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No Brasil, dono da barragem se auto-fiscaliza e vistorias só cobrem 3% das estruturas existentes

 

Foto: Agência Brasil / IHU

 

A tragédia de Mariana (MG) tem precedentes nos últimos anos, mas nenhum alcançou a proporção do rompimento das barragens de Fundão e Santarém, que pode ser o maior desastre ambiental do Brasil e um dos mais impactantes causados pela mineração no mundo.

Pode também não ser o último, considerando as perspectivas apontadas pela proposta do Código de Mineração em debate na Câmara Federal.

Enviado pelo Executivo em 2013, o projeto institucionaliza a já permissiva política de concessão para a exploração de minério no país. Mas, após o desastre das barragens da Samarco, o presidente da Câmara Eduardo Cunha empenha-se em colocar a proposta em votação o mais rapidamente possível.
O Código de Mineração vem sendo debatido em comissão especial através dos projetos de lei 5807/13 e 37/11, com a intenção de atualizar as regras estabelecidas em 1967.

A reportagem é de Ana Claudia Araujo, publicada por Viomundo, 17-11-2015.

Seu conteúdo prioriza a mineração em detrimento de qualquer outra atividade, mesmo as de interesse social — como a preservação das comunidades indígenas.

O texto cria a Agência Nacional de Mineração que teria o poder de autorizar ou não outras atividades que possam “criar impedimento à atividade de mineração”. A partir da proposta, as mineradoras podem atuar mesmo em Unidades de Conservação (UCs) de Uso Sustentável, incompatíveis com o alto impacto da atividade minerária.

O relator é o deputado do PMDB/MG Leonardo Quintão, que teve quase a metade de sua campanha eleitoral financiada por mineradoras. No ano passado, o Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração, que reúne organizações da sociedade civil e movimentos sociais críticos à proposta, distribuiu cartilha em que detalha os investimentos das empresas nas campanhas dos integrantes da Comissão Especial do Novo Código de Mineração.

Código é retrocesso, diz procurador que denunciou 57 barragens mineiras

O Procurador da República, José Adércio Leite Sampaio, alerta há anos sobre a ameaça do rompimento de barragens de rejeitos gerados pela atividade minerária no Estado. Ele é autor de 57 ações civis públicas para obrigar as mineradoras à adequação das barragens e professor de Direito Ambiental na Universidade Dom Helder Câmara, onde o tema é tratado através dos Grupos de Pesquisa.

Nesta entrevista, ele denuncia a fragilidade dos sistemas de registro e fiscalização das estruturas e a possível existência de barragens clandestinas. Olhando além da tragédia de Mariana, o jurista alerta para o retrocesso que representa a proposta do Código Minerário.

Eis a entrevista.

A grande maioria das mais de 700 barragens existentes no Estado é usada para represar rejeitos, como acontece nas de Fundão e Santarém. Como é possível fiscalizar estas estruturas?

Este número de barragens é um levantamento da Fundação Estadual do Meio Ambiente de Minas Gerais e doDepartamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). Nós imaginamos que ele possa até ser maior. Primeiro, porque quem registra o número de barragens é o próprio empreendedor. Ele entra nos sites do órgão ambiental e do órgão minerário e registra que tem aquela barragem e quais as características pra que os dois órgãos identifiquem os riscos.

Com base nestas declarações é que se define o número de barragens. Todo ano tem um relatório do órgão ambiental e ele vem indicando o crescimento deste número. Mas pode haver barragens que não estão ali contempladas. Segundo: o empreendedor declara as condições da barragem e ele próprio contrata uma agência externa ou equipe pra fazer inspeções periódicas. É uma certificação da própria empresa que é registrada no site do DNPM.

E como funciona a fiscalização das barragens que são declaradas?

Como são muitas barragens, as vistorias dos órgãos ambiental e minerário são feitas por amostragem. Em Minas, houve um caso expressivo de aumento de vistorias, mas mesmo assim só 33% das barragens foram verificadas. No âmbito nacional, houve um crescimento entre 2013 e 2014 de 83% no número de fiscalizações. Sabe quanto isso significa em número de barragens? 3%. Então, 33% foram fiscalizadas em Minas e 3% foram fiscalizadas no Brasil.

