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Quem vigia o vigilante? artigo de Lucio Carvalho

 

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[EcoDebate] Uma coisa ninguém pode dizer contra a cidade de Porto Alegre: a de que ela não seria uma cidade poética. Afora os poetas que a circunscrevem de versos dos mais variados estilos e lirismos, a administração pública municipal também presta diuturnamente sua contribuição direta e ostensiva para a concretização do predicado. Não, não estou falando de iniciativas consagradas como os bem conhecidos “poemas no ônibus”, mas da distribuição de containers de recolhimento de lixo pela cidade.

Inadvertidamente, o poder público municipal tem distribuído cópias in vivo do poema “O Bicho”, do pernambucano Manuel Bandeira por aqui. Poucas vezes em sua história, a cidade contou com tantas dramatizações poéticas unitemáticas como presentemente. Algumas pessoas, sobretaxadas pelo adjetivo “pessimistas”, chegam a dizer que o famoso pôr-do-sol no Guaíba está ameaçado pela imagem dos detritos urbanos (e daqueles que só tem a isso por alimento) que se espalham uniformemente pela cidade, de tantos em tantos metros, revelando um projeto de engenharia urbana realmente formidável.

Aguarda-se que, em virtude da Copa do Mundo que se aproxima, cartões postais (ainda se usa isso?) e camisetas serão impressos louvando as imagens poéticas da capital dos gaúchos. Não deverão faltar, obviamente, imagens dos containers de recolhimento de lixo e seus arredores, esses espaços pictóricos por excelência nos quais a população deposita diariamente o que já não mais lhe serve para alimentar, ou seja, o lixo orgânico e tantas outras coisas das quais é até melhor nem lembrar. Desculpem a má poesia, mas a sujeira é reconhecidamente um valor poético e estético há muito tempo já, como atesta o “Poema Sujo”, de Ferreira Gullar. Porto Alegre, neste caso, pode considerar-se das mais poéticas cidades do país, e tudo obra de uma repartição pública comandada desde o paço municipal, o Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU).

Sim, Porto Alegre institucionalizou a poesia do lixo urbano e rapidamente acostuma-se a outras poesias típicas das cidades sem planejamento, como o trânsito caótico e os espaços públicos abandonados, por exemplo, além de outras vertentes ainda mais realistas que, por pouca relevância, só chegam mesmo a publicar-se mesmo nas páginas policiais dos veículos de imprensa. Mas tanta poesia tem os dias contados. Desde o último dia 03, vigora na cidade legislação que permite aos agentes fiscais da repartição em questão, o DMLU, aplicar multas e autos de infração aos cidadãos flagrados ao descartar no espaço público desde um milimétrico papel de balas até volumosos entulhos de obras.

Trata-se de uma solução viável, aos olhos dos gestores e legisladores da coisa pública municipal, mas com efeitos efetivamente imprevisíveis. Se a ameaça de multas irá ou não coibir a proliferação de lixo no espaço público é coisa que não se pode ainda saber. Resta imaginar que, num rompante de autocrítica, o DMLU aplique multas a si mesmo por permitir que os resíduos destinados a sua solução mágica, os containers espalhados pela cidade, re-amanheçam por toda a cidade, em aniversários repetidos.

Talvez por apreço a esse espécie peculiar de poesia urbana praticada diariamente em Porto Alegre, alguns desses seus moradores “pessimistas” antevejam aí uma política pública ‘fiasquenta’ e mal cheirosa. O certo é que, se um dia o problema da limpeza urbana e do uso racional dos espaços públicos fossem realmente enfrentados, muita gente, “pessimistas” e “otimistas”, dispensaria com prazer a saudade desse tipo de poesia que existe apenas para infectar a paisagem e o olfato dos habitantes locais, sem esquecer dos visitantes que logo logo vêm aí comemorar a festa da Copa brasileira.

Lucio Carvalho é Coordenador-Geral da Inclusive – Inclusão e Cidadania (http://www.inclusive.org.br) e autor de Morphopolis (http://www.morhopolis.wordpress.com)

EcoDebate, 10/04/2014


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