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Ocupação à moda brasileira, artigo de Lucio Carvalho

 

artigo

[EcoDebate] Prefiro não começar qualquer conversa, nem escrever qualquer coisa, partindo exclusivamente de uma ideia negativa. A negação é um sentimento destrutivo (e, sem dúvida, necessário), mas desde há muito tempo entendi que é sempre mais interessante chegar a ela com alguma carta na manga. Destruir um conceito, uma noção qualquer ou atacar uma realidade sem apontar uma alternativa é, ainda por cima, motivo de rasteira tentativa de objeção, principalmente no terreno arrasado que se tornou o debate público e político brasileiro nos últimos anos.

A pergunta que normalmente se faz é: o que há de melhor para colocar no lugar disso que está atacando?

A resposta, aqui neste caso, é simples, porque meu assunto não é a disputa eleitoral por cargos, mas justamente a forma de ocupação dos cargos públicos após o período eleitoral. Isso diz respeito não somente a uma cultura partidária secular no Brasil como à administração pública de um modo geral. O dado recém revelado pelo IBGE <<http://exame.abril.com.br/brasil/noticias/estados-criam-10-mil-cargos-comissionados-em-2013-diz-ibge>>, de que 28 novos cargos comissionados – isso considerando apenas o nível estadual – são criados diariamente no Brasil não poderia ser mais explícito.

Então, neste caso, a resposta àquela pergunta é: ocupe-se os cargos públicos exclusivamente por pessoas habilitadas por concurso público. Simples assim. Alguém se atreveria a fazer alguma objeção nesse sentido?

Atacar a cultura política do cargo comissionado não é entretanto tão simples. Muitas pessoas pensam que essa forma de ocupação da administração pública é algo inevitável, inofensivo ou até mesmo natural. Afinal, no Brasil, teria sido sempre assim, como um tipo de mandamento sagrado. Ou uma condenação a qual todos foram convencidos a simplesmente aceitar e conformar-se. É assim, é o que é dito. Pior ainda é ouvir que quem reclama é invejoso. Claro! Que dúvida!

Não bastasse uma proliferação descontrolada de apadrinhados de todo o tipo (afinal a praga atinge a todos os poderes), a legislação administrativa é tão burocratizada e foi tão permeabilizada que permite inclusive que pessoas nessas condições assumam postos de comando na administração pública. Quem há para atacar o desejo imperioso dos poderosos “gestores” que usam o poder público como se a despensa da própria casa fosse? Os tribunais de contas, “selecionados” politicamente? O STF, pinçado a dedo pelo executivo?

O que já é grave por si só então se ramifica numa rede de “gestão” onde o ato executivo, este sim, é tarefa do concursado subalternizado, quando não do estagiário ou do licitado a terceiros. É tanto gestor e cacique que, somando todos, sua população excederia a própria população indígena dessa terrae brasilis. Lamentavelmente, não é ao custo da troca de espelhinhos que esse contingente é formado, mas da sangria corrente e histórica dos cofres públicos.

Indiferentemente aos partidos políticos que ocupam o poder e suas supostas diferenças ideológicas, o efeito final, por tudo que se viu até agora, tem sido praticamente o mesmo. A lógica de ocupação e distribuição de cargos públicos parece até fixada em lei, de tão coerente que é consigo mesma, mas nenhuma lei existe nesse sentido, apenas uma vontade política uniformemente monolítica. E isso acontece somente porque aparentemente ninguém vê nisso um problema, mas um amplo mar de oportunidades. Ou vê? E, se vê, que medidas tomou?

A essa altura da história brasileira, evocar um sentimento ético – mesmo que somente nesse aspecto exclusivo – parece até um delírio sem sentido. Evidentemente qualquer pessoa pública que argumentar nesse sentido será denominada de “moralista”. O fato é que a moralidade administrativa é um princípio tão genérico e abstrato que ninguém dá por ele e negligenciá-lo sistematicamente não é senão uma forma de legitimar outra prática política. Uma mais versátil, vamos dizer, no impeditivo do uso concomitante dos termos “política” e “moral”.