O mais trágico disso, que mostra que o sistema é furado, é que o último relatório da Agência Nacional de Águas e do órgão ambiental estadual, em 2014, identifica as barragens de risco e estas duas não estavam incluídas nesta lista. Não se qualificavam como tendo alto risco de rompimento.

Havia um debate sobre a necessidade de regrar este sistema de forma mais rígida em Minas antes deste desastre?

A legislação só começou a ser revisada por conta da primeira tragédia que aconteceu em Minas neste século, em 2001. Tanto no Congresso quanto no âmbito estadual. E é claro: havia uma crítica muito séria ao processo sobre como isso era feito. Nós mesmos ajuizamos 57 ações civis públicas para que os órgãos tomassem providências em 2012. Os dados eram muito precários, sequer estatística tínhamos.

Com base num levantamento provisório, foram identificadas 57. Devia haver muitas barragens que eram invisíveis. Mas houve um acordo pelo menos para estas que eram consideradas sérias.

Foram feitos alguns acordos, outros estão tramitando até hoje, e destes acordos houve o estabelecimento de obrigações pra garantir o mínimo que a lei exige. Um acordo que só dizia “a lei deve ser cumprida”. Algo que pode ser sintomático: nenhuma dessas 57 barragens teve problema desde então. Quer dizer, é algo que exige uma reflexão.

Qual o impacto humano dos desastres envolvendo barragens?

Em 2014, houve quatro mortes em barragens pra uso múltiplo, de produção de energia elétrica. Houve três em Minas Gerais. Mas a questão é que quando uma barragem de mineração ou industrial se rompe, aquele rejeito, que é lama misturada com restos de minério de ferro, forma-se uma crosta como um cimento que impermeabiliza.

Essa pasta vai se depositando também no fundo do rio, e assim forma uma barreira que não permite trânsito de água nem fluxo de nutrientes. Portanto, dificulta ou impede a vida. Além do número de vítimas tem as cidades da bacia do Rio Doce. Os rios são lugares em torno dos quais as cidades crescem e hoje ele está morto.

A natureza tem uma capacidade de regeneração muito grande, a depender do nível de contaminação.

Do ponto de vista humano, é trágico. Houve mortes, as pessoas perderam tudo, outras estão sem água. Mas o mais preocupante é que elas podem continuar sem água. 600 pessoas moravam naquele lugar há gerações. São pessoas do interior, que vivem naquele habitat há gerações. Na hora em que vem uma lama, a destruição não é apenas das casas, mas das raízes das pessoas. Afeta a identidade. Não haverá mais Bento Rodrigues. Pode-se até reconstruir as casas, mas não a historia delas.

Quais as perspectivas de mudança neste quadro com o Código Minerário em debate no Congresso?

O projeto praticamente coloca todos os interesses – e quando eu falo “todos”, eu incluo ambientais, antropológicos e sociológicos – subordinados ao interesse minerário. E quando eu falo em interesse social, eu falo de interesse ambiental, antropológico…

Quer dizer, nós avançamos em 2010 com a lei de barragens, e o código vai puxar o tapete. Hoje é preciso ter aprovação do congresso para haver exploração minerária em área indígena e lei complementar para disciplinar essas condições. Com o código minerário, não interessa: depende do presidente da agência. Então o cenário é mais desalentador. Significa maior predomínio do interesse econômico.

Ninguém discute que esta atividade é importante: emprega 170 mil pessoas, responde por uma parte significativa da economia brasileira; todavia, se a lógica é só a de proteger a mineradora, a sociedade brasileira corre o risco de pagar com vidas, com a sua biodiversidade e monetariamente muito mais, porque sabe-se lá quanto o Estado brasileiro terá que despender ao longo do tempo por conta das barragens de uma mineradora do Estado de Minas Gerais.

