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Artigo

Mesmo que a ‘cura gay’ não seja aprovada, já foi disseminado o equívoco de que a homossexualidade é um ‘mal curável’, por Tatiana Lionço

 

Brasília, 18/06/2013 – Pessoas protestam, na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, contra a aprovação do projeto de decreto legislativo que autoriza o tratamento psicológico para alterar a orientação sexual de homossexuais. Foto de Jose Cruz/ABr
Brasília, 18/06/2013 – Pessoas protestam, na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, contra a aprovação do projeto de decreto legislativo que autoriza o tratamento psicológico para alterar a orientação sexual de homossexuais. Foto de Jose Cruz/ABr

 

Erro de diagnóstico

[O Estado de S. Paulo] Desde que a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados passou a ser presidida por representantes do fundamentalismo na política, os movimentos sociais entoaram o coro da desaprovação. O resultado tem sido a interdição da voz popular nesse espaço, tornando arbitrárias decisões que parcialmente avançam na aprovação de projetos de higienismo moral.

A decisão pela aprovação da “cura gay” pode ser vista como decisão arbitrária de determinados parlamentares. Arbitrária por não considerar a autonomia do Conselho Federal de Psicologia na regulação normativa sobre o próprio funcionamento e sobre a prática profissional. E arbitrária em relação à posição ética e técnica internacional e nacional que considera que homossexualidade não é doença. Alegam os defensores da “cura gay” que estão cientes de que homossexualidade não é doença, embora afirmem que aquelas pessoas homossexuais que sofrem deveriam ter ajuda profissional. A questão passa a ser a da legitimidade da psicologia em determinar em que consistiria essa ajuda profissional.

Nem sempre conseguimos sustentar moralmente nosso desejo. Quando isso ocorre, somos desafiados a elaborar as condições opressivas que transformam o desejo em angústia, valores compartilhados sobre a inoportunidade do desejo e a convicção de incorrer em erro moral. Essa é uma experiência comum, e se estende para além do possível sofrimento pelo reconhecimento do desejo homossexual repudiado. Pode ocorrer quando se deseja alguém comprometido com outra pessoa, quando há disparidade de posições sociais ou mesmo quando o desejo nos enlaça a uma pessoa de quem discordamos nos princípios. Curioso que não se proponham medidas legais para resguardar o direito de as pessoas se tratarem dessas ânsias inconvenientes. É sobre o desejo homossexual que se faz necessário normatizar eticamente o exercício do acompanhamento dos processos de elaboração por meio da psicoterapia. Isso se deve ao fato de a homossexualidade já ter sido considerada transtorno mental passível de tratamento e ao reconhecimento de que a homofobia vulnerabiliza ao sofrimento psíquico e fragiliza o laço social.

Desde que se compreendeu que o desejo erótico e amoroso não se cumpre por meio da obediência a rituais sociais consagrados pela moralidade hegemônica, a homossexualidade passou a ser considerada uma entre diversas possibilidades amorosas. No entanto, mesmo a moralidade patriarcal e monogâmica não pretende ostensivamente deslegitimar o divórcio, os rearranjos familiares e mesmo a vida solteira e aberta à multiplicidade de alternativas sexuais. É sobre a homossexualidade que recai a intolerância dos que entoam trechos bíblicos para legitimar a posição política sobre a inoportunidade do desejo. Nem sequer o fazem em relação à infração penal do estupro. Parecem preferir julgar os que se amam sem governo pastoral, mirando também impiedosamente as mulheres vítimas da opressão machista que viola seus corpos na relação sexual forçada.

A indignação de homossexuais diante do julgamento moral de que deveriam ser atendidos em seus possíveis anseios de se livrarem do próprio desejo é a daqueles que vivem a possibilidade de resistência à norma que os submete a adjetivos perversos. Àqueles que concordam com a atribuição de imoralidade que recai sobre seus desejos homossexuais inoportunos, a psicologia nunca negou assistência. Ela se pauta eticamente no reconhecimento da alteridade e portanto na defesa da autonomia nas decisões sempre singulares sobre como viver.

Aqueles que sugerem que os psicoterapeutas, dado o veto ao tratamento das homossexualidades, estariam em seus consultórios convencendo as pessoas a saírem do armário, desconhecem princípios éticos da profissão. O psicoterapeuta não decide pelo outro, e portanto, não pode decidir com o outro que sua homossexualidade será objeto de cura ou reversão para a heterossexualidade. Mas acompanha quaisquer pessoas em seus processos de elaboração e tomadas de decisão, que podem ser inclusive pela abstinência sexual ou por um casamento com parceiro do sexo oposto, mesmo que sem desejo e por conveniência moral.

O fundamentalismo da direita travestido de religiosidade mascara a explícita intenção desqualificadora sobre segmentos sociais vulneráveis à marginalização. Mesmo que a “cura gay” não seja aprovada em última instância no Parlamento, o dano já se instalou. O dano é o da disseminação da noção equivocada de que a homossexualidade é um mal curável. O dano instituído é moral. Essa doença chamada fundamentalismo na política é uma chaga aberta na democracia e uma afronta aos direitos humanos. É um distúrbio, no entanto, passível de cura. Seu tratamento é a ampliação do debate coletivo.

TATIANA LIONÇO É DOUTORA EM PSICOLOGIA E PROFESSORA DE PSICOLOGIA NO CENTRO UNIVERSITÁRIO DE BRASÍLIA (UNICEUB)

Artigo originalmente publicado em O Estado de S.Paulo.

EcoDebate, 24/06/2013


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