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Artigo

Sus: Virtudes e Descaminhos, artigo de Nelson R. dos Santos

 

Contribuição ao Posicionamento Político e Estratégico do Fórum Das Entidades da Reforma Sanitária (COM Base Em Intervenção Na Reunião Das Entidades Da Reforma Sanitária De 11/Fev/2014 Em Bsb)

Nelson R. dos Santos
Medico-sanitarista, Presidente do IDISA – Instituto de Direito Sanitário Aplicado; Conselho Consultivo do CEBES – Centro Brasileiro de Estudos de Saúde; Prof. aposentado da UNICAMP

 

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Sus: Virtudes e Descaminhos

– A “ONDA” NEOLIBERAL GLOBAL E O SUS

– O ESTADO MÍNIMO E OS VALORES SOCIAIS

– SOBRE ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA E AVANÇO

– SOBRE INFLEXÕES E DEBATE ELEITORAL

A “ONDA” NEOLIBERAL GLOBAL E O SUS

Apesar da importantíssima e inabdicável acumulação de avanços do SUS enquanto processo, o “desmonte” do SUS é força de expressão já que desde seu início não foi montado sob o comando do seus postulados constitucionais no rumo do novo modelo de atenção à saúde. Sua montagem permanece na contra-hegemonia. Nos mesmos anos 90 iniciava-se o desmonte em sistemas universalistas de saúde que efetivamente avançaram em outros países: os mais consolidados resistindo mais e os com Estados sociais mais recentes resistindo menos, processo que intensificou com a crise financeira global a partir de 2007.

A “onda” neoliberal gerada desde os anos 80 pela hegemonia da acumulação capitalista financeira especulativa, gerou por sua vez estratégias concretas como:

– financeirização dos orçamentos públicos,

– desregulamentação financeira,

– privatização de funções estatais republicanas,

– criação de agências globais de risco financeiro e seu controle sobre as finanças dos países, suas moedas, o mercado de capitais e os próprios países,

– Estado mínimo (subentendido máximo para bancar a hegemonia financeira e bancária),

– desmonte das conquistas sociais com base em políticas setoriais universalistas de qualidade para os direitos humanos básicos como educação, saúde, transporte, trabalho, segurança e outros, com transferência dessa função ao mercado, e

– generalizada redução da soberania dos Estados nacionais.

A potência e estratégias da onda neoliberal global podem ser estimadas em função do resultado da pesquisa do Instituto Federal Suíço de Pesquisas Tecnológicas – ETH apresentado em 2011 onde, a partir do Banco de Dados Orbi, de 30 milhões de empresas no mundo, foram identificadas as 43 mil maiores corporações empresariais, controladas por um núcleo de 1.318 conglomerados empresariais onde predominam empresas financeiras e bancárias, que por sua vez é controlado por 147 conglomerados que controlam 40% da riqueza do núcleo central. A grande crise financeira eclodida nos EUA foi exportada para a Europa e da Europa para os países emergentes, entre os quais o Brasil, Índia, Turquia, África do Sul e Indonésia pagam hoje o maior preço. Nestes 5 anos (2008 – 2013), a OIT/OXFAM destacam: a) 62 milhões perderam o emprego, somando-se aos 140 milhões de desempregados, b) Nos EUA, 95% do crescimento após a crise ficaram nas mãos de 1% da população, e c) Na Europa, a fortuna dos 10% mais ricos equivale á soma de todos os resgates para os países-membros não quebrarem.

Alvaro Garcia Linera em recente análise, avaliou que a acumulação neoliberal na sociedade ultrapassou a tradicional extração de mais-valia na produção assalariada, com o surgimento de uma proletarização difusa entre professores, pesquisadores, analistas, cientistas, profissionais autônomos (liberais), microempresários e outros, e mais: a atual acumulação é exponenciada ao expropriar as riquezas comuns de toda a sociedade como os recursos naturais (água, biodiversidade e outros), além de induzir grande parte da produção científica e tecnológica. No Brasil, desde os anos 90 o desinvestimento em infraestrutura tornou-se drástico como nas ferrovias, rodovias, portos, transporte, energia e na produção de tecnologias e insumos que agregam valor em cadeias produtivas estratégicas (química fina, telecomunicação, eletro eletrônica e outros), o mesmo se dando nas políticas sociais universalistas.

