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Artigo

Exercício monstruoso do ódio, por Laura Capriglione

 

direitos humanos

 

“É com muita tristeza que deixo meus sentimentos de pêsames à família da Fabiane Maria de Jesus, esposa e mãe de dois filhos, vítima de um ato cruel e desumano de linchamento em via pública, o que levou à sua morte.

É lamentável que fatos como estes aconteçam nos dias atuais e em nossa cidade. Eu, particularmente, a conhecia da Igreja, éramos da mesma comunidade e morávamos no mesmo bairro, no Morrinhos.

A Fabiane era uma boa moça, sofria de problemas psiquiátricos e passou por um problema de depressão pós-parto. Ela participou do grupo de jovens católicos e todos que a conheceram sabem que ela seria incapaz fazer mal a alguém.”

Foi assim que a prefeita do Guarujá, Maria Antonieta de Brito (PMDB), 45 anos, descreveu a jovem Fabiane. Ambas integraram o Grupo de Jovens da Igreja de São João Batista, no bairro em que moravam.

Mesmo com tais referências, entretanto, Fabiane Maria de Jesus morreu aos 33 anos, depois de ser xingada, humilhada e torturada pelas ruas de Morrinhos, na periferia da estância balneária de Guarujá, alcunhada de “Pérola do Atlântico”.

Acusada de sequestrar e de praticar atos de magia negra contra crianças, Fabiane foi encurralada no último sábado em uma rua do bairro por uma turba com sangue nos olhos. Levada ao fundão de uma quebrada, segura pelos braços e pernas como um animal indo ao sacrifício, espancaram-na sob os olhares entre horrorizados e cúmplices de crianças, mulheres e idosos.

O suplício de Fabiane incluiu socos no rosto, marretadas na cabeça, pontapés.

Já inerte, o corpo foi jogado em uma vala fétida.

Em um dos vídeos gravados durante o linchamento, ouve-se a conversa:

– É ela mesmo?
– É ela mesmo.
– Tem certeza, irmão, que é ela mesmo? Tem certeza?
– Ah, lá, na foto.
– Vou pegar a foto dela ali.

Na página de “Guarujá Alerta”, ainda ontem no ar, a condenação era quase unânime, cerca de 1.800 usuários acusando-a de ser a responsável pela morte de Fabiane. A prefeita de Guarujá engrossou o coro em entrevista a este blog: “Quem matou foi uma minoria dos moradores de Morrinhos, instigados pelo uso irresponsável da rede social”.

Antes fosse. Mas não é.

Bairro proletário de 40.000 habitantes, Morrinhos, segundo a prefeita Maria Antonieta, é o lar de “gente ordeira que sai de madrugada para trabalhar”. Mas, então, como explicar que os “bons” não tenham conseguido se impor aos “maus”, impedindo-os de chegar ao fim em seu intento de sangue, tortura e morte?

Bem antes das redes sociais, as fotos que registram os negros enforcados nas árvores do sul dos Estados Unidos (muitos queimados vivos, cenas horrendas) também mostram honoráveis homens de terno e gravata em torno dos corpos, crianças risonhas, mulheres brancas, puritanas e bem compostas, em comemoração.

O problema desse tipo de “justiçamento popular” é que, excluídos os típicos sádicos, tarados por sangue, gente que por isso não tem credibilidade, são exatamente as pessoas ordeiras, os vizinhos pacíficos, os pais extremosos e a gente trabalhadora os principais envolvidos na execução coletiva de alguém. E eles o fazem para vingar, no corpo de sua vítima, da forma mais cruel possível, um delito cometido.

E por quê?

Segundo o professor José de Souza Martins, em seu “As condições do Estudo Sociológico dos Linchamentos no Brasil”, de 1995, “o linchamento não é uma manifestação de desordem, mas de questionamento da desordem. Ao mesmo tempo, é questionamento do poder e das instituições que, justamente em nome da impessoalidade da lei, deveriam assegurar a manutenção dos valores e dos códigos”. E não asseguram.

Pôr a culpa na página “Guarujá Alerta”, por isso, é tão simplista quanto atribuir a Rachel Sheherazade o condão de transformar membros da juventude dourada da zona sul do Rio em assassinos potenciais. “Guarujá Alerta” e Sheherazade tem sua parcela de responsabilidade, mas o problema é bem mais profundo.

Diz respeito à barbárie que surge quando a descrença nas polícias e na Justiça se combina com o medo de que os valores mais tradicionais da família, da Igreja e da vizinhança naufraguem no caos e na desordem.

O trágico é que poucos estariam tão revoltados com o linchamento de Fabiane se ela fosse ao menos “culpada” de alguma coisa, como aconteceu com o menino negro amarrado a um poste em plena praia do Flamengo, no Rio –depois de tanto escarafuncharem a vida do moleque, encontraram várias passagens pela Febem, como se isso justificasse o tratamento digno de capitães do mato.

Mas a inocência de Fabiane, mãe, fragilizada psicologicamente pela depressão, católica, amiga da prefeita, provou que essa tal “Justiça popular”, tão exaltada na internet sob os gritos de “Bandido bom é bandido morto”, é apenas o exercício monstruoso do ódio. Para Fabiane, é tarde demais para desculpas e arrependimentos.

Laura Capriglione, 54, é jornalista. Nasceu em São Paulo e cursou Física e Ciências Sociais na USP. Trabalhou como repórter especial do jornal “Folha de S.Paulo” entre 2004 e 2013. Dirigiu o Notícias Populares (SP), foi diretora de novos projetos na Editora Abril e trabalhou na revista “Veja”. Conquistou o Prêmio Esso de Reportagem 1994, com a matéria “Mulher, a grande mudança no Brasil”, em parceria com Dorrit Harazim e Laura Greenhalgh. Foi editora-executiva da revista até 2000.

Artigo de Laura Capriglione em seu blogue, reproduzido pelo EcoDebate, 07/05/2014


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