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Efeitos das mudanças climáticas requerem uma gestão policêntrica dos recursos hídricos

 

Mudança climática requer uma gestão policêntrica dos recursos hídricos. Entrevista especial com Bruno Puga

IHU

Os efeitos das mudanças climáticas sobre os recursos hídricos exigirão um novo tipo de gestão para evitar futuras crises hídricas, a exemplo da que aconteceu em São Paulo entre 2013 e 2015. Segundo Bruno Puga, economista e mestre em desenvolvimento econômico, o aumento da temperatura terá um impacto na evapotranspiração, alterando os ciclos hidrológicos. “Além de mais frequentes, a intensidade destes eventos deverá ser muito maior, alterando a distribuição de chuvas e os padrões históricos. Isso exigirá uma abordagem distinta do que estamos acostumados, colocando a incerteza dentro do processo de tomada de decisão”, afirma.

Autor da tese de doutorado intitulada Governança dos recursos hídricos: a crise hídrica de São Paulo (2018), Puga analisou os processos de enfrentamento da crise paulista e concluiu que “os diversos atores, ligados ou não aos recursos hídricos, enxergaram a crise como uma janela de oportunidade para tentar colocar suas agendas em prática”. Na avaliação dele, o enfrentamento de crise desse tipo ainda é tímido, e “a experiência brasileira tem demonstrado a preferência quase que total por soluções de aumento da oferta, com transposições de outras bacias e construções de grandes reservatórios. Mas negligencia de forma grotesca o lado da demanda. Como explicar que São Paulo tem uma taxa média de perdas de água tratada de mais de 30%? Programas de uso racional da água ainda são incipientes, bem como o reúso de água para outros fins que não o consumo humano. Sem contar com a falta de saneamento e descaso com os mananciais. Ou seja, além de desperdiçarmos grande parte da água tratada, ainda devolvemos, em muitos casos, de forma pior do que coletamos”, informa.

Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, Puga explica ainda que, embora São Paulo tenha uma política de mudanças climáticas desde 2009, “o desafio é colocar essa variável no centro de todas as políticas setoriais que serão afetadas. Não se pode restringir a esfera de atuação apenas aos recursos hídricos, mas sim a todos os setores que serão afetados. A dificuldade reside principalmente em trazer para o presente esta preocupação que alguns acreditam que está em um futuro longínquo. Como priorizar a alocação de recursos para políticas de enfrentamento e adaptação às mudanças climáticas em um cenário de restrição de recursos humanos e financeiros é um desafio maior ainda”.

Para enfrentar os desafios das mudanças climáticas, Bruno Puga sugere a adoção de uma gestão policêntrica. “O policentrismo é uma antítese de um sistema monocêntrico, onde a autoridade e o poder se concentram em apenas um ator. Sistemas policêntricos são constituídos de múltiplos centros de decisão sem uma hierarquia de um em relação aos outros, mas que atuam de forma coordenada”, explica.

Bruno PugaBruno Pugna | Foto: Jornal da Unicamp

Bruno Puga é graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, mestre e doutor em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que a sua tese de doutorado revela sobre o modo como as instituições paulistas lidaram com a crise hídrica entre 2013 e 2015?

Bruno Puga – Minha pesquisa tenta entender como os diferentes atores e organizações enfrentaram a crise hídrica em diversas escalas. Crises são antes de tudo uma disputa de narrativa, de culpa e de soluções. As narrativas ajudam a entender como está estruturado o modelo mental por trás das escolhas. Entender que tipo de solução foi proposta, por quem e se foi aceita ou não pode revelar muito sobre a maneira que a gestão dos recursos hídricos ocorre na prática. Os diversos atores, ligados ou não aos recursos hídricos, enxergaram a crise como uma janela de oportunidade para tentar colocar suas agendas em prática.

Em um primeiro momento houve uma minimização, e até mesmo negação, de que a situação era grave. À medida que os reservatórios foram esvaziando e a situação foi ganhando contornos mais dramáticos é que se delineia a atuação dos diferentes atores. O momento foi extremamente rico em debates, informações e análises, mas que não foram estimulados e iniciados por aqueles que tomam a decisão. Ponto positivo para a sociedade civil e movimentos sociais que se articularam e ocuparam diversas arenas em busca de transparência e informação, demonstrando o esvaziamento das arenas tradicionais.

O estado tentou se blindar ao máximo, seja defendendo a atuação da sua companhia de saneamento (Sabesp) ou justificando a falta de investimentos necessários. De modo geral demonstrou como o poder público tem dificuldade em informar a população, com ausência de transparência e centralização na tomada de decisão. A coincidência da crise com as eleições adicionou uma camada ainda maior de impermeabilidade do estado em reconhecer a gravidade da situação e de fazer o papel que se espera em termos de responsabilidade. Apesar de não reconhecer o início da crise, o governo de São Paulodecretou o fim dela. Isso demonstra a forma como o processo político é eficiente em alardear soluções, mas não em resolver de fato o problema.

