de trabalho precoce e ilegal pode ser melhor dimensionada a partir de uma divisão por faixa etária. Há 79 mil crianças entre cinco e nove anos trabalhando. O número sobe para 333 mil na faixa que compreende os dez e 13 anos. E 1,9 milhão entre 14 e 17 anos.

Também ajuda a compreender o quadro a separação por região do país. O maior contingente de crianças e adolescentes trabalhando está no Sul: são 224.100 na faixa etária dos cinco aos 17 anos – ou 8,3% dos 2,7 milhões registrados pelo IBGE em situação de trabalho, legal ou não. Depois, vem o Centro-Oeste, com 194.400; o Norte, com 191.700; o Nordeste, com 180.900; e o Sudeste, com 151.200.

“São crianças e adolescentes que estão deixando de viver suas infâncias, fase em que se constituem como sujeitos plenos, para assumir responsabilidades de pessoas adultas. E isso tem um preço: esses indivíduos sofrerão lesões físicas, psíquicas e sociais. Terão seus desenvolvimentos emocional e educacional comprometidos”, caracteriza Patrícia Sanfelici, coordenadora nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente do Ministério Público do Trabalho (MPT).

Tânia Dornellas, representante do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), que congrega diversas entidades envolvidas com políticas e programas de prevenção e erradicação desse tipo de trabalho no Brasil, chama atenção para o problema de desigualdade racial que se revela nesse contexto. Um estudo da FNPETI, também feito com base na Pnad 2015, calcula que meninas e meninos negros (a soma entre quem se declara preto e pardo) totalizam 1,7 milhão, o equivalente a nada menos do que 62,5% das pessoas nessa situação.

“A cultura escravocrata é tão arraigada na nossa sociedade que boa parte das pessoas não enxerga erro nem ilicitude no fato de ter milhões de crianças e adolescentes – sendo a maioria negra – trabalhando para ajudar no sustento das famílias. E ainda se locupleta disso, valendo-se do processo de exploração de uma força de trabalho barata”, acrescenta a professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), Marise Ramos.

As garantias brasileiras

trabalho infanto-juvenil
Foto: Valter Comparato – Agência Brasil

Muita gente não sabe, mas o Brasil antecedeu a própria Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU quando garantiu, na Constituição Federal de 1988, proteção integral a esse grupo, solidificando o que seria a base para o combate ao trabalho infanto-juvenil. Pouco tempo depois, em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente, popularmente conhecido como ECA, proibiu qualquer forma de trabalho para menores de 14 anos, passando a considerar para fins de aplicação da lei que “criança é a pessoa com até 12 anos de idade incompletos” e adolescente “aquela entre 12 e 18 anos de idade”. Além disso, o ECA garantiu diversos direitos, entre eles, à educação, à profissionalização, à dignidade e à convivência familiar e comunitária.

Mais tarde, em 1998, a emenda constitucional nº 20 estabeleceu o marco legal de 16 anos como a idade mínima para o ingresso no mercado de trabalho. Mas previu algumas exceções: o jovem pode atuar, a partir dos 14 anos, na condição de aprendiz. Desde que não haja prejuízos à formação, ao desenvolvimento físico, psíquico, moral e social e à frequência escolar. A EC 20 estabeleceu os 18 anos como a idade a partir da qual o jovem pode enfrentar situações de trabalho noturno, perigoso ou insalubre, que são aquelas que se dão em ambientes com exposição a agentes nocivos à saúde devido à presença de ruídos intensos, calor, radiação, agentes químicos e biológicos acima do limite de tolerância, poeiras minerais e elevado nível de umidade. Enquadram-se nessas condições as profissões de soldador, bombeiro, químico e dos profissionais de ramos como metalurgia, construção civil e mineração. O conteúdo desta emenda foi também abrigado pela Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT, e reafirmado por um decreto presidencial assinado em 2002 (nº 4.134), que promulgou a Convenção 138 da OIT.

Em 2000, a Lei da Aprendizagem (nº 10.097) reafirmou a condição de aprendiz. A definição é a seguinte: “aprendiz é o jovem que estuda e trabalha, recebendo, ao mesmo tempo, formação na profissão para a qual está se capacitando”.
“Toda essa legislação, porém, acaba se tornando inócua quando parte da sociedade perversamente enxerga no trabalho infanto-juvenil uma forma de ganhar dinheiro, sem reconhecer os prejuízos ao desenvolvimento físico, psicológico e educacional dessas crianças e adolescentes”, lamenta Marise Ramos.