Eu espero que caia a ficha e o bom senso prevaleça pra que esse projeto de lei não seja aprovado. E caso seja aprovado, espero que o Supremo Tribunal Federal dê uma resposta. Pra mim é de profunda inconstitucionalidade. Desenvolvimento sustentável para o crescimento é economia e socioambiente: espaço cultural, social e ambiental. Tem que haver um equilíbrio.

PS do Viomundo: A boa notícia é que os cientistas que decidiram fazer uma avaliação independente do impacto do crime ambiental de Mariana atingiram a meta de R$ 50 mil para dar início ao trabalho!

(EcoDebate, 19/11/2015) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.

[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

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3 thoughts on “No Brasil, dono da barragem se auto-fiscaliza e vistorias só cobrem 3% das estruturas existentes

  • Valdeci Silva.

    Não seria necessária e indispensável a presença do Estado brasileiro, através de ações fortes, decisssivas, protetivas das vítimas e punitiva da empresa causadora do crime?

    E mais: não seria necessária a fiscalização permanente, por parte do Estado brasileiro, de atividades tão perigosas?

    Dessas indagações que aqui fazemos, e de tantas mais que há, chega-se à conclusão de que os Estados e as empresas privadas capitalistas estão nem aí para as condições ambientais e para a vida em geral.

    Somente o lucro e o crescimento do PIB são considerados.

    Até quando???????????????????????????????????????????

  • José de Castro Silva

    Quanta irresponsabilidade de um país que já está se acostumando a viver na lama. Em todos os sentidos. Até onde vai a paciência das pessoas, que são também eleitores.
    É preciso mudar muita coisa, mas não achar que os erros servem de aprendizado. Seria importante que estas autoridades morassem ou estivessem entre as vítimas, sentissem apenas um gostinho da desgraça daqueles que pagaram com a vida e a amarga lembrança que irão carregar até o fim de seus dias.

    Os órgãos governamentais são réus confessos pela inoperância e incompetência. Agora, ficam aí distribuindo multas e mais multas. São culpados, também, pela omissão. deveriam ser responsabilizados pelo desastre.

    Para que servem? Para que existem? Não basta dizer agora que as suas estruturas estão sucateadas, que não existe pessoal técnico. São mais de 400 represas somente de barragem de rejeitos. A fiscalização é feita por amostragem.
    É um crime contra a pátria, que merece maior reflexão.
    Que os partidos e os políticos não se aproveitem da situação. Até hoje, apenas comprovaram que as tragédias e as desgraças merecem uma resposta das autoridades. Que resposta?????

  • José de Castro Silva

    A responsabilidade é de todos: da empresa SAMARCO e seus tentáculos, mas principalmente da autoridades que se omitiram em fiscalizar e acompanhar as atividades. A Presidenta Dilma apareceu uma semana depois, deu um sobrevoo e aplicou 5 multas. Reuniu os governadores do Espírito Santo e Minas Gerais e disse que ia fazer alguma coisa. Não sabia qual coisa, mas alguma coisa seria feita. O Governador de Minas Gerais, paramentado com o uniforme da Defesa Civil aproveita-se para aparecer na mídia e se contradiz que está tudo sob controle, quando o Presidente da empresa reafirma que ainda existem riscos.
    Fala-se já em CPI e os deputados de plantão só falam asneiras, pois não conhecem o problema e só entendem dos pichulecos que recebem para financiar as suas campanhas. Ouvir um Zequinha Sarney e alguns membros do tal Partido Verde só provoca risos. Quanta incompetência…. Só mesmo o Brasil..
    O Ministério Público quer achar culpados e indiciá-los. Está perdidão, sem saber o que fazer.
    É hora, gente, de ouvir as inteligências e os seus conhecimentos: os pesquisadores, os professores, os geólogos, hidrologia, biólogos, engenheiros e buscar os conhecimentos para evitar novos desastres e tentar consertar parte do desastre.
    Deixar este caso na mão do Congresso Nacional ou dos órgãos oficiais (DNPM, FEAM….) é apostar que novas tragédias acontecerão.

Fechado para comentários.