IHU On-Line – Quais são os riscos de São Paulo enfrentar uma nova crise hídrica, nas proporções das que enfrentou entre 2013 e 2015?

Bruno Puga – Se agirmos da mesma forma como na crise anterior, o risco com certeza existe. Há um debate crescente entre cientistas para saber se os padrões climáticos do passado ainda servem como guia absoluto para o futuro. Os representantes do Estado se apoiaram na narrativa da imprevisibilidade climática para justificar as ações que tomaram. E de fato, se olharmos para o padrão climático passado, a probabilidade da ocorrência de uma seca igual àquela é de 0,4%. Mesmo assim, ela ocorreu! Em um cenário moldado pela incerteza, onde não é possível calcular a probabilidade da ocorrência de um evento futuro, temos que criar mecanismos de proteção mais cautelosos e agir com base no princípio da precaução.

Do ponto de vista operacional e técnico, as obras efetuadas, como a transposição entre as represas Jaguari e Atibainha, a interligação dos sistemas produtores e a entrada de novos sistemas, a situação tende a ser mais controlável em caso de uma restrição severa no Cantareira. No entanto, ainda não ficou claro como se dará essa operação. O que podemos afirmar é que houve um aumento na complexidade da gestão desse sistema e que somente com o passar do tempo poderemos analisar.

IHU On-Line – Que fatores são necessários para garantir a segurança hídrica? Por que, na sua avaliação, no caso de São Paulo há dificuldades em garanti-la?

Bruno Puga – Atingir a segurança hídrica significa garantir o acesso seguro de uma quantidade suficiente de água de boa qualidade para possibilitar o bem-estar humano, o desenvolvimento econômico e a saúde dos ecossistemas. É tratar a água como serviço fundamental e não simplesmente como uma mercadoria que pode ser transportada de um lugar a outro. Atingir a segurança hídrica humana às custas da integridade dos ecossistemas também não garante uma sustentabilidade no longo prazo.

No caso de São Paulo, estamos longe de atingir um estado mínimo de segurança hídrica. A região depende quase que exclusivamente de fontes de água fora de seu território, ao mesmo tempo em que temos uma situação deplorável dos recursos hídricos que cortam a cidade. O descaso histórico, aliado a um modelo centrado neste paradigma hidráulico, resultou nesse paradoxo. A cidade sofre com enchentes ao mesmo tempo em que falta água na torneira. Deve-se ir além das soluções focadas no aumento da oferta hídrica no curto prazo e priorizar a recuperação de seus corpos hídricos e de seus ecossistemas.

IHU On-Line – Como as mudanças climáticas poderão ou já estão causando implicações sobre os recursos hídricos?

Bruno Puga – Os recursos hídricos são os recursos mais sensíveis às alterações climáticas em diferentes escalas. De modo geral, o aumento da temperatura tem um impacto significativo na evapotranspiração, alterando o ciclo hidrológico. Segundo estudos recentes do IPCC (Painel Internacional da ONU para Mudanças Climáticas), a ocorrência de eventos climáticos extremos, como secas e enchentes, irá aumentar significativamente. Além de mais frequentes, a intensidade destes eventos deverá ser muito maior, alterando a distribuição de chuvas e os padrões históricos. Isso exigirá uma abordagem distinta do que estamos acostumados, colocando a incerteza dentro do processo de tomada de decisão.

IHU On-Line – Os efeitos das mudanças climáticas já estão sendo considerados pelas instituições que fazem a gestão dos recursos hídricos? Quais são as dificuldades que essas instituições têm em considerar os eventos extremos na gestão dos recursos hídricos?

Bruno Puga – No Brasil creio que ainda estamos tímidos frente a estes desafios. São Paulo conta desde 2009 com uma política específica para mudanças climáticas, mas o desafio é colocar essa variável no centro de todas as políticas setoriais que serão afetadas. Não se pode restringir a esfera de atuação apenas aos recursos hídricos, mas sim a todos os setores que serão afetados. A dificuldade reside principalmente em trazer para o presente esta preocupação que alguns acreditam que está em um futuro longínquo. Como priorizar a alocação de recursos para políticas de enfrentamento e adaptação às mudanças climáticas em um cenário de restrição de recursos humanos e financeiros é um desafio maior ainda. Daí a importância de estudos e previsões mais robustos que demonstrem que é mais econômico investir agora em prevenção e adaptação do que no futuro.

IHU On-Line – Pode nos dar exemplos de políticas internacionais que garantiram a eficiência hídrica? Em que essas experiências se diferem da brasileira?