Mesmo com o arcabouço conceitual e jurídico que envolve o tema, o Brasil enfrenta dificuldades para colocar em prática medidas efetivas de combate ao trabalho infantil. “Se o ritmo de combate ao problema continuar lento, o país não conseguirá alcançar o compromisso que assumiu internacionalmente”, alerta Tânia Dornellas, referindo-se aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, os ODS, estabelecidos pela ONU em 2015. No contexto do acordo global, o Brasil se comprometeu a erradicar as piores formas de trabalho infantil – entre elas as atividades agrícolas, domésticas, informais urbanas, no lixo e com o lixo, na produção e tráfico de drogas e de exploração sexual de crianças e adolescentes – até 2020. E todas as formas de trabalho infantil até 2025.

Em 2006, o país já havia assumido o compromisso de erradicar, até 2016, as piores formas de trabalho infantil, por meio de um acordo global com a OIT, mas precisou renegociar os prazos.

Se, por um lado, o Brasil tirou, entre 2004 e 2015, 5,3 milhões de crianças e adolescente da condição de trabalhadores, por outro, desde 2013, vem registrando aumento dos casos de trabalho entre crianças de cinco a nove anos. Em 2015, havia quase 80 mil pessoas nessa faixa etária em situação de trabalho infantil. Segundo a Pnad daquele ano, cerca de 60% delas – ou 48 mil – viviam na área rural das regiões Norte e Nordeste, atuando em atividades agrícolas.

No ano de 2000, o país promulgou o decreto 3.597, ratificando outra Convenção da OIT, de número 182, aprovada em 1999. O documento trata das piores formas de trabalho infantil. Mais tarde, em 2012, por meio do decreto 6.481, o Brasil assumiu o compromisso de adotar, em caráter de urgência, medidas de combate a essas atividades. Entre um decreto e outro, o governo federal lançou ainda, em 2004, o Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente Trabalhador. Isso ocorreu na esteira da criação de outra estrutura importante nessa história: a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (Conaeti).

Mas na avaliação de Patrícia Sanfelici, o Plano – que está em sua terceira edição (2019-2022) – corre risco de não avançar na prática. “Isso porque o decreto 9.759, editado em abril pelo presidente Jair Bolsonaro, extinguiu a Conaeti, a quem cabia a elaboração e o acompanhamento das ações de combate ao trabalho infantil, junto com outros colegiados da administração pública federal”, explica.

Ela realça outra iniciativa que foi impulsionada pelo ECA e contribuiu para que o país avançasse até 2015: o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti). Lançado em 1996 com o objetivo de retirar crianças e adolescentes menores de 16 anos do trabalho precoce, o Peti assegurou transferência direta de renda às famílias. A contrapartida era que crianças e adolescentes apresentassem boa frequência escolar e frequentassem serviços de orientação e acompanhamento.

Inicialmente, o programa foi projetado para combater o trabalho infantil nas carvoarias do Mato Grosso do Sul, prática que levou a milhares de denúncias na ocasião. Segundo um relatório do FNPETI, somente em 1996 foram atendidos 1,5 mil crianças e adolescentes que trabalhavam em fornos de carvão e na colheita de erva-mate. Destinado às famílias atingidas pela pobreza e pela exclusão social, com renda per capita de até meio salário mínimo e com filhos na faixa etária de sete a 14 anos, o Peti foi posteriormente estendido aos canaviais de Pernambuco, à região sisaleira da Bahia e aos estados de Amazonas e Goiás. Em 2003, o programa foi integrado ao Bolsa Família. O benefício é condicionado, entre outras coisas, à obrigação de crianças e adolescentes entre seis e 17 anos estarem matriculadas e frequentando a escola.

“Houve avanços na proteção à infância nos últimos anos, e eles aconteceram porque se ampliou o acesso à escola e às creches, mas também porque tivemos políticas de transferência de renda relacionadas à frequência escolar”, sublinha a diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da Fundação Getúlio Vargas (Ceipe/FGV), Claudia Costin, que foi secretária municipal de Educação do Rio de Janeiro entre 2009 e 2014. Ela acrescenta: “Isso vai na mesma direção de países que resolveram problemas sociais pelos quais o Brasil passa hoje em dia, pois condiciona o benefício que ajuda muitas vezes a aplacar a fome ao fato de a criança estar frequentando a escola”.