 

O ESTADO MÍNIMO E OS VALORES SOCIAIS

É oportuno lembrar que o Estado mínimo não minimiza somente sua responsabilidade republicana e social regulamentadora, minimiza também a devolução direta à sociedade, do que dela foi arrecadado, por meio de bens e serviços essenciais aos direitos e dignidade humanos universais. A minimização se dá ainda – e concretamente, na própria democratização e controle pela sociedade.

No plano da macro política a hegemonia neoliberal integra intelectuais orgânicos e comunicadores sociais a ela vinculados, que insidiosamente inculcam nos vários segmentos sociais uma escala de “valores-guia” para ascensão social que maximiza:

– o poder de consumo de bens e serviços no mercado visando o bem estar, a satisfação de direitos, a estabilidade e ascensão,

– o direito do consumidor acima do direito humano de cidadania,

– o desempenho na capacidade das pessoas de vender produtos e inovar processos de venda (empreendedorismo), não raro valendo-se de critérios enganosos de bem estar social,

– a precedência do valor de mercado sobre os demais valores, e

– a “ideia-força” direcionada a jovens e adultos, de que na vida é natural e inescapável vir a ser vencedor (a) ou perdedor (a). O saudoso Darcy Ribeiro já dizia nos anos 90: “o que se opera é um monstruoso sistema de comunicação de massa, importando padrões de consumo inatingíveis e desejos inalcançáveis, aprofundando mais a marginalidade dessas populações.”

Na saúde os “valores-guia” inculcados concentram-se na “vantagem” do consumo de planos privados subsidiados com recursos públicos cuja oferta vem privilegiando desde os anos 90 os trabalhadores formais e os servidores públicos federais com suas respectivas estruturas sindicais, assim como os demais segmentos médios da sociedade, sob a estratégia da oferta gerar a demanda: diferentes ofertas para diferentes segmentos sociais.

Esse ideário de valores-guia inculcados certamente corrói a cultura da convivência civilizada e solidaria entre as diferenças na sociedade e atinge também os segmentos médios imbuídos pelo consumismo ilimitado, que se movem pelo mal estar da frustração no consumo. Por sinal, influi no novo perfil dos roubos, assaltos, latrocínios, tráfico e arrastões, que, somados à degradação em boa parte do sistema policial e dos presídios, alertam para certo esgarçamento do tecido social e descontrole por “este” Estado. Apesar da inculcação dos citados “valores-guia” nas últimas décadas, é notável a permanência em nossa sociedade, de um germe de tensão e consciência dos limites do mercado perante a satisfação dos direitos humanos básicos, que aprofundam as desigualdades e exclusões, mesmo um mercado fortemente subvencionado com recursos públicos. Daí, a emergência nos recentes movimentos sociais-pacíficos ou violentos, da cobrança de políticas públicas, com qualidade, financiadas com os impostos e contribuições sociais arrecadados.

Estas manifestações e movimentos, na sua essência rejeitam as representações vigentes no Estado e nas empresas, mesmo que eleitas: “engatinham” nas ruas e espaços públicos, com rumos pouco definidos, farejando a possibilidade de representações mais democráticas e controles sociais mais efetivos. Engatinham com potencial de muito contribuir para a mobilização e crescimento de outros valores e forças na sociedade. Todo cuidado deve ser tomado com certos sinais do esgarçamento social, que podem prejudicar seriamente o potencial do referido “engatinhamento”, por exemplo, as ações de “justiceiros com as próprias mãos”, de vandalismo com equipamentos públicos e privados e outros, que em nome do “bem” podem reativar, em nome do restabelecimento da ordem, um patamar mais elevado do autoritarismo do Estado, incluindo o setor policial militar e a comunicação social, historicamente garantidor da ordem econômica concentradora, desumana e antissocial.