Bruno Puga – Temos que buscar aprender com países e regiões que sofrem com restrição hídrica severa. Durante a crise hídrica houve um intercâmbio muito profícuo com experiências internacionais. A Austrália, por exemplo, conviveu durante 10 anos com a “seca do milênio”. Ao mesmo tempo em que sofríamos a crise em São Paulo, a Califórnia passava por uma situação até mais grave e não passou por essa situação quase calamitosa que enfrentamos. Não existe fórmula mágica, mas deve-se lançar mão de diversos instrumentos e políticas de enfrentamento que não são nenhuma novidade.

experiência brasileira tem demonstrado a preferência quase que total por soluções de aumento da oferta, com transposições de outras bacias e construções de grandes reservatórios. Mas negligencia de forma grotesca o lado da demanda. Como explicar que São Paulo tem uma taxa média de perdas de água tratada de mais de 30%? Programas de uso racional da água ainda são incipientes, bem como o reúso de água para outros fins que não o consumo humano. Sem contar com a falta de saneamento e descaso com os mananciais. Ou seja, além de desperdiçarmos grande parte da água tratada ainda devolvemos, em muitos casos, de forma pior do que coletamos.

IHU On-Line – A partir da sua pesquisa, você diria que a atual governança brasileira é capaz de garantir a segurança hídrica diante de eventos extremos? Sim ou não e por quê?

Bruno Puga – De forma alguma. Seja sofrendo com secas ou enchentes, ainda não conseguimos evitar algumas tragédias e situações que se repetem de tempos em tempos. A questão não é saber se vamos enfrentar de novo estas situações, mas quando se repetirá. Diferentemente do que tem ocorrido, devemos lutar para que exista uma aprendizagem social e política que se traduza em novas políticas públicas e diretrizes para estarmos mais preparados quando ocorrer novamente.

conceito de segurança hídrica ainda é muito incipiente nas nossas políticas. Iniciativas mais recentes, como o Plano Nacional de Segurança Hídrica, poderão nortear e coordenar o trabalho nos diversos setores. A cidade de São Paulo deu um primeiro passo e conseguiu aprovar uma lei que introduz essa variável no arcabouço institucional municipal, pressionada por uma iniciativa popular. Resta saber se irá fazer valer seu papel, principalmente como titular dos serviços de saneamento, para que não passe novamente por uma situação crítica como a crise anterior. A criação de um planejamento adequado, com o estabelecimento de uma matriz de responsabilidades e coordenação, ajudaria a tornar mais rápidas as respostas dos sistemas de governança.

IHU On-Line – Você tem sugerido que é preciso uma governança policêntrica para garantir a segurança hídrica. Em que consiste esse tipo de gestão? Quais são os desafios do Brasil para implementá-la?

Bruno Puga – O policentrismo é uma antítese de um sistema monocêntrico, onde a autoridade e o poder se concentram em apenas um ator. Sistemas policêntricos são constituídos de múltiplos centros de decisão sem uma hierarquia de um em relação aos outros, mas que atuam de forma coordenada. Com a redemocratização, o Brasilpassou por um processo de descentralização e de devolutiva de poder para as escalas locais e regionais. No caso dos recursos hídricos há um consenso de que a melhor escala para a gestão se dá ao nível da bacia hidrográfica. O sistema de governança hídrico brasileiro, introduzido pela Lei 9.433/1997, buscou a descentralização da tomada de decisão e devolutiva de poder para a bacia hidrográfica, introduzindo a sociedade civil e usuários na gestão com a criação dos comitês de bacia. Ao mesmo tempo, criou e ampliou instrumentos necessários para uma gestão mais eficiente, como a cobrança pelo uso e outorga. Isso foi um grande avanço.

sistema brasileiro, em teoria, deveria ser mais próximo de um sistema policêntrico, no entanto, o classifico mais como fragmentado, onde falta uma coordenação e uma distribuição de poder mais igualitária. Em períodos de crise, como a que ocorreu em São Paulo, ainda há uma centralização excessiva por parte do Estado. Em um sistema policêntrico, isso resultaria em maior autonomia e poder aos comitês de bacia. No caso das transposições de bacia, por exemplo, há ainda uma dinâmica de poder que não é balanceada. Os conflitos são resolvidos da forma tradicional, pendendo para o lado de quem tem maior poder político e econômico. Mas isso não se restringe à esfera ambiental, pois, se analisarmos sob uma ótica crítica, a imensa maioria das grandes obras de infraestrutura são feitas de forma nada democráticas, atropelando ritos ambientais, comunidades tradicionais e a vontade da população local em prol de uma parte da população.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Bruno Puga – Precisamos entender que a água não é meramente um produto. É um bem vital e que merece ser tratado de acordo com sua importância. São necessários distintos processos ecológicos para fornecer uma água de qualidade, daí a importância de entender a influência humana sobre a qualidade e quantidade de água. Nesta e em todas as crises hídricas por que passamos, pouco se fala sobre a importância do uso do solo adequado, dos ecossistemas e das florestas na regulação e provisão dos recursos hídricos. Enquanto acharmos que a água pode ser negligenciada e depois simplesmente expandir a oferta buscando água cada vez mais longe, não conseguiremos atacar as reais causas da crise hídrica permanente que vivemos no Brasil.

 

(EcoDebate, 18/05/2018) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.

[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

 

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