Subversão de papéis

A legislação internacional define o trabalho infantil como aquele em que crianças ou adolescentes são obrigados a efetuar qualquer tipo de atividade econômica regular, remunerada ou não, que afete seu bem-estar e desenvolvimento físico, psíquico, moral e social. Ou seja, é quando o mundo de aprendizados, sonhos, brincadeiras e proteção é substituído por uma rotina de responsabilidade, exposição a perigos e risco de traumas.

“O trabalho infantil é ilegal e priva crianças e adolescentes de uma infância normal, impedindo-os não só de frequentar a escola e estudar normalmente, mas também de desenvolver de maneira saudável todas as suas capacidades e habilidades”, orienta a OIT. Segundo a agência da ONU, trata-se de uma grave violação dos direitos humanos e dos direitos e princípios fundamentais no mundo do trabalho, “representando uma das principais antíteses do trabalho decente”.

crianças brincando
Foto: Mídia Ninja

A infância, que vai do nascimento à puberdade, ou seja, de zero a 12 anos de idade, remete ao sentido figurado do início do mundo. É nos primeiro anos de vida –até três anos de idade – que há o aumento do interesse por outras crianças, e a compreensão e a fala se desenvolvem rapidamente. Nessa etapa da vida, as crianças desenvolvem a autoconsciência, explicam os especialistas da infância. Entre os três e seis anos, habilidades como força, independência, coordenação motora e autocontrole aumentam. A criança pode se tornar egocêntrica nesse período, mas as brincadeiras se tornam mais elaboradas e ideias lógicas sobre o mundo surgem. Entre os seis e 12 anos, passam a desenvolver a autoimagem e seu egocentrismo diminui. Nesse período, as crianças pensam com mais lógica e sua memória e habilidades linguísticas aumentam. Os amigos passam a ser fundamentais. Crescem menos, porém sua força e habilidade física aumentam.

Já a adolescência é o período compreendido entre os 13 e os 18 anos. A transição entre a infância e a idade adulta se caracteriza pelos impulsos do desenvolvimento físico, mental, emocional, sexual e social e pelos esforços do indivíduo em alcançar os objetivos relacionados às expectativas culturais da sociedade em que vive. É uma fase marcada por mudanças corporais da puberdade, que termina quando o indivíduo consolida seu crescimento e sua personalidade.

Por esses motivos, a infância e a adolescência merecem cuidados e proteção especiais. Trabalhos manuais em lavouras, fazendas de corte ou madeireiras – considerados de alta periculosidade para adultos – são física e emocionalmente prejudiciais nessas duas fases da vida. São atividades que provocam doenças musculares e ósseas, como tendinite ou curvaturas anormais na espinha. E também ferimentos, mutilações, males respiratórios, problemas de pele e envelhecimento precoce, lista a Rede Peteca, plataforma lançada em 2016 a partir de uma parceria entre a Associação Cidade Escola Aprendiz, o Ministério Público do Trabalho e a Associação para o Desenvolvimento dos Municípios do Estado do Ceará.

Apesar disso, a atividade na agricultura faz parte da realidade de 864 mil crianças e adolescentes entre cinco e 17 anos, o que representa 32% do total de trabalhadores nessa faixa etária, de acordo com a Pnad 2015.

O relatório da Fundação Abrinq sobre trabalho infantil nas atividades agrícolas, divulgado em 2017, com base nos dados da mesma Pnad, faz um alerta: o número de pessoas entre cinco e 17 anos trabalhando de maneira irregular no campo e na cidade declinou 19,8% e nas atividades não agrícolas caiu 22%, enquanto o ritmo foi menor nas atividades agrícolas, com redução de 17%. O estudo estima que, se o número de crianças entre cinco e nove anos trabalhando em todas as atividades aumentou em 12,3%, passando de 70 mil para 79 mil entre 2014 e 2015, foi porque o trabalho no campo nessa faixa etária, sozinho, cresceu 15,4%, atingindo 67.125 em 2015, contra 58.188 em 2014. E desse montante, 8.771 crianças não sabiam ler ou escrever.