 

SOBRE ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA E AVANÇO

Alvaro Linera enfatiza o peso do debate sobre os valores humanos na dinâmica das relações sociais, e insiste na necessidade de recuperar, construir e reconstruir um novo sentido comum para a vida, e nele, o sentido do bem comum: a água, ar, natureza, conhecimento, trabalho, transporte, educação, saúde e outros. A própria militância pela democratização e pelo poder de Estado, deve previamente ser alimentada pela construção e assunção de um novo sentido comum, um novo horizonte de vida que contemple fé na sociedade e nas pessoas, uma crença em torno da qual valha a pena dedicar nosso tempo e esforço. A política, além da questão da correlação de forças e de mobilização, é fundamentalmente a construção e encontro de um sentido comum, de uma ideia compartilhada de convencimento e articulação. Ressalta ainda ser imprescindível propostas de medidas objetivas e concretas, sob a lógica dos recursos públicos e comuns serem integralmente alocados para a realização dos bens comuns, e não para a salvação dos bens privados e bancários. Caso contrário a mobilização decorrente da indignação contra os desmandos anti-públicos, pode se desmobilizar e até anestesiar. E continua: a Democratização é prática, ação coletiva e participação na administração dos bens comuns. Destaca ainda a nova diversidade social da mobilização nas sociedades modernas, além da tradicional porta de fábrica e estrutura sindical obreira, emergem com certa pujança os locais coletivos comuns: transporte coletivo e seus pátios, espaços culturais, praças públicas, redes sociais virtuais e outros. No Brasil, somam os movimentos dos “sem terra”, “sem teto” e outros.

As estratégias de resistência e avanço pressupõem o conhecimento e o convencimento da possibilidade real da sociedade democratizar o “seu” Estado, aprofundando e radicalizando o compromisso com a coisa pública, a respública. No Brasil, as lideranças políticas de todos os partidos e as apartidárias submeteriam efetivamente os interesses pessoais e o patrimonialismo, pelo compromisso com a cidadania e a coisa pública. Em decorrência os cargos públicos de livre provimento, pivôs das máfias empresarias-eleitorais-partidárias, seriam preenchidos por processos seletivos e carreiras públicas sob controle social, a representatividade de parlamentares por eleitores seria a mesma no território nacional, o pacto federado seria menos centralizado no nível federal a começar pelo sistema tributário, e por isso os municípios e Estados menos cooptados ou submissos, e as práticas da democracia representativa se legitimariam com práticas equivalentes participativas.

A referida possibilidade real poderá estar relacionada à conjuntura global, com possíveis indícios de dificuldades estruturais na “onda neoliberal”, como a elevação insustentável das desigualdades e tensões sociais inclusive nos países do capitalismo central, o descontrole nas falências bancárias, o simulacro de pluralismo social e “parcerias” público-privadas nos setores saúde, educação, transporte coletivo, segurança e outros, apresentado como “social-liberalismo”, na verdade avançando o mercado e a desigualdade nesses setores, com “cobertura universal” público-privada fragmentada e iníqua. Esses possíveis indícios lembram não só que a História não acabou, como permanecem evidentes saldos negativos e positivos keynesianos, social-democratas e socialistas do séc. 20, a serem considerados na superação da “onda neoliberal” e avanço do processo civilizatório nas complexas relações sociais e internacionais deste século, tarefa para gerações. No Brasil, os movimentos a partir de junho de 2013 clamando pelos direitos à educação, saúde, transporte coletivo, segurança pública e à transparência pública, constituíram um primeiro “recado” ou “sinal” da sociedade apontando para mudanças maiores. No dizer de Marco Aurélio Nogueira, um “momento ímpar para reflexão mais profunda pelos agentes do poder – na sociedade e no governo – e inflexão positiva na compreensão crítica do país, na construção de um projeto de país acima de um projeto de poder, e de uma nova relação Sociedade-Estado.” Na época chegou-se a admitir a possibilidade desse debate para uma Constituinte ou Plesbicito.