Então, talvez, pudesse dizer-se que é um problema de gestão pública. Que não há outra forma de se fazer a máquina pública funcionar. Há. Extinguir cargos comissionados pode ser um bom começo de alguma coisinha. Mas os “gestores” e sua rede de “subgestores” não têm por que ver isso com bons olhos.

Por isso, quando vejo protestos visando a “ocupação dos espaços públicos”, sinto uma pontinha de tristeza, porque o espaço público já está ocupado e ninguém precisou nem estudar por isso, simplesmente o tomou por assalto, sem uso de máscaras, em plena luz do dia e, maravilha das maravilhas, ninguém é culpado ou preso por isso.

Lucio Carvalho é Coordenador-geral da Inclusive – inclusão e cidadania (http://www.inclusive.org.br) e autor de Morphopolis (http://www.morphopolis.wordpress.com)

EcoDebate, 18/03/2014


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4 thoughts on “Ocupação à moda brasileira, artigo de Lucio Carvalho

  • João Augusto Madeira

    Muito importante tocar neste tema! É uma das questões que precisam mudar no Brasil, urgentemente. Mas é evidente que só tem chance de mudar se vier à tona o estrago que essa estrutura de “gestão” faz no Brasil. Não vão ser os nossos “representantes” que com raríssimas exceções trabalham em causa própria, que vão eliminar essa inesgotável teta. Demos um ínfimo passo em junho de 2013 quando “o gigante acordou” e foi às ruas. Mas alguém viu um cartazinho sequer pedindo o fim das nomeações políticas para cargos abaixo de um determinado escalão? E parece que o gigante já foi posto novamente em sono profundo pelos quebra-quebras e a cobertura que a mídia deu a eles…

  • Valdeci Silva.

    A questão apresentada no artigo é tão importante o quanto é difícil de ser solucionada. Ela faz parte de uma grande série de vícios nutridos pelo sistema capitalista. Vejam a reforma política, que bem poderia abranger os chamados ‘cargos de confiança’ e alterar a essência do processo eleitoral, o quadro de Partidos Políticos, o financiamento de campanhas eleitorais, etc, etc… Simplesmente o Congresso Nacional se declara incapaz de fazer tal reforma, e o eleitorado brasileiro cala.

  • Li o texto com interesse, mas achei-0 contraditório. Começa dizendo que não gosta de começar análises, reflexões a partir de críticas negativas, mas não consegui ler no texto (posso até ter pulado alguma frase nesse sentido, mas se teve foi uma ‘exceção que confirma a regra’) nada favorável aos cargos comissionados. Concordo com boa parte das críticas e do escândalo histórico e perverso que o abuso dessa prática traz e trouxe para o país.
    Mas pergunto: o articulista já exerceu cargo de gestor público? Já exerceu algum cargo eletivo público? Caso a resposta seja negativa, sugiro que o faça por pelo menos dois anos – em qualquer nível do executivo ou legislativ? Depois reescreva o mesmo texto, se puder.

    Paulo Mancini

  • Paulo.

    Minha ideia não foi jamais apontar os benefícios da proliferação dos cargos comissionados, mas apresentar uma carta na manga, um contra-argumento, no caso a extinção definitiva do apadrinhamento, para que não se diga que a crítica não apresenta soluções. Penso que isso seria salutar tanto para a política quanto para a adminstração pública de um modo geral.

    Também não vejo porque a experiência eletiva me qualificaria mais para escrever sobre o tema. Creio que, por uma questão de auto-defesa, passaria exatamente o contrário. Talvez, se o fizesse, não reescrevesse o mesmo texto, realmente não tenho o hábito de fincar-me numa ideia fixa por anos a fio. De qualquer forma, você acha que é mesmo preciso pilotar um F1 para saber que ele anda a 300 km/h? O cidadão comum não pode ter uma opinião qualificada se não tiver experimentado as “agruras” da vida política? Evidentemente há muitas pessoas que preferem os cidadãos muito quietos, mas é exatamente por isso que se perpetua o caciquismo barato e a política de quinta categoria nesse país.

    Abraço
    Lucio

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