Um estudo do FNPETI, em parceria com o Ministério Público do Trabalho (que também tem como base a Pnad 2015), confirma cenário parecido: a atividade agrícola predominou na faixa etária de cinco a 13 anos, representando 64,7% dos ocupados, índice maior do que em 2014, quando foi detectado 62,1%. A prevalência diminui nas faixas etárias mais avançadas, que passam a realizar outros tipos de atividades. Ainda sim, 37,5% trabalham na agricultura com 14 ou 15 anos, e 21,4%, entre 16 ou 17 anos. “Trata-se de uma necessidade, mas também de uma prática cultural, que faz parte da lista das piores formas de trabalho infantil, por conta da exposição a agentes agressores presentes no ambiente rural, como os agrotóxicos, e do contato com maquinários perigosos”, lamenta a procuradora Patrícia Sanfelici.

Soraya Franzoni Conde, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), explica por que o trabalho infantil na agricultura é bastante comum na região Sul. “Trata-se de uma cultura do trabalho no campo, além de uma necessidade econômica. As crianças recebem de presente uma pequena enxada, porque isso faz parte da prática daquele grupo social. Mas é preciso saber que essa cultura, em geral, faz parte das famílias de classes sociais mais baixas. Pois não há hábitos culturais dissociados do lugar social de uma família que tem múltiplas necessidades”. Em Santa Catarina, estado onde realiza boa parte de suas pesquisas sobre trabalho infantil no campo, a prática aumenta consideravelmente aos nove anos. Não por acaso, é a partir desta idade que o tempo de dedicação aos estudos diminui.

“Há um grande número de crianças que, ao concluir os anos finais do ensino fundamental, por volta dos 13 anos, abandona a escola e passa a trabalhar somente no campo”, afirma Soraya. E compara: “Os filhos dos grandes latifundiários e empresários, embora estejam no campo, vão se formar nas melhores escolas das capitais para depois administrar as fazendas e as empresas dos pais. Já os filhos dos pequenos agricultores do Sul do país vão estudar ali por perto, e por vezes abandonam a escola para ajudar seus responsáveis em suas pequenas propriedades agrícolas”.

As atividades urbanas correspondem a 68% do universo de crianças e adolescentes de cinco a 17 anos em situação de trabalho. São 1,8 milhões de indivíduos nessa faixa etária trabalhando em residências, empresas de confecção – como a do jovem imigrante que abre esta reportagem –, na construção civil ou no comércio informal de produtos, como no caso de camelôs.

Soraya Conde, por exemplo, denuncia o caso de crianças e adolescentes que estão nos ateliês do município catarinense de São João Batista, onde se instalou um polo calçadista. “Eles estão invisíveis, trabalhando no processo de colar, costurar e bordar com miçangas e linhas os calçados de marcas conhecidas que serão finalizados nas fábricas”, afirma.

No contexto urbano, a Rede Peteca destaca os perigos representados pelo trabalho na construção civil, seja na obra em si, seja na restauração, reforma ou nos processos de demolição. Tudo isso provoca, de acordo com a plataforma, doenças de músculo e ossos, mutilações, traumatismo, intoxicação por poeira, doenças de pele e até episódios depressivos. Não por acaso, a realização dessas atividades só é permitida por lei aos 18 anos. Mas, de acordo com o Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador do Ministério da Saúde, desde 2007 quase 40 mil crianças e adolescentes sofreram algum tipo de acidente enquanto trabalhavam na construção civil. Mais da metade das ocorrências foram graves – o que inclui amputação de mãos e braços, e até mortes.

Outro exemplo dado pela Rede Peteca é a atividade doméstica, que envolve tanto o trabalho para terceiros, quanto dentro da própria casa. “Ele afeta em geral meninas de origem humilde, que não somente prestam serviços em casas de terceiros, sujeitas a todo tipo de violência, mas também dentro da própria casa, o que pode caracterizar uma jornada dupla de trabalho”, detalha a instituição. Segundo a Rede Peteca, o trabalho doméstico traz risco de doenças por esforço repetitivo – como tendinite –, contusões, ferimentos, queimaduras e deformidade na coluna vertebral. Além de alterar a dinâmica familiar, provocar ansiedade, transtorno de sono e neurose profissional. Embora a lei proíba o trabalho doméstico antes dos 18 anos, estima-se que 175 mil crianças e adolescentes se enquadrem nessa situação.

Do universo de crianças com o nariz puído de solventes e mãos calosas de limpeza, 164.850 (94,2%) são meninas. O dado é do levantamento da FNPETI realizado em 2014 – ou seja, dois anos depois do decreto 6.481, por meio do qual o país assumiu o compromisso de adotar, em caráter de urgência, medidas de combate às piores formas de trabalho infantil, entre elas o doméstico. Dessas meninas, 73,4% (121 mil) são negras e 83% (136.825) realizam, concomitantemente, afazeres domésticos em sua própria casa.