SOBRE INFLEXÕES E DEBATE ELEITORAL

Rodrigo A. Teixeira e Eduardo C. Pinto mostram que sob a hegemonia da fração bancária-financeira no bloco no poder nacional, o crescimento relativo da fração produtiva a partir de 2003 tensiona as relações dentro do bloco. Contudo, essas relações ainda frouxas, aparentemente não conseguem sustentar a implementação de avanços republicanos efetivos nas políticas de Estado para o desenvolvimento econômico e para os direitos sociais de cidadania, tampouco na estrutura da tecnoburocracia federal. Cabe aqui refletir a perda do momento impar apontado por Marco Aurélio Teixeira quando identifica o “clima de rejeição pela coligação governista, da divergência e do debate público, levando o país à saturação de falta de opções e ao tédio com os discursos políticos”. Ao que acrescentamos, também com os ciclos quadrienais dos governos nacionais, iniciados com pico de mobilizações/esperanças e finalizados com pico de desmobilizações/desesperanças. As interpretações políticas são várias, desde a mera sabedoria política e estratégica da coligação governista e do partido no governo, até o “ufanismo delimitado no estreito espaço da subserviência ao sistema financeiro, aos bancos e ao mercado” (Marco Aurélio) e “os novos gestores da economia nacional, de passado recente sectário arrogante, agora em conciliação com as elites, despolitizando o governo e a ação governamental, e desconsiderando a fábula em que o lobo acaba comendo o carneiro” (Marcos Pessoa).

Quanto aos movimentos sociais frustrados, vem se desdobrando até hoje em rolesinhos, protestos contra a Copa, black-blocs, reações às falhas do transporte coletivo, e outros, com ponto comum em cotidiano menos pesado e alguma perspectiva aos jovens e, segundo Marco Aurélio, “carecendo ainda de um eixo e sustentabilidade, no afã de ir além do modo tradicional de protestar, com máscaras, atos violentos, etc..” ao que acrescentamos: abrindo espaços aos sectarismos anarquistas ou da direita. Além da evidente desconsideração do significado das manifestações de rua, Marco Aurélio destaca a sua “manipulação pelos opositores e defensores do atual governo, que, ao atribuírem motivações conspiratórias no lado adversário, centram o foco na violência dos manifestantes ou da polícia, ofuscando e desviando as raízes da violência: a crise das instituições deste Estado, dos vários governos, das coligações partidárias e da atual hegemonia econômico-financeira.” Continuando: “esse vácuo político de direção e coordenação requer maior esforço pela união das forças realmente democráticas na busca de um projeto de país.”

Arriscando uma síntese da “onda neoliberal” em nosso país, enxergamos a construção dessa hegemonia exercida politicamente no espaço econômico-social sob o espectro de centro-direita. Esse espectro a partir de 2003 alberga e controla a estratégia da transferência de renda com ampliação do mercado de consumo e ascenso social, sem conotação com construção da social-democracia “europeia”, esta, um projeto de país sob o espectro de centro-esquerda com relação sociedade-Estado contemplando desenvolvimento mais autônomo e direitos humanos com políticas públicas universalistas, isto é, em grau mais elevado de processo civilizatório, ainda sob modo de produção capitalista.

Na saúde, as entidades ligadas à Reforma Sanitária Brasileira, em todos os seus encontros e congressos vem produzindo fartas e inquestionáveis documentações e conclamações denunciando as estratégias e práticas de centro-direita que configura o SUS pobre para os pobres e complementar aos consumidores dos planos privados, as fortes subvenções públicas à oferta e consumo de planos privados, a “cobertura universal” desigual, fragmentada e desumana pelo “mix público-privado”, etc. , e a contenção e desvio das estratégias favoráveis à atenção universal, integral e equitativa. Convimos que no atual debate eleitoral a militância pelo SUS constitucional, no interior do bloco no poder, deva opor-se aberta e claramente à atual hegemonia de centro-direita na política pública de saúde, item por item, denuncia-la publicamente e às bases eleitorais, reconhecer os prepostos dessa hegemonia no interior do governo e da coligação e partido governista, e marcar a diferença e independência nesses interiores. Na melhor das hipóteses estará contribuindo e antecipando a pendulação do bloco no poder, do centro-direita para o centro-esquerda, a partir da saúde, coisa para mais de uma geração. Na pior da hipóteses vai continuando e piorando o que aí está, acumulando as resistências e os avanços possíveis.

 

EcoDebate, 19/03/2014


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