“Diferentemente de outras formas de trabalho infantil, os serviços domésticos não têm fim, pois há sempre algo a ser limpo ou alguém a ser alimentado. Além disso, crianças que trabalham em casas de terceiros geralmente realizam tarefas em suas casas e estudam, em uma jornada tripla que tira qualquer possibilidade de brincar e se desenvolver normalmente”, caracteriza Tânia Dornellas.

Não é qualquer trabalho

Na avaliação de Patrícia Sanfelici, o trabalho no contexto da infância e da adolescência não pode ser confundido com o ato de uma criança ajudar nas tarefas domésticas ou um jovem ajudar no comércio da família. “É diferente uma criança ser responsável por arrumar a sua cama ou um jovem ajudar no comércio de seus pais em seu tempo livre de uma criança ser responsável por cuidar dos seus irmãos menores, por arrumar toda a casa e cozinhar ou de sair para a rua à procura de trabalho para ajudar no sustento de casa. São realidades opostas: a primeira faz parte da vida social, a segunda é desumana”, especifica.

Claudia Costin explica que o trabalho infantil faz com que crianças e adolescentes, que deveriam ser protegidos pelo Estado e pela família, estejam muitas vezes provendo o sustento de sua casa, seja cuidando dos irmãos menores, seja nas ruas vendendo doces ou pedindo esmolas, seja na colheita, na realização dos trabalhos domésticos, nas oficinas de costura, nos semáforos ou mesmo expondo-se à exploração sexual e ao tráfico de drogas. “Mas isso significa que uma fase da vida crucial ao seu desenvolvimento está sendo roubada”, afirma. O trabalho, segundo a pesquisadora da FGV, faz parte da vida humana, mas exclusivamente da vida adulta. “As crianças têm duas coisas muito importantes para fazer: aprender, o que se faz na escola; e brincar, mecanismo também de desenvolvimento e aprendizagem”, defende.

O combate ao trabalho infantil estabelecido em diversas leis nacionais e convenções internacionais parte da noção de que a infância e a adolescência são uma fase da vida que não se mistura com trabalho. Mas essa consciência social nem sempre existiu. Soraya realça que a prática de submeter crianças e adolescentes ao trabalho é antiga. “Mas isso tinha outra conotação: relatos históricos da Idade Média mostraram como muitas crianças ficavam responsáveis, por exemplo, por carregar algodão, por amassar a uva, entre outras atividades da vida agrícola, com respeito aos limites do corpo físico da criança pequena, pois eram atividades associadas à subsistência da família”, elucida.  “É o que chamamos nos estudos do mundo do trabalho de ‘satisfação das necessidades da família’”, detalha. E continua: “A família produzia para o próprio consumo – com a ajuda das crianças – e uma pequena parte do que era produzido depois era comercializado, pois o foco da produção não era vender o produto, mas a subsistência”.

A pesquisadora da UFSC ensina que a exploração do trabalho infantil nasceu com a exploração do trabalho adulto, que se dá com o advento do sistema capitalista de produção. “As pessoas passam a trabalhar não somente para satisfazer as suas necessidades. Elas trabalham para produzir, vender e saciar suas necessidades”, realça. Isso significa, segundo ela, que o produto tem que ser produzido em larga escala e com preço competitivo  – “contando para isso com a exploração da força de trabalho infanto-juvenil”.

Descaminhos e caminhos do trabalho

O fato é que o trabalho infanto-juvenil afeta especialmente as famílias de baixa renda. Um estudo da Fundação Abrinq de 2017 estima que 17,3 milhões (40,6%) de quem tem entre zero e 14 anos no Brasil vivia em domicílios de baixa renda. O IBGE, por sua vez, aponta que 49,8% das famílias brasileiras com crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil têm rendimento mensal per capita menor do que meio salário mínimo, que hoje é de R$ 998. O rendimento médio mensal domiciliar per capita das pessoas de cinco a 17 anos ocupadas, segundo a Pnad 2015, é de R$ 630.

Por conta da situação de pobreza, a saída é o trabalho. Uma das consequências é que crianças e adolescentes trabalhadores dedicam pouco tempo aos estudos e, por vezes, abandonam a escola. A Pnad de 2015 estima que 20% das pessoas entre cinco e 17 anos que estão situação de trabalho – ou seja, 540 mil crianças e adolescentes – estão bem longe dos espaços escolares.

O problema afeta especialmente a população de 15 a 17 anos, responsável por mais da metade (58%) de todo o trabalho infantil urbano no Brasil: eles são 140 mil jovens. Trata-se de um índice superior à média nacional dos jovens brasileiros de 15 a 17 anos que estão longe do ambiente escolar que, em 2016, somavam 1,3 milhão. “Estamos falando de jovens que deveriam estar na escola, por vezes em contexto de formação profissional. Mas por necessidade econômica, suas famílias abrem mão de um futuro decente”, diz Marise Ramos.

A professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz completa: “A lei determina a obrigatoriedade da educação escolar e imputa aos responsáveis e ao Estado essa obrigação. Mas entre o benefício da renda imediata e o benefício futuro da escolaridade, essas famílias escolhem a primeira opção. Uma família nessa situação certamente diria: ‘Se eu tiver que ser responsabilizada pelo fato de meu filho não estar na escola, eu serei. O que adianta ele estar na escola e a gente não ter o que comer?’”.

Para Patrícia Sanfelici, a concentração do trabalho infantil nas maiores faixas etárias é atemorizante pelo fato de o país contar com uma avançada legislação sobre o tema, caso da Lei da Aprendizagem. Se cumprida, diz ela, o Brasil estaria ofertando o primeiro emprego e qualificando milhares de jovens ao mesmo tempo, bem como servindo de instrumento de combate ao trabalho infanto-juvenil.

Isso porque, explica a promotora, a lei obriga as empresas de médio e grande porte (com faturamento anual acima de R$ 4,8 milhões) a preencher de 5% a 15% de seus quadros de funcionários com jovens aprendizes, que podem ter entre 14 e 24 anos. E a ofertar, paralelamente ao trabalho, qualificação profissional, por meio de contratos de, no máximo, dois anos – sem que os aprendizes abandonem o ensino regular.

“As empresas são obrigadas por lei a contratarem aprendizes, o que levaria a um montante aproximado de um milhão de vagas, considerando o percentual mínimo de 5%. No entanto, temos atualmente cerca de 400 mil vagas ocupadas com jovens aprendizes. Ou seja, sobram 600 mil vagas, Elas poderiam ser destinadas a centenas de milhares de jovens que estão, hoje, nas ruas vendendo todos os tipos de produtos, na agricultura, cooptados pelo tráfico ou explorados sexualmente”, calcula Patrícia, com base no levantamento realizado pelo extinto Ministério do Trabalho e Emprego entre janeiro e setembro de 2017, quando foram contratados 310,9 mil jovens entre 14 e 24 anos.

Ainda que este tenha sido o maior contingente de aprendizes registrado em uma década, o número de contratos equivaleu a um terço das 939,7 mil vagas que poderiam ter sido abertas, caso todas as empresas cumprissem a legislação. “E a lei não está focada no trabalho, e sim no aprendizado, orientando que o adolescente não está empregado apenas para cumprir uma tarefa, que ele não é simplesmente mão de obra. Ele está ali para aprender um ofício e para se reconhecer cidadão de direitos, inclusive de direitos trabalhistas”, complementa a procuradora.

Mas a falta de fiscalização contribui para que as empresas não cumpram com as cotas determinadas, nem com o objetivo principal da lei, de oferecer aprendizado profissional. “Os fiscais do trabalho infanto-juvenil são poucos, não dão conta de chegar a todos os lugares. Não se sabe o que, de fato, estão fazendo os aprendizes legais”, diz Soraya Conde.

A pesquisadora pondera, no entanto, que não cabe às empresas a formação integral dos adolescentes, mas, sim, sua inserção no mundo do trabalho: “Quem deve formar os jovens é a escola, que está, na verdade, preparando-os para serem ‘executores de tarefas simples’ porque essas são as necessidades do sistema capitalista de produção. Cada vez mais a produção do conhecimento vai sendo cooptada pelas grandes empresas, reservando aos jovens de classes mais altas as melhores formações e deixando para os jovens de classes baixas as tarefas mais simples”, lamenta. Marise Ramos, que afirma não ter uma profissão mais adequada que outra para o adolescente, completa: “Ao jovem deverá ser garantido por meio de políticas sociais o direito à educação, permitindo-o exercer a profissão que escolher na idade legal”.

 

Da EPSJV/Fiocruz, in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 02/09/2019

[cite]